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Procº nº 438/96.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. No Tribunal de comarca de Vila Viçosa intentou A. contra B., e como preliminar de acção a instaurar contra esta, providência cautelar não especificada, pedindo que a requerida suspendesse imediata e totalmente os trabalhos de extracção de mármores numa parcela de terreno de que o requerente era arrendatário, que abandonasse, com o respectivo pessoal, toda a
área correspondente àquela parcela, que aí não instalasse quaisquer novos mecanismos ou equipamentos ou movimentasse quaisquer veículos, máquinas, equipamentos ou pessoas sob a sua direcção ou no seu interesse, e que não procedesse à desmontagem ou demolição de equipamentos ou instalações sem a autorização e acompanhamento directo das respectivas operações por técnicos da Direcção-Geral de Geologia e Minas.
A requerida opôs-se ao decretamento da providência, invocando, de entre o mais, que, como o requerente, anteriormente, tinha intentado uma outra providência cautelar, também preliminar à instauranda acção, providência essa em que formulou pedido rigorosamente idêntico e da qual tinha desistido, ser-lhe-ia vedado agora, nos termos do artº 387º do Código de Processo Civil, requerer a nova providência.
O Juiz daquele Tribunal de comarca, com base naquela invocação da requerida, considerando que a desistência do pedido deduzido na anterior providência constituía uma excepção peremptória traduzida na extinção do direito que por intermédio da mesma se pretendia fazer valer, indeferiu a providência agora em questão, o que motivou o requerente a recorrer para o Tribunal da Relação de Évora que, porém, negou provimento ao recurso.
De novo inconformado, recorreu o A. para o Supremo Tribunal de Justiça e, no que concerne ao agravo da decisão que concluiu pela inviabilidade da providência, produziu alegação na qual formulou as seguintes
«conclusões»:-
' 1. todo o direito corresponde as providências necessárias para acautelar a sua eficácia, salvo determinação legal em contrário de constitucionalidade duvidosa;
2. a desistência do pedido da providência cautelar não produz a desistência do direito à providência cautelar do direito, mas apenas a desistência da medida de protecção do direito concretamente pedida;
3. o conceito de caso julgado é inaplicável às providências cautelares, porque pressupõe a definitividade da definição do direito que estas apenas instrumentalizam;
4. alheio ao caso julgado, o nº 1 do art. 387º do CPC é, portanto, mera disposição excepcional que, salvo no caso da extinção do direito, visa sancionar reforçadamente a injustificação objectiva da providência, ou a negligência do requerente;
5. apenas é injustificada a providência que manifestamente possa ser julgada como tal, segundo as regras do nº 2 do art. 456º do CPC;
6. a desistência do seu pedido em si mesma não faz presumir a respectiva injustificação;
7. a sentença homologatória da respectiva desistência, porque não conhece do mérito da providência, não pode julgar da respectiva justificação;
8. a desistência do pedido da providência não é, pois, subsumível na previsão do nº 1 do art. 387º do CPC:
9. como norma excepcional que é, esta disposição não pode ser-lhe aplicada analogicamente - e em nenhum caso o seria por ausência dos requisitos dessa integração;
10. por outro lado, salvo inconstitucionalidade flagrante, o nº 1 do art. 387º do CPC. apenas poderá proibir a repetição da mesma providência cautelar - com idêntico pedido e idêntica causa de pedir;
11. a identidade do pedido é aferida pela identidade da causa de pedir, e esta define-se segundo a teoria da substanciação.
12. donde a diversidade das providências quando haja diversidade dos direitos e dos riscos que urge acautelar.
13. assim não decidindo, o acórdão recorrido violou os artigos 20º do CR, 2º, 295º, nº 1, 387º, nº 1, 498º e 644º do CPC, e 9º, 10º, 11º e 34 e segs. do C.Civil.'
2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, negou provimento ao recurso.
Nesse aresto foi dito, tocantemente ao agravo da decisão da Relação de Évora que concluiu pela inviabilidade da providência:-
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1 - Em primeiro lugar, há que assentar no facto de se estar, ou não, perante a repetição da providência já anteriormente requerida. Com efeito, pode acontecer que determinda providência (não especificada) não satisfaça os requisitos de decretamento (1), conforme o disposto nos arts. 399º e 401º do CPC, mas que outra diferente, do mesmo ou de outro tipo (2), venha a preenchê-los. Nada impede que essoutra providência diferente se requeira, seja qual for a sorte que a primeira tiver sofrido: julgamento de injustificação, caducidade, desistência do pedido, etc. Pode, na verdade, acontecer que o 'periculum in mora' (3) seja colmatado por essa outra forma.
2 - Para que haja repetição, necessário é que ocorra semelhança essencial . Esta ocorrerá, certa- mente, se as partes, os fundamentos e o pedido forem os mesmos. No entanto, mais concretamente, importa, no caso, considerar se o receio é o mesmo, se é a mesma a possibilidade de lesão do direito e a mesma dificuldade de reparação e, ainda, se é o mesmo o direito provavelmente existente.
3 - Que acontece 'in casu'? Comparemos, em primeiro lugar, os pedidos acima reproduzidos. São, fundamentalmente, os mesmos. .................
................................................... Em segundo lugar, vejamos os fundamentos. São também os mesmos. ............................
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4 - Assim, conclui-se que se verifica, efectivamente, a REPETIÇÃO DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR. Com efeito:
- O receio é o mesmo, a mesma é a possibilidade de lesão do direito e a dificuldade de reparação (4) e, ainda, o mesmo é o direito provavelmente existente. As mesmas são as partes e até as suas posições relativas, o que ainda mais igualiza as duas situações.
5 - Posto isto, há que retirar as devidas consequências da referida desistência do pedido, na primitiva providência. Estabelece o art. 387º do CPC, no seu nº 1:
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......................................... No caso, não houve julgamento da providência nem ocorreu caducidade. Simplesmente, requerida ela, o Requerente/Recorrente desistiu do pedido. Há, pois, que retirar deste acto voluntário (5) as respectivas consequências.
6 - Nos termos do art. 295º 1 do CPC, a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer. Quer isto dizer que o direito invocado pelo autor, suposto que existia, se apaga, se esfuma, desaparece, face à desistência. Isto por que, tal acto, acarreta, envolve, implica o reconhecimento, pelo autor, de que lhe não assiste direito à sentença de mérito que começou por solicitar, (6), ou, no dizer de A. dos Reis (7), na 'desistência do pedido o autor reconheceu implicitamente que a sua pretensão é infundada'. A força das consequências da desistência é, pois, tal, que, nos termos do Assento de 15-VI-88 (8), o desistente do pedido de simples apreciação fica até impedido d estruturar no mesmo direito um pedido de condenação. Que pretensão, que direito? Obviamente, a pretensão e o direito objecto da providência requerida e nada mais. Ou seja, o direito de requerer a providência adequada ao afastamento do referido 'periculum in mora'. A sua pretensão é somente a de evitar uma lesão grave resultante da mora. Desistindo dessa pretensão, desisitindo desse direito
(9), fica definitivamente impedido de voltar a exercê-lo, pela simples razão de que se extinguiu.
7 - Assim, as consequências da desistência são as supra referidas. Nem mais nem menos. Isto independentemente de considerações acerca do conceito de caso julgado, do qual, na presente conjuntura, nem precisamos. Tais consequências não as fazemos assentar no âmbito do nº 1 do citado art.
387º, mas sim nos próprios efeitos da desistência (extintiva) do pedido. A sentença homologatória apenas ratifica o negócio jurídico unilateral que levou à extinção do mencionado direito de requerimento. Não se põe qualquer problema de inconstitucionalidade, como sugere o Recorrente, relativamente ao nº 1 do citado art. 387º do CPC, já que não teve aplicação ao caso presente. Como afirma ainda o Recorrente, é possível a diversidade de providências quando haja diversidade de direitos e de riscos que urja acautelar, mas nos moldes acima mencionados.
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3. Notificado do acórdão de que parte acima se encontra transcrita, apresentou o A. requerimento, onde disse:-
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A. vem interpôr recurso do acórdão de fls. para o Tribunal Constitucional.
Fá-lo nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da lei 85/89, de
7 de Setembro, por entender que a respectiva interpretação das normas dos artigos 2º, 295º, nº 1 e 498º do CPC viola o artigo 20º da CR, conforme alegou junto da Relação de Évora.
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O recurso intentado interpôr para o Tribunal Constitucional não foi admitido por despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça com base na circunstância de o aresto pretendido impugnar se não ter fundado em nenhuma das disposições legais indicadas pelo recorrente.
4. É desse despacho que o A. formula a presente reclamação para este Tribunal, sustentando, em síntese, que o acórdão desejado recorrer interpretou e aplicou implicitamente os artigos 498º, 295º, nº 1 e 2º, todos do Código de Processo Civil, sendo que, relativamente ao artº 387º, nº 1, do mesmo corpo de leis, se reconhece a sua não aplicação por aquele aresto, razão pela qual se deverá entender que o mesmo não constituirá objecto do pretendido recurso.
O Ex.mo representante do Ministério Público aqui em funções pronunciou-se no sentido do indeferimento da vertente reclamação.
Cumpre decidir.
II
1. Tendo em conta o que é sustentado na peça consubstanciadora da decidenda reclamação e que nos postamos perante um recurso intentado interpôr com arrimo na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, mister é que se saiba, de uma banda, se o reclamante, antes da prolação do acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, questionou a compatibilidade constitucional de uma certa dimensão interpretativa das normas ínsitas nos artigos 2º, 295º, nº 1, e 498º do Código de Processo Civil e, de outra, se tal aresto convocou, como suporte da decisão que tomou, a aplicação de tais normas, interpretadas do modo que o reclamante considerava como constitucionalmente insolventes.
Ora, como deflui do relato acima efectuado, torna-se claro, em primeiro lugar, que, após o proferimento do acórdão da Relação de
Évora, não suscitou o ora reclamante qualquer questão de inconstitucionalidade referentemente, quer às normas já indicadas, quer a uma certa forma como as mesmas poderiam ser interpretadas. Um tal juízo fê-lo, na verdade, tão somente em relação ao nº 1 do artº 387º do diploma adjectivo civil, normativo que não foi incluído por entre aqueles a que se referiu no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e que, na peça reclamatória, reconhece não poder fazer parte do objecto do recurso.
2. Em segundo lugar, se é certo que, em princípio, muito embora não haja numa decisão jurisdicional expressa referência a determinadas normas, a sua aplicação implícita poderá abrir a via do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade - reunidos que estejam os requisitos condicionadores dessa forma de impugnação - menos certo não é que, por maiores esforços que, in casu, sejam levados a cabo, não se divisa, minimamente que seja, que o acórdão intentado recorrer tivesse, como base jurídica da decisão tomada, feito qualquer aplicação, ainda que meramente implícita, do que se preceitua nas normas cuja apreciação pelo Tribunal Constitucional se deseja, e muito menos ainda de um modo interpretativo (que, como se viu já, não ocorreu) cuja desconformidade constitucional foi arguida pelo reclamante.
É por demais nítido que a razão de ser, e única, do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça se fundou na circunstância de se ter entendido (o que o Tribunal Constitucional, atentos os seus poderes cognitivos, não pode pôr em causa) que a providência cautelar em questão constituía uma mera repetição - ser, enfim, a mesma - daqueloutra providência cautelar anteriormente intentada pelo ora reclamante e de cujo pedido viera a desistir, desistência que, ainda no entendimento daquele Alto Tribunal, acarretou a extinção do direito (no caso, evitar uma lesão grave adveniente da mora) que se pretendia fazer valer por esta última providência.
Sendo assim, como é, torna-se líquido que se não pode, como o reclamante o faz, esgrimir com a consideração de que naquele aresto se fez aplicação implícita da norma definidora dos requisitos do caso julgado e da que estatui que a todo o direito corresponde uma acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realizá-lo coercivamente ou uma providência necessária ao acautelamento do efeito útil da acção.
Repete-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no aresto desejado impugnar fundou a decisão tomada na circunstância de a providência em questão ser a mesma que aqueloutra anteriormente intentada e de cujo pedido o ora reclamante desistiu.
III
Em face do que se deixa dito, indefere-se a presente reclamação, condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em três unidades de conta.
Lisboa, 23 de Outubro de 1996 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa