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Procº nº 412/94.
2ª Secção.
Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Tendo, por despacho de 15 de Dezembro de 1993,
proferido pelo Ministro da Administração Interna, sido denegado o direito de
asilo solicitado pelo cidadão angolano A., e pretendendo o mesmo impugnar esse
despacho perante o Supremo Tribunal Administrativo, requereu ele a esse Alto
Tribunal, invocando não possuir meios económicos bastantes para suportar o
pagamento de honorários devidos a um profissional forense, a nomeação de um
patrono oficioso.
Por despacho do Conselheiro Relator foi admitido
liminarmente o pedido de apoio judiciário na modalidade de patrocínio
judiciário, o que foi efectuado com base na consideração de que 'o nº 1 do art
1º do DL nº 391/88, de 26 de Setembro e o nº 2 do art. 7º do DL nº 387-B/87, de
29 de Dezembro, ao exigirem para a concessão de protecção jurídica aos
estrangeiros e apátridas, uma residência habitual no País', sofriam de
inconstitucionalidade material 'por directa violação do disposto no art. 15º da
C.R.P.'
A Representante do Ministério Público junto do S.T.A.
reclamou para a conferência do citado despacho, o que motivou a prolação, em 1
de Junho de 1994, de acórdão por intermédio do qual tal despacho foi confirmado.
Nesse aresto pode ler-se, em determinados passos:
'.............................................
Parece assim que em casos como o presente, em que se ignora se o
requerente do asilo reside regularmente em Portugal, não era legalmente possível
que lhe fosse concedido apoio judiciário para impugnar contenciosamente a
decisão administrativa em causa nos autos.--------------------------------------
Conclusão que a tirar-se seria precipitada, pois tal solução
normativa é, como se afirmou no despacho reclamado, inconstitucional, pelo que,
como foi feito, o tribunal tem o dever de recusar a sua aplicação - [art. 207º
da CRP].-------------------------
5.1.3 - O art. 15º da Constituição afirma como princípio geral a
equiparação de direitos e deveres entre cidadãos portugueses, por um lado, e
cidadãos estrangeiros e apátridas, quando estes residam ou apenas se encontrem
em Portugal, por outro.--------------------------
Esta equiparação, constitucionalmente garantida, constitui um
corolário do princípio da igualdade e da vocação universalista da Constituição
em matéria de direitos fundamentais, expressa, entre outros aspectos, pela
recepção efectuada pelo art. 16º - 2, da Declaração Universal dos Direitos do
Homem. Na verdade, o princípio da equiparação, mais não é de que uma
manifestação concreta do valor da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a
República Portuguesa - [art. 1º]..............
..............................................
Logo também os direitos fundamentais de estrangeiros e apátridas,
reconhecidos pelo princípio da equiparação, estão sujeitos, nomeadamente, ao
regime constante dos nº. 2 e 3 do art. 18º da
Constituição,................................................................
5.1.5. - O direito de acesso aos tribunais, onde se inscreve, como
elemento essencial o patrocínio judiciário, é assegurado pela CRP 'a todos' -
[art. 20º] -, o que logo revela a universalidade do respectivo reconhecimento,
não suscitando dúvidas a sua inclusão entre os direitos fundamentais -
[direitos, liberdades e garantias] - pelo que nesta matéria não são admitidas
distinções entre estrangeiros residentes e não residentes em Portu-
gal.-----------------------------------------
Por outro lado, o direito de asilo é concebido como um direito
subjectivo - [art. 33º - nº 3] - a que anda, necessariamente, associada a
garantia do acesso aos tribunais para impugnar as decisões administrativas que o
ponham em causa e, consequentemente, são constitucionalmente inválidas as normas
que recusem o apoio judiciário.-------------------
Normas essas que violam ainda a proibição de descriminação em razão
da situação económica, genericamente afirmada no art. 13º - 2 e especificamente
reafirmada no que respeita ao acesso aos tribunais no nº 1 do art. 20º, ambos da
CRP, ao dizer que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios
económicos. Ora basta pensar no que poderá ocorrer a dois requerentes de asilo,
em que um dispõe de meios económicos para constituir advogado e outro não. O
primeiro, poderia atacar contenciosamente a decisão administrativa denegatória
do asilo e o outro não. Este ficaria, pois, desprovido de tutela judicial
efectiva para valer um seu direito subjectivo, o que é, a todas as luzes,
intolerável.
Saliente-se que não está, agora, em causa saber-se se o requerente de
asilo, na pendência do respectivo processo, tem direito a apoio judiciário para
litigar em qualquer outro processo (civil, penal, laboral, etc), mesmo que aí
estejam em causa outros direitos fundamentais, mas sim se tem esse direito no
próprio processo em que se discute a concessão do estatuto de asilo.--------
.............................................'
2. Do acórdão de que acima se encontra transcrita uma
parte recorreu para este Tribunal a representante do Ministério Público, aqui
tendo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto produzido alegação na qual, propugnando
pela improcedência do recurso, concluiu que '[a]s normas dos artigos 7º, nº 2,
do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, e 1º, nºs 1, do Decreto-Lei nº
391/ /88, de 26 de Outubro, na parte em que exigem, para a concessão de
protecção jurídica aos estrangeiros, a sua residência habitual em Portugal, são
materialmente inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 2,
15º, nºs 1 e 2, e 20º, nºs 1 e 2, da Constituição'.
II
1. Com vista a promover 'que a ninguém seja dificultado
ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência
de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos',
editou o Governo, ao abrigo do autorização concedida pela Lei nº 41/87, de 23 de
Dezembro, o Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 daquele mês, diploma que, justamente,
veio a regular o «Acesso ao direito e aos tribunais», como decorrência do que se
consagra no artigo 20º da Constituição nas vertentes de acção 'de informação e
protecção jurídica, pré ou parajudiciária', e 'do que classicamente se chamava
de «assistência judiciária»'.
Aí se estabeleceu que 'a protecção jurídica reveste as
modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário' (cfr. artº 6º), tendo
direito a essa protecção 'as pessoas singulares' e 'colectivas' que 'demonstrem
não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos
profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços e para
custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial'
(números 1 e 4 do artº 7º).
Ficou igualmente consagrado que do direito a protecção
jurídica gozam '[o]s estrangeiros e os apátridas que residam habitualmente em
Portugal' (nº 2 daquele artº 7º), sendo que '[a]os estrangeiros não residentes
em Portugal é reconhecido o direito a protecção jurídica, na medida em que ele
seja atribuído aos portugueses pelas leis dos respectivos Estados' (nº 3 do
mesmo artigo).
Com vista a regulamentar o sistema de apoio judiciário e
o seu regime financeiro, surgiu a lume, em 26 de Outubro de 1988, o Decreto-Lei
nº 391/88 que, inter alia, veio dispor no seu artº 1º que '[p]ara efeito de
protecção jurídica, a residência habitual de estrangeiros ou apátridas titulares
de autorização de residência válida, a que se refere o n.º 2 do artigo 7º. do
Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, implica a sua permanência regular e
continuada em Portugal, por período não inferior a um ano, salvo regime especial
decorrente de tratado ou convenção internacional que Portugal deva observar' (nº
1), sendo que '[o] estrangeiro a quem for concedido asilo ou que goze do
estatuto de refugiado pode usufruir de protecção jurídica a partir da data da
concessão do direito de asilo ou do reconhecimento do estatuto de refugiado'
(nº2).
2. Da articulação dos preceitos constantes do artº 7º,
números 2 e 3, do D.L. nº 387-B/87 e do artº 1º do D.L. nº 391/88 resulta, pois,
que a protecção jurídica não é concedida a estrangeiro - que tenha solicitado a
concessão de estatuto de refugiado político e ao qual ainda não tenha sido
concedido asilo ou goze desse estatuto - que não seja detentor de autorização
de residência válida em Portugal, ou que, sendo-o, aqui não resida regular e
continuadamente por um período não inferior a um ano, e desde que as leis do
Estado da respectiva nacionalidade não atribuam aos portugueses idêntico
direito.
Foi a norma resultante daquela articulação que, por
merecer um juízo de desconformidade constitucional, foi objecto de desaplicação
pela decisão ora recorrida, com base na fundamentação que acima se deixou
transcrita, juízo esse que agora é sujeito à sindicância deste Tribunal.
2.1. De acordo com o artigo 15º, nº 1, da Constituição,
'[o]s estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam
dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português', o que equivale
a dizer que neste preceito se consagra um princípio geral de equiparação, quanto
ao gozo de direitos e sujeição a deveres, entre os cidadãos portugueses e os
apátridas. Exceptuam-se desse princípio, todavia (nº 2 daquele artigo 15º), 'os
direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham carácter
predominantemente técnico e os direitos reservados pela Constituição e pela lei
exclusivamente aos cidadãos portugueses'.
Comentando o nº 1 do citado artigo 15º, dizem Gomes
Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª
edição, 134) que tal norma se inscreve 'na orientação mais avançada quanto ao
reconhecimento de direitos fundamentais a estrangeiros e apátridas', não fazendo
a Lei Fundamental, salvo as excepções do nº 2, 'depender da cidadania portuguesa
o gozo dos direitos fundamentais, bem como a sujeição aos deveres fundamentais',
sendo o estabelecimento de um tal princípio 'o que se chama tratamento nacional,
isto é, um tratamento pelo menos tão favorável como o concedido ao cidadão do
país, designadamente no que respeita a um certo número de direitos
fundamentais'.
Por outro lado, por entre os direitos e garantias
fundamentais elencados no Diploma Básico, consagra-se no seu artigo 20º o
asseguramento, a todos, do 'acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos
seus direitos e interesses legítimos' (tenha-se em conta, como manifestação ou
refracção desta garantia, o direito de recurso contencioso contra actos
administrativos ilegais estatuído no nº 4 do artigo 268º), explicitando-se que a
justiça não pode 'ser denegada por insuficiência de meios económicos' e
igualmente se concedendo, também a todos, 'o direito, nos termos da lei, à
informação e consulta jurídicas e ao patrocínio judiciário' . Aqueles direito e
garantia, não estão, desta sorte, reservados, quer constitucional, quer
legalmente, tão só aos cidadãos portugueses.
Ainda de outra banda, está garantido pela Constituição
(nº 6 do artigo 33º) 'o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas
perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua
actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre
os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana' (cfr., contudo, a
ampliação das razões de perseguição, para além das enunciadas na Lei
Fundamental, levada a cabo pelo nº 2 do artº 2º da Lei nº 70/93, de 29 de
Setembro e, bem assim, o regime excepcional constante do seu artº 10º), direito
esse cuja concessão (que compete ao Ministro da Administração Interna - cfr.
artº 11º da aludida Lei) lhe confere o estatuto de refugiado (cfr. artº 3º da
mesma Lei) e não pode deixar de ser entendido como comportando, também ele, um
direito subjectivo daqueles estrangeiros e apátridas objecto de perseguição 'a
obter refúgio e asilo noutro Estado e a não ser remetido para o país de onde
provém' (G. Canotilho e V. Moreira, ob. e edição citadas, 211).
De notar que a concessão de asilo e o consequente
estatuto de refugiado político tem os efeitos consignados nos artigos 7º e 9º e
desencadeia a situação jurídica prevista no artº 7º, todos da Lei nº 70/93.
2.2. Torna-se claro que o assinalado asseguramento de
acesso aos tribunais, a par da proibição de denegação de justiça por
insuficiência de meios económicos, sabido que é que, em muitos casos, para
naqueles se pleitear se torna necessária a constituição de advogado, há-de
implicar, nas hipóteses daquela insuficiência, que se confira o direito ao
«patrocínio judiciário».
Significa isto, em consequência, que, muito embora o
exercício e as formas do «direito ao patrocínio judiciário» seja, pelo nº 2 do
artigo 20º da Constituição, relegado para a lei, o que é certo é que, dada a
implicação a que acima se fez referência, a lei ordinária não poderá estabelecer
condicionantes ou requisitos tais que dificultem ou tornem por demais difícil o
exercício daquele direito ou, ainda acentuadamente, restrinjam o respectivo
conteúdo, sob pena de aqueloutro direito de acesso aos tribunais 'não passar de
um «direito fundamental formal»', para se usarem as palavras dos comentadores já
citados (mesmas obra e edição, 163).
2.3. Perante estes parâmetros, inquestionavelmente será
de aceitar que, do ponto de vista constitucional, está garantido a um
estrangeiro ou apátrida solicitante de asilo político e, sequentemente, do
estatuto de refugiado político (ou seja, como alguém que exercita um direito
subjectivo reconhecido constitucionalmente), que sindique o acto administrativo
que denegue um tal pretensão, se entender que o mesmo padece de ilegalidade.
Ora, como esse acto é, como se viu, da responsabilidade
do Ministro da Administração Interna, a respectiva sindicância jurisdicional só
poderá ocorrer perante o Supremo Tribunal Administrativo [vide alínea e) do nº 1
do artº 26º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo
Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril]; e como nesse Supremo Tribunal, como
tribunal administrativo que é, é obrigatória a constituição de advogado nos
processos da respectiva competência (artº 5º da Lei de Processos nos Tribunais
Administrativos aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho), segue-se
que a impugnação contenciosa do acto denegatório da concessão de asilo só poderá
ocorrer se o cabido petitório se encontrar formulado por um advogado.
Sendo isto assim, postando-se uma situação em que o
estrangeiro ou apátrida, impetrante de asilo e carecido de meios económicos
bastantes que lhe permitam suportar as despesas com os honorários de um advogado
ou com os encargos normais de processo de impugnação contenciosa que corra
termos pelo S.T.A., não concorde com o acto que lhe não deferiu a sua pretensão,
por o entender ferido de legalidade, resulta da norma que deflui das disposições
conjugadas dos artigos 7º, nº 2, do D.L. nº 387-B/87 e 1º, nº 2, do D.L. nº
391/88, que lhe não será possível levar a cabo a impugnação desse acto. Já assim
não ocorrerá se se tratar de um estrangeiro ou apátrida, identicamente
peticionante de asilo que lhe não foi concedido, caso disponha dos meios
económicos suficientes para o custeio das despesas normais do pleito, nestas se
incluindo o pagamento dos honorários a advogado que o represente.
É patente, assim, a desigualdade que, com aquelas
disposições legais, se cria, sendo certo que numa e noutra das referidas
situações, e tendo em conta o desejado resultado - a impugnação de um acto que,
na perspectiva dos por ele lesados, ilegalmente teria ofendido um direito
subjectivo que se propunham exercitar e que, em abstracto, lhes era
constitucionalmente atribuído (para além de, de igual modo do ponto de vista
constitucional, lhes ser reconhecido o direito de acesso aos tribunais) - à
partida se assumem como substancialmente idênticas.
Afigura-se, desta sorte, que a norma resultante das
mencionadas disposições legais vai, de modo directo, ofender o princípio da
igualdade projectado na garantia de acesso aos tribunais e o direito ao
patrocínio judiciário previstos no artigo 20º, na medida em que, sem que se
anteveja que o faça com vista à salvaguarda de outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, restringe o referido direito de acesso,
porquanto impede que um estrangeiro ou apátrida, nas citadas condições de
carência económica, instaure um processo de impugnação contenciosa do acto
administrativo que lhe não concedeu asilo.
3. Não se vá sem assinalar que, como sublinha o acórdão
recorrido, não está em causa, neste momento, a questão de saber se o requerente
de asilo, na pendência do pedido, deve, ou não, nas causas em que figure como
interessado ou «parte», beneficiar da protecção jurídica, tal como se encontra
estruturada pelo D.L. nº 397-B/87.
Na verdade, o que aqui interessa decidir é se, do ponto
de vista constitucional, lhe pode, através da norma que se extrai dos preceitos
sob censura, ser retirado o direito ao apoio judiciário no próprio processo cujo
objectivo, ao fim e ao resto, é o de visar efectivar o exercício de um seu
direito subjectivo consagrado no Diploma Básico, questão à qual o Tribunal
responde negativamente.
III
Em face do exposto decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos
18º, nº 2 e 20º, números 1 e 2, da Constituição, a norma que se extrai da
leitura conjugada do nº 2 do artº 7º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de
Dezembro, e do nº 1 do artº 1º do Decreto-Lei nº 391/88, de 26 de Outubro,
segundo a qual (salvo se as leis do Estado da respectiva nacionalidade não
atribuam aos portugueses idêntico direito) não gozam do direito de apoio
judiciário, incluindo o patrocínio judiciário, os estrangeiros ou apátridas que,
não sendo detentores de autorização de residência válida em Portugal, ou que,
sendo-o, aqui não residam regular e continuadamente por um período não inferior
a um ano, hajam solicitado, sem êxito, a concessão de estatuto de refugiado
político e pretendam impugnar contenciosmente a decisão que esse estatuto lhes
denegou e,
b) em consequência, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 20 de Junho de 1995
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida