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Proc. nº 340/95
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. Por despacho de 19 de Novembro de 1995, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Faro declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer o mérito dos autos de expropriação litigiosa por utilidade pública, remetido àquele tribunal pela Junta Autónoma de Estradas - Direcção de Estradas do Distrito de Faro.
Tal decisão fundou-se na desaplicação por inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 37º, 50º, 51º, nº 1, 52º, nº 2, e 53º, nº 2, do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro.
Entendeu o juiz a quo, no despacho recorrido, que '.. é aos Tribunais Administrativos que não aos judiciais que cabe a competência para exercer a função jurisdicional quando e onde lhe compita no tocante à relação jurídica de expropriação', pelo que, '... os artigos 37º, 39º, nº 1, 42º, nº 2,
50º, 51º, nº 1, 52º, nº 2, 53º, nº 2 e 64º, nº 2, do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, enfermam, a nosso ver, de inconstitucionalidade na medida em que, por via de legislação ordinária, atribuem aos tribunais comuns competências constitucionalmente reservadas aos tribunais administrativos nos termos do citado artigo 214º, nº 3, da Constituição'.
É deste despacho (de 19 de Novembro de 1995) que vem interposto o presente recurso pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida nos artigos 37º, 50º, 51º, nº 1, 52º, nº 2 e 53º, nº 2, do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro.
2. Nas alegações junto deste Tribunal, o recorrente concluiu do seguinte modo:
'1º - A relação jurídica emergente da expropriação litigiosa reveste natureza híbrida, sendo necessário distinguir os aspectos que se situam no campo do direito administrativo - os referentes à declaração de utilidade pública, enquanto facto constitutivo de tal relação - e os que extravasam o campo do direito público, por se reportarem ao arbitramento da justa indemnização devida ao expropriado.
2º - Na verdade, tal indemnização surge como sucedâneo patrimonial, como decorrência jurídica da extinção de um direito (privado) de propriedade, sendo fixada segundo critérios que se prendem essencialmente com o valor real dos bens expropriados, visando compensar patrimonialmente o expropriado da perda daquele direito.
3º - A atribuição, pelas normas desaplicadas, de competência material aos tribunais judiciais relativamente ao processo de expropriação litigiosa, na fase que tem como objecto a fixação do valor global da indemnização, dirimindo o litígio existente entre expropriado sobre tal matéria,
é mero corolário da regra que subtrai à jurisdição administrativa o conhecimento das questões de natureza privada, em nada ofendendo, consequentemente, o disposto no nº 3 do artigo 214º da Constituição da República Portuguesa.'
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. A decisão da presente questão de constitucionalidade exige, por um lado, que se proceda à delimitação do nº 3 do artigo 214º da Constituição e, por outro, que se determine a natureza do litígio sub judicio.
Assim, começando pela análise da segunda questão enunciada, importa ter presente que o litígio em apreciação emerge na segunda fase do processo expropriativo, ou seja, na fase de expropriação litigiosa.
O regime da expropriação de bens imóveis dos cidadãos por motivos de utilidade pública, com a supressão pura e simples do direito de propriedade dos particulares (se não for possível a aquisição amigável desses bens), consagrado no Código das Expropriações, prevê uma primeira fase puramente administrativa, regulada no Título II do referido Código. Tal fase compreende a declaração de utilidade pública, prevista no artigo 11º, que implica um processo, regulado nos artigos 12º, 13º (no caso de urgência na expropriação) e
14º, e culmina com a posse administrativa, consagrada nos artigos 17º a 21º.
Nesta fase processual pode, na verdade, falar-se em relação jurídico-administrativa, por intervir o Estado Administração, numa típica acção de lesão da esfera jurídica dos particulares, com vista à prossecução de um interesse público.
5. Porém, quando esta fase termina e, esgotada a possibilidade de acordo com o expropriado, se dá início à fase da expropriação litigiosa, parte da doutrina entende haver uma alteração do enquadramento jurídico da situação.
Na verdade, a fase de expropriação litigiosa compreende, como momento fundamental, a arbitragem (artigos 37º e 42º e ss. do Código das Expropriações). Finda a arbitragem, o processo é remetido ao tribunal competente, para ser adjudicada ao expropriante a propriedade e a posse e, simultaneamente, ordenada a notificação da decisão arbitral, quer ao expropriante, quer aos diversos interessados (nº 4 do artigo 50º do citado Código). Dessa arbitragem cabe recurso, previsto e regulado nos artigos 51º e
56º e ss. do mesmo diploma, para o tribunal da comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua maior extensão.
Segundo parte da doutrina, estar-se-á, então, na presença de uma relação jurídica suscitada por um conflito entre os interesses dos sujeitos envolvidos na fixação do valor global da indemnização. A composição desse conflito (entendido como um verdadeiro conflito de interesses) deverá ser, nessa perspectiva, da competência dos tribunais judiciais, na medida em que estará em causa a determinação do montante da 'justa indemnização' pelo sacrifício do direito de propriedade do particular e é vedada à jurisdição administrativa a competência para dirimir litígios relativos a direitos reais de natureza privada
[artigo 4º, nº 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril].
Para quem assim pense, já não estará em causa, neste momento, em primeira linha, o interesse colectivo prosseguido pelo Estado com a expropriação. O Estado não surgirá, na determinação do montante indemnizatório, munido de poderes de autoridade. Tratar-se-á agora da conversão do direito de propriedade, extinto em consequência da expropriação, num valor pecuniário, que conferirá ao litígio emergente um cariz eminentemente privado (cf. Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, 1982, pp. 154/155).
6. Mesmo que assim se não entenda, segundo uma outra linha argumentativa sempre se admitirá a competência dos tribunais comuns por ter sido esta a nossa tradição jurídica, desde a entrada em vigor da primeira lei sobre o processo expropriativo (a Lei de 23 de Julho de 1850), intervindo sempre o juiz comum para decidir a matéria da indemnização (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 746/96, de 29 de Maio de 1996, inédito, e na doutrina, Alves Correia, ob.cit., passim, a propósito dos aspectos históricos do conceito de expropriação; e António Pais de Sousa e Manuel Fernandes da Silva, Da Justa Indemnização nas Expropriações de Utilidade Pública, 1980, dando notícia, a p.
27 e ss., da legislação portuguesa e das características da sua evolução, e considerando aquela lei de 1850 '... a trave-mestra e ponto obrigatório de referência de todo o direito legislado posteriormente sobre expropriação').
7. Em suma: a consideração de que a relação jurídica em análise não possuirá natureza administrativa permitiria concluir, desde logo, que as normas em crise não violariam o disposto no artigo 214º, nº 3, da Constituição.
Mas, também, se se perfilhar um outro entendimento, a inserção, na 2ª Revisão Constitucional, da actual redacção do nº 3 do artigo
214º não exclui, em absoluto, a possibilidade de manter nos tribunais judiciais a competência para julgar questões de direito administrativo.
Uma parte da doutrina sustenta mesmo que o nº 3 do artigo
214º da Constituição apenas visou a criação de 'tribunais comuns' em matéria administrativa e não a criação de uma reserva material absoluta dos tribunais administrativos.
Assim, segundo Vieira de Andrade, da 'definição do
âmbito-regra (que corresponde à justiça administra em sentido material) deriva para o legislador ordinário tão somente a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições - por exemplo, seria inconstitucional a opção do legislador ordinário pelo sistema italiano, remetendo para os tribunais judiciais o julgamento de todas as questões relativas a direitos subjectivos dos particulares'. Porém, acrescenta o autor,
'não fica proibida a atribuição pontual a outros tribunais do julgamento (por outros processos) de questões substancialmente administrativas, sendo certo que essas 'remissões' orgânico-processuais (muitas delas tradicionais) podem ter justificações diversas, devendo por isso, incluir-se na margem de escolha política e, portanto, de liberdade constitutiva própria do poder legislativo.'
(cf. Direito Administrativo e Fiscal, 1995, p. 11).
Por fim, mesmo que não se rejeite que o artigo 214º, nº 3, da Constituição atribui aos tribunais administrativos uma reserva material absoluta de jurisdição, ainda se terá de admitir que, em casos excepcionais, ditados por razões constitucionalmente relevantes, é possível atribuir a tribunais judiciais a competência para o julgamento de questões de direito administrativo (cf., neste sentido, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 607/95, D.R., II Série, de 15 de Março de 1996, e 746/96, citado). Assim, da alegada natureza administrativa do presente litígio, não resultaria, necessariamente, a inconstitucionalidade das normas em crise.
III Decisão
8. Ante o exposto, decide-se julgar não inconstitucionais as normas contidas nos artigos 37º, 50º, 51º, nº 1, 52º, nº 2, e 53º, nº 2, do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, e, por conseguinte conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 11 de Julho de 1996 Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa