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Proc. nº 432/96 Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. interpôs recurso para este Tribunal do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Abril de 1990, que, aplicando ao caso a doutrina firmada pelo assento de 24 de Janeiro de 1990, não conhecera do recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa proferido sobre o despacho que o tinha pronunciado como autor de um crime de associação de delinquentes (previsto e punível pelo artigo 28º, nº 1, referido ao artigo 23º, nº 1, do Decreto-Lei nº
430/83, de 13 de Dezembro).
Fundou o recurso no facto de o acórdão então recorrido ter aplicado a norma do artigo 2º do Código Civil, que, em seu entender, é inconstitucional.
Este Tribunal - depois de, pelo Acórdão nº 406/91, ter decidido que o Supremo Tribunal de Justiça tinha feito aplicação da norma arguida de inconstitucional - veio a julgar (pelo Acórdão nº 337/95) que 'a norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para, através de assentos, fixar doutrina com força obrigatória geral', é inconstitucional, por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição, em consequência do que revogou a decisão recorrida, determinando a sua reformulação em conformidade com este julgamento de inconstitucionalidade.
Ao proferir este julgamento de inconstitucionalidade, o Tribunal seguiu na esteira do seu acórdão nº 810/93, no qual concluíra que a norma do artigo 2º do Código Civil, ao atribuir força obrigatória geral aos assentos, conflitua com o princípio da tipicidade dos actos legislativos, estabelecido no artigo 115º da Constituição.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Novembro de 1995, reformulou a sua anterior decisão, mas concluiu como anteriormente - isto é: concluiu que, dos acórdãos das Relações, proferidos sobre despachos de pronúncia, não pode haver recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quer o recurso verse matéria de facto, quer verse matéria de direito; e, em consequência, não tomou conhecimento do recurso que para si havia sido interposto do acórdão da Relação de Lisboa.
Assim concluiu, acentuando que o fazia 'sem invocação do assento, como é óbvio'.
2. Deste acórdão (de 30 de Novembro de 1995) recorreu de novo o arguido para este Tribunal, dizendo fazê-lo ao abrigo da alínea g) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 'com o fundamento de que o mesmo aplicou, como ratio decidendi, o assento de 24 de Janeiro de 1990, sendo que tal assento não pode ser aplicado, em face da declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º do Código Civil, objecto do acórdão do Tribunal Constitucional de 22 de Junho de 1995'.
No Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro relator, por despacho de 8 de Fevereiro de 1996, não admitiu este recurso, tendo ponderado o seguinte: 'o Tribunal Constitucional não tem competência para controlar o modo como posteriormente os restantes tribunais executam as suas decisões' e 'não pode intrometer-se na valoração da matéria de facto quando é chamado a reapreciar decisões dos tribunais reformuladas em sequência de acórdãos proferidos em sede de fiscalização concreta, não aplicando a norma julgada de inconstitucional'. E acrescentou que 'o acórdão reformulado de modo evidente e expresso não aplica o assento em causa'.
É deste despacho (de 8 de Fevereiro de 1996), notificado ao arguido por carta registada, de 9 de Fevereiro de 1996 - posteriormente mantido pelo acórdão de 21 de Março de 1996 - que vem a presente reclamação, apresentada em 23 de Fevereiro de 1996.
3. O Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se no sentido de que o acórdão de que se pretende recorrer não aplicou 'a norma do artigo 2º do Código Civil na dimensão julgada inconstitucional por este Tribunal, pelo que sempre faltaria um essencial pressuposto do tipo de recurso que se pretendeu interpor', ao que acresce - diz - 'que a presente reclamação é extemporânea, já que não foi deduzida no prazo de 5 dias, contados da notificação do despacho que não admitiu o recurso'.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
5. Antes de mais, impõe-se uma palavra de esclarecimento acerca dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional quando é chamado a reapreciar as decisões dos outros tribunais, reformuladas para dar cumprimento a acórdãos seus proferidos em sede de recurso, ou sequentes a declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Pois bem: o Tribunal Constitucional tem competência para interpretar autenticamente as suas declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, e, especificamente, para precisar o exacto 'sentido e
âmbito' de tais declarações [cf. Acórdãos nºs 318/93 (Diário da República, II série, de 2 de Outubro de 1993) e 528/96 (por publicar)]; mas, quando aprecia as decisões dos outros tribunais sequentes a essas declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e, bem assim, quando reaprecia decisões desses mesmos tribunais, reformuladas em cumprimento de julgamentos seus proferidos em sede de fiscalização concreta, não pode intrometer-se na valoração da matéria de facto, pois esse é um juízo que unicamente compete a esses outros tribunais.
Ao Tribunal Constitucional não cabe, com efeito, resolver controvérsias jurídicas ou contendas jurisprudenciais em matérias diferentes da do controlo de constitucionalidade [cf. Acórdãos nºs 21/87 e
339/87 (Diário da República, II série, de 31 de Março e 19 de Setembro de 1987, respectivamente)].
O Tribunal já deverá, porém, conhecer dos recursos de constitucionalidade para si interpostos, se, nessas decisões sequentes ou reformuladas, se verificarem, autonomamente, os respectivos pressupostos. É o que sucede se nelas tiver sido feito um novo julgamento de inconstitucionalidade
(tal como aconteceu no caso decidido pelo acórdão nº 415 da Comissão Constitucional, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 8 de Janeiro de
1983); se, explícita ou implicitamente, tiver sido feita aplicação de norma arguida de inconstitucional durante o processo ou já antes como tal julgada pelo Tribunal (designadamente nesse processo) ou se, da mesma forma, houver recusa da sua aplicação; ou ainda se, numa decisão sequente a uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, o tribunal que a proferiu não acatar 'o sentido e âmbito que nessa declaração foi fixado' (é a hipótese decidida pelo citado Acórdão nº 528/96).
Não se verificando tais pressupostos, mesmo que a decisão recorrida, aparentemente - e apenas aparentemente -, se assuma como desrespeitadora de anterior decisão do Tribunal Constitucional, o recurso não é admissível, como este Tribunal já teve ocasião de julgar no mencionado Acórdão nº 318/93 e em muitos outros que seguiram na sua esteira (entre eles, o Acórdão nº 638/93, por publicar) e, bem assim, nos Acórdãos nºs 30/95 e 108/95
(Diário da República, II série, de 26 de Abril e de 20 de Abril de 1995, respectivamente).
Nos casos deste último tipo - escreveu-se no referido acórdão nº 318/93 - 'valem as regras gerais dos recursos de constitucionalidade, não sendo sustentável um alargamento da competência do Tribunal Constitucional visando especificamente o controlo do modo como o tribunal recorrido 'executou' a anterior decisão do Tribunal Constitucional. Essa 'execução', na medida em que implica a valoração de provas e de factos e interpretação e aplicação do direito ordinário, é, de per si, insindicável pelo Tribunal Constitucional. Este só poderá intervir, não como instância de supervisão da execução das suas decisões, mas como instância de recurso, se a segunda decisão do outro tribunal couber autonomamente na previsão das várias alíneas do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82'.
No presente caso, há, então, que averiguar se se acham preenchidos os pressupostos do recurso da alínea g) do nº1 do citado artigo 70º.
6. Com a presente reclamação, pretende-se, com efeito, que seja admitido o recurso que se interpôs do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Novembro de 1995, ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A reclamação só será, então, de deferir se, tendo sido tempestivamente apresentada, o acórdão recorrido tiver aplicado norma já anteriormente julgada inconstitucional por este Tribunal.
Pois bem: a reclamação foi apresentada em 23 de Fevereiro de 1996 - portanto, fora de prazo, uma vez que devia ter sido apresentada (e não o foi) nos cinco dias posteriores à notificação do despacho reclamado, feita por carta registada expedida em 9 de Fevereiro de 1996 (cf. artigo 688º, nº 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do disposto no artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional).
A extemporaneidade da reclamação implica que não deva, sequer, tomar-se conhecimento dela, conforme este Tribunal ainda recentemente decidiu no acórdão nº 676/96 (por publicar).
Mas, se acaso devesse conhecer-se da reclamação, seria ela de indeferir, por se não verificar um pressuposto do recurso que se interpôs, pois que o acórdão recorrido não aplicou o artigo 2º do Código Civil na dimensão que este Tribunal antes julgou inconstitucional.
De facto, como sublinha o Ministério Público, 'no caso dos autos, é evidente que o STJ procedeu a uma reapreciação autónoma da questão jurídico-processual que havia sido dirimida pelo assento questionado - concluindo pela subsistência da doutrina nele proclamada, não obviamente por ter entendido que estava por ela vinculado, atenta a sua 'força vinculativa genérica', mas por haver considerado que a solução adoptada era a correcta, não se justificando, consequentemente, a alteração do decidido naquele assento'.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não conhecer da reclamação apresentada e, em consequência, condenar o reclamante nas custas, para o que fixa a taxa de justiça em cinco unidades de conta .
Lisboa, 9 de Julho de 1996 Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luís Nunes de Almeida