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Procº nº 407/93
Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. A. interpôs recurso contencioso de anulação da
deliberação do Conselho dos Oficiais de Justiça (COJ) de 28 de Abril de 1992,
que classificou de Medíocre o serviço prestado pelo recorrente, como técnico de
justiça auxiliar, no período de 18 de Setembro de 1985 a 27 de Julho de 1989.
Como fundamento do recurso invocou, entre o mais, a
inconstitucionalidade material e orgânica do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de
Dezembro (Estatuto dos Funcionários de Justiça), e, bem assim, a
inconstitucionalidade formal do Regulamento das Inspecções do Conselho dos
Oficiais de Justiça, publicado no Diário da República, II Série, nº 36, de 12 de
Fevereiro de 1990, em especial das normas constantes dos seus artigos 2º, nº 2,
alínea d), 12º e 16º, imputando-lhes a violação do artigo 115º, nº 7, da
Constituição.
2. Por sentença de 20 de Maio de 1993, o Mmº Juiz
do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra deu provimento ao recurso,
anulando o acto recorrido.
Para assim concluir, considerou aquela sentença
procedente a invocada inconstitucionalidade formal do Regulamento das Inspecções
do Conselho dos Oficiais de Justiça, por não indicar a lei que visa
regulamentar, contrariando, assim, o disposto no artigo 115º, nº 7, da Lei
Fundamental.
3. Desta decisão recorreu o Ministério Público para
o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), com vista à
apreciação da inconstitucionalidade do referido Regulamento das Inspecções do
Conselho dos Oficiais de Justiça.
4. Como o requerimento de interposição do recurso
não continha todos os elementos assinalados no artigo 75º-A da Lei do Tribunal
Constitucional, ordenou o ora relator, por despacho de 28 de Junho de 1993, a
notificação do recorrente para, no prazo de cinco dias, indicar os elementos em
falta, designadamente a norma ou normas cuja inconstitucionalidade se pretendia
que este Tribunal apreciasse e, bem assim, a norma ou princípio constitucional
que se considerava violado.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções no
Tribunal Constitucional, respondendo ao convite formulado, apresentou novo
requerimento, no qual indicou que:
a) Se trata do recurso interposto ao abrigo do
preceituado na alínea a) do nº 1 do artigo 70º, do segmento da decisão proferida
pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra que recusou, com base em
inconstitucionalidade formal, a aplicação das normas de conteúdo procedimental
constantes do regulamento das Inspecções do Conselho de Oficiais de Justiça,
aprovado por este órgão e publicado no Diário da República, II Série, de 12 de
Fevereiro de 1990;
b) Tais normas, que serviram de suporte ao acto
impugnado, são as constantes dos artigos 2º, nº 2, alínea d), 12º e 16º do dito
regulamento;
c) A norma constitucional que se considera violada
é a constante do artigo 115º, nº 7, da Constituição.
5. Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto
concluiu as alegações, dizendo:
1º- As normas de conteúdo inovatório e dotadas de
eficácia externa, constantes do Regulamento das Inspecções do Conselho dos
Oficiais de Justiça, aprovado em reunião extraordinária de 19 de Dezembro de
1989 e publicado no Diário da República, II Série, nº 36, de 12 de Fevereiro de
1990, são formalmente inconstitucionais, por violação do artigo 115º, nº 7, da
Constituição, pois o Regulamento em que se inserem não indica a lei que visa
regulamentar ou que define a competência para a sua emissão.
2º- Nenhum desses preceitos, dotado de tais
características, foi, porém, aplicado na sustentação do acto impugnado e,
consequentemente, na decisão recorrida que o revogou, pelo que não releva a
inconstitucionalidade formal referenciada na conclusão anterior.
Termos em que deve ser julgado procedente o
presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, na parte
impugnada.
Por sua vez, nas alegações produzidas neste
Tribunal, o recorrido A. apresenta as seguintes conclusões:
1º- A deliberação do COJ com base no RICOJ está em
confronto com a CRP;
2º- O RICOJ está obrigado à indicação da lei
habilitante - artº 115º, n 7, da CRP;
3º- Não o tendo feito viola a CRP no
normativo atrás indicado;
4º- Não correspondem à verdade os argumentos
defendidos pelo COJ, na medida em que o RICOJ não é somente um regulamento
interno e de organização, mas, tendo sido publicado no DR, as suas normas
produzem efeitos externos e também face aos inspeccionados;
5º- É unânime a Doutrina e Jurisprudência no
sentido de tais Regulamentos indicarem as leis habilitantes;
6º- A violação da CRP (artº 115º, nº 7) é
flagrante;
7º- Outras decisões jurisdicionais já se reportaram
a esta questão e concluíram pela inconstitucionalidade formal do RICOJ.
6. Corridos os vistos legais, importa apreciar e
decidir.
II - Fundamentos.
7. Tal com se referiu no Acórdão nº 375/94
(publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Novembro de 1994), o
Regulamento das Inspecções do Conselho dos Oficiais de Justiça é 'um
regulamento de natureza mista, simul-taneamente, um regulamento interno e um
regulamento externo'.
Isto significa que existem naquele diploma normas
puramente organizatórias, porque esgotam os seus efeitos no interior do serviço
de inspecções, e outras que projectam os seus efeitos para o exterior da
Administração, repercutindo-se na carreira dos oficiais de justiça.
Para além disso, há naquele diploma normas
desprovidas de conteúdo inovador, pois limitam-se e reproduzir a disciplina
constante do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro.
Segundo o Exmº Procurador-Geral Adjunto, só os
preceitos constantes do RICOJ dotados de eficácia externa e de conteúdo inovador
serão formalmente inconstitucionais, por contrariarem o disposto no artigo 115º,
nº 7, da Constituição, e nenhuma norma, com essas características, terá sido
aplicada na sustentação do acto impugnado.
Tendo em conta a globalidade das alegações
produzidas, pode concluir-se que aquele Magistrado do Ministério Público
pretendeu apenas dizer que os preceitos que serviram de base ao acto impugnado,
e cuja aplicação foi recusada pelo Mmº. Juiz do Tribunal Administrativo do
Círculo de Coimbra, não são dotados de eficácia externa e carácter inovador e,
como tal, não se encontram sujeitos à indicação da lei que visam regulamentar,
nos termos do disposto no artigo 115º, nº 7, da Constituição.
Vejamos se lhe assiste razão.
7.1. As normas indicadas como objecto do presente
recurso têm o seguinte conteúdo:
Artigo 2º (Inspecções Ordinárias)
'1.
2. De cada inspecção será elaborado relatório
circunstanciado, com vista a:
a) [...]
b) [...]
c) [...]
d) Informar acerca do serviço e mérito individual
dos oficiais de justiça abrangidos, propondo a cada um deles a classificação
correspondente'.
Artigo 12º (Elementos a considerar)
'1 - São elementos a tomar em especial consideração
na classificação dos oficiais de justiça:
a) A idoneidade cívica;
b) A preparação técnica e intelectual;
c) A quantidade e qualidade de trabalho;
d) O espírito de iniciativa e colaboração;
e) O brio profissional;
f) O senso prático;
g) A urbanidade e relações humanas;
h) A pontualidade, assiduidade e efectividade de
serviço.
2 - As qualidades de orientação e de chefia são
elementos relevantes na classificação de funcionários com tais atribuições.
3 - Nas classificações são sempre ponderadas as
circunstâncias em que decorreu o exercício de funções, designadamente as
condições de trabalho e o volume de serviço, bem como o resultado de inspecções
anteriores, inquéritos, sindicâncias ou processos disciplinares, e quaisquer
elementos complementares que estejam na posse do Conselho dos Oficiais de
Justiça'.
Artigo 16º (Relatório)
'1- O relatório e proposta a que se refere o artigo
2º, nº 2, do presente regulamento devem ser elaborados logo após a conclusão da
inspecção.
2- Do relatório constará a indicação de serviço e
funcionários abrangidos.
3- No caso de inspecção ordinária, o relatório
incluirá ainda os elementos referidos no artigo 2º deste regulamento.
4- Quando apreciar o mérito, será referido o tempo
efectivo de serviço e a categoria a que pertence o oficial de justiça.
5- O relatório das inspecções extraordinárias à
contabilidade e tesouraria deve incluir um balanço dos fundos existentes,
apontar as faltas notadas e as medidas para a sua correcção.
6- Todos os relatórios terão, no final, conclusões
que resumam as verificações e as providências sugeridas.
7- Logo após a elaboração do seu relatório, os
inspectores darão conhecimento dele aos oficiais de justiça cujo mérito tenham
apreciado, na parte respeitante a cada um, fixando o prazo de 10 dias para
fornecerem, querendo, os elementos que tenham por conveniente, após o que deve
ser elaborada informação final sobre a matéria da resposta'.
Na óptica do Exmº Procurador-Geral Adjunto, a norma
do artigo 12º do RICOJ carece totalmente de autonomia, sendo pura e fiel
reprodução literal do estatuído no artigo 90º do Decreto-Lei nº 376/87. E a
norma do artigo 2º, nº 2, alínea d), também nada inova relativamente ao
estatuído nos artigos 116º, nº 2, 88º, nº 1, 92º e 107º, alínea a), daquele
diploma legal.
Finalmente, o artigo 16º limita-se a estabelecer
regras procedimentais mínimas referentes ao processo de inspecção e o nº 7 deste
preceito não inova substancialmente relativamente ao estatuído no artigo 94º do
Decreto-Lei nº 367/87.
Segundo aquele representante do Ministério Público,
tais normas regulamentares não estariam abrangidas pela obrigatoriedade de
especificação da lei habilitante, de acordo com o estabelecido no artigo 115º,
nº 7 da CRP, por lhes faltar o carácter inovador, ou por não gozarem de eficácia
externa.
7.2. As normas regulamentares contêm disciplina
jurídica que não pretende ser essencial ou primária, pois constituem, por
natureza, uma normação secundária à lei.
E, embora existam regulamentos em que a vinculação
à lei é mais ténue (como no caso dos regulamentos independentes e autónomos), os
chamados regulamentos de execução visam, como o próprio nome indica, realizar
uma execução estrita da lei, sem criarem nada de substancialmente novo.
O artigo 115º, nº 7, da Constituição consagra o
princípio da precedência da lei, impondo aos regulamentos a indicação expressa
das 'leis que visam regulamentar ou definem a competência subjectiva e objectiva
para a sua emissão'.
Trata-se de um princípio que, segundo orientação
firme deste Tribunal, vale para todos os regulamentos, sem qualquer excepção,
desde que dotados de eficácia externa, pois só deste tipo de normas
regulamentares cura o referido preceito constitucional.
Por conseguinte, mesmo admitindo a ausência de
carácter inovador dos preceitos desaplicados na decisão recorrida, eles
continuam a ser normas com valor e força de regulamento, mantendo-se, neste
aspecto, a exigência prevista no artigo 115º, nº 7, da Lei Fundamental.
A solução apenas seria diferente se tais normas não
afectassem a esfera jurídica do recorrente, ou seja, se estivessem desprovidas
de eficácia externa.
No entanto, considerando o conteúdo das normas
desaplicadas pelo tribunal a quo, tem de concluir-se, na senda do decidido por
este Tribunal no citado Acórdão nº 375/94, que, no caso das normas constantes
dos artigos 2º, nº 2, alínea d), e 16º, nº 7, se trata de normas cuja disciplina
normativa não se confina ao interior da Administração, antes projectam a sua
eficácia no estatuto dos oficiais de justiça. O mesmo se passa em relação à
norma constante do artigo 12º do Regulamento das Inspecções. E a circunstância
de as referidas normas regulamentares produzirem efeitos externos é suficiente
para sujeitá-las à exigência do artigo 115º, nº 7, da Constituição,
independentemente de terem ou não um carácter inovador.
Assim sendo, deverá concluir-se que andou bem a
sentença recorrida quando procedeu à desaplicação das normas que constituem o
objecto do presente recurso, por considerá-las formalmente inconstitucionais,
uma vez que o Regulamento em que se inserem não indica a lei que visa
regulamentar ou define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão,
violando-se o disposto no artigo 115, nº 7, da Constituição.
8. A questão da conformidade com a Constituição das
normas que constituem o objecto do presente recurso já foi analisada pelo
Tribunal Constitucional em processos similares a este, tendo-se firmado
jurisprudência no sentido da sua inconstitucionalidade formal, por violação do
disposto no artigo 115º, nº 7, da Lei Fundamental.
Não havendo razões que levem a decidir
diferentemente desta jurisprudência, pelos fundamentos do Acórdão nº 375/94
(publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Novembro de 1994),
decide-se:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo
115º, nº 7, da Constituição, as normas dos artigos 2º, nº 2, alínea d), 12º e
16º, nº 7, do Regulamento das Inspecções do Conselho dos Oficiais de Justiça,
aprovado em reunião extraordinária de 19 de Dezembro de 1989, e publicado no
Diário da República, II Série, nº 36, de 12 de Fevereiro de 1990;
b) Negar provimento ao recurso e, em consequência,
confirmar a sentença recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 20 de Junho de 1995
Fernando Alves Correia
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
Bravo Serra
Luís Nunes de Almeida