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Proc. nº 807/95 ACÓRDÃO Nº 514/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A, com sede em Lisboa, foi punida pela prática de uma contra-ordenação prevista no Decreto-Lei nº 251/92, de 12 de Novembro (Regime Jurídico do Fomento, Exploração e Conservação dos Recursos Cinegéticos), com a coima de 75.000$00, aplicada por decisão do presidente do Instituto Florestal do Ministério da Agricultura. Inconformada, interpôs recurso da decisão sancionatória para o Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo. Este recurso foi julgado improcedente por decisão proferida em 7 de Outubro de 1995, embora a coima aplicada passasse a ser de 50.000$00, tendo sido alterada a qualificação da contra-ordenação (a fls. 37 a 39 dos autos). Quanto à questão de ilegalidade ou de inconstitucionalidade suscitada no recurso do acto sancionatório, considerou-se nesta decisão o seguinte:
' O Dec-Lei nº 251/92 de 12 de Novembro surgiu no desenvolvimento jurídico estabelecido pela Lei nº 30/86 de 27/08 e nos termos das als. a) e c) do nº 1 do art. 201º da Constituição da República Portuguesa, conforme decorre do preâmbulo daquele diploma legal. Assim, ao estabelecer novos limites quanto à punição das contra-ordenações, e porque tal Dec-Lei se reveste da mesma força jurídica que a Lei supra mencionada, tem de entender-se que os nºs. 13 e 14 da Lei nº 30/86 foram revogados tacitamente pelo Diploma em causa, no que concerne às contra-ordenações previstas no seu art. 116º, pelo que esta norma não enferma de qualquer ilegalidade.
Consequentemente, e porque como vimos, o Dec-Lei 251/92 não se pode considerar como reportado ao Regime Geral das Contra-Ordenações, dispensamo-nos de comentar o alegado pela recorrente quanto à inconstitucionalidade do art. 116º, ora em questão.' (a fls. 39).
Não se conformando com esta decisão, de novo A a impugnou, desta feita através de recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do art. 70º da lei orgânica deste Tribunal, pretendendo que fosse apreciada a questão da ilegalidade ou da inconstitucionalidade das normas contidas no nº 2 do art. 116º do Decreto-Lei nº
251/92, de 12 de Novembro. Indicou os seguintes fundamentos:
'a) por violação do disposto nos números 13 e 14 do artigo 31º da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, o que constitui ilegalidade prevista no nº 2 do artigo 115º da CRP (violação da lei de valor reforçado);ou, quando se entenda reportada ao regime geral das contra-ordenações:
b) por violação da alínea d) do nº 1 do artigo 168º da CRP (falta de autorização legislativa da Assembleia da República) uma vez que as normas sob apreciação são contraditórias com as do artigo 17º do Decreto-Lei nº 433/82, de
27 de Outubro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, o que constitui inconstitucionalidade nos termos do nº 1 do artigo 277º da CRP'
(a fls. 41).
Este recurso foi admitido por despacho de fls.
48, proferido em 20 de Novembro de 1995.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações a sociedade recorrente e o Ministério Público.
Nas suas conclusões, a recorrente manteve a suscitação das questões de ilegalidade por violação de lei de valor reforçado
('O Decreto-Lei nº 251/92... é diploma de desenvolvimento de bases gerais insertas na Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, conforme resulta do seu preâmbulo...', por isso, 'a alínea c) do nº 2 do artigo 116º do Decreto-Lei nº
251/92... é ilegal porque prevê limites mínimos e máximos diferentes e superiores aos previstos nos nºs. 13 e 14 do art. 31º da Lei nº 30/86...') e de inconstitucionalidade, em alternativa, pedindo a revogação da decisão recorrida.
Quanto à questão de inconstitucionalidade, concluiu do seguinte modo:
' E ainda,
c) A norma contida na alínea c) do nº 2 do artigo 116º do Decreto-Lei nº 251/92, de 12 de Novembro, ao ter fixado, respectivamente, em 50.000$00 e 500.000$00 os limites mínimos e máximos da coima aplicável à infracção tipificada na alínea a) do nº 1 do artigo 116º do mesmo diploma, constitui inovação legislativa por dispor diferentemente dos limites mínimo e máximo das coimas previstos no art.
17º do Regime Geral das Contra-Ordenações (DL 433/82, de 27 de Outubro e DL
356/89, de 17 de Outubro) em que os limites mínimos e máximos são de 10.000$00 e
200.000$00, por ser aplicável, por remissão, o nº 13 do art. 31º da Lei 30/86, de 27 de Agosto.
d) O Governo, ao decretar a norma em causa, através do Decreto-Lei nº 251/92, sem a necessária autorização da Assembleia da República violou o disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, e os princípios nela consagrados...' (a fls. 57 e 58)
Por seu turno, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'
1º
Apenas se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, decorrente do estatuído na alínea d) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa, o estabelecimento do regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
2º
Nada obsta a que o Governo possa, no exercício da sua competência legislativa própria, sancionar as contra-ordenações que preveja e tipifique com coimas cujos limites mínimo e máximo não sejam, respectivamente, inferior e superior aos previstos no Decreto-Lei nº 433/82 na redacção que vigorava ao tempo da edição do diploma legal em causa.
3º
Confirmando-se os limites mínimo e máximo das coimas previstas na alínea c) do nº 2 do artigo 116º do Decreto-Lei nº 251/92, de 12 de Novembro, com os limites mínimo e máximo previstos no Decreto-Lei nº 433/82, na redacção emergente do Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, não se verifica qualquer inconstitucionalidade normativa.' (a fls. 66 dos autos).
3. Foram dispensados os vistos, atendendo
à jurisprudência existente nesta matéria e à simplicidade da matéria de facto constante dos autos.
Impõe-se, assim, conhecer do objecto do recurso.
II
4. Face à formulação do requerimento de interposição do recurso de fls. 41 e 42, verifica-se que a sociedade recorrente pretendeu impugnar a constitucionalidade ou a legalidade da nº 2 do art. 116º do Decreto-Lei nº 251/92, de 12 de Novembro.
Acontece que o teor deste requerimento não é muito claro, sendo duvidoso se a recorrente interpôs recursos alternativos ou um recurso principal e um subsidiário.
Estando simultaneamente impugnada a constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e a legalidade da mesma norma, nos termos da alínea f) do mesmo número e artigo desta lei orgânica, parece mais lógico começar por apreciar a questão de constitucionalidade, visto que o vício de inconstitucionalidade é mais grave do que o de ilegalidade e, a proceder o recurso no plano da constitucionalidade, deixará de ter utilidade a apreciação da legalidade da norma face a uma alegada lei de valor reforçado (Lei nº 30/86, de 27 de Agosto).
5. Deve delimitar-se, antes de mais, o objecto do recurso.
A decisão recorrida condenou a ora recorrente ao pagamento da coima prevista na alínea c) do nº 2 do art. 116º do Decreto-Lei nº
251/92.
De harmonia com esse preceito:
' As contra-ordenações previstas no número anterior são punidas com as seguintes coimas:
---------------------------------------------- c) De 50.000$00 a 500.000$00 no caso das alíneas a), b), j), n), o) e q);
----------------------------------------------
Ainda segundo a mesma decisão recorrida, a contra-ordenação praticada pela ora recorrente, como autora moral, foi a prevista na alínea a) do nº 1 do mesmo art. 116º ('constituem contra-ordenações de caça: a) o exercício da caça sem a licença de caça que for exigível;...).
Deve, por isso, restringir-se o objecto do recurso às questões de constitucionalidade e de legalidade da alínea c) do nº 2 do art. 116º do Decreto-Lei nº 251/92.
6. Desde já se deixará afirmado que a norma impugnada não sofre de inconstitucionalidade, não se mostrando violada a segunda parte da alínea d) do nº 1 do art. 168º da Constituição.
O entendimento desta norma constitucional está fixado, de forma unânime e sem discrepâncias, na jurisprudência constitucional desde o acórdão nº 56/84 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., págs.
153 e segs.). Assim, é da exclusiva competência da Assembleia da República, em matéria de ilícito de mera ordenação social, legislar sobre o regime geral das contra-ordenações e respectivo processo. A par desta competência exclusiva, embora delegável ao Governo através de autorização legislativa, são ainda da competência exclusiva do órgão parlamentar, em matéria de Direito Sancionatório Público e admitindo a subsistência constitucional da figura da contravenção, definir crimes e penas em sentido restrito, legislar sobre o regime geral das contravenções e respectivos processos e definir contravenções puníveis com pena de prisão e modificar a medida desta. Em compensação, é da competência legislativa concorrente da Assembleia da República e do Governo definir, dentro dos limites do regime geral, contravenções não puníveis com pena restritiva da liberdade e contra-ordenações, alterá-las, eliminá-las e modificar a sua punição e, ainda dentro dos mesmos limites, desgraduar contravenções não puníveis com penas restritivas de liberdade em contra-ordenações (citado acórdão, III, nº 17, in Acórdãos cit., págs.173 e 174).
Diferentemente do que sustenta a recorrente, pode o Governo, através de decreto-lei não autorizado, fixar limites para as coimas aplicáveis às contra-ordenações tipificadas nesse diploma superiores aos mínimos fixados no diploma que contém o regime geral do ilícito de mera ordenação social, vigente à data da elaboração daquele decreto-lei. O que o Governo não pode, seguramente, é fixar limites mínimos inferiores aos limites mínimos constantes desse regime geral ou fixar limites superiores aos limites máximos constantes do mesmo regime geral.
Na data da edição do Decreto-Lei nº 251/92, o limite mínimo para as coimas aplicáveis a pessoas singulares achava-se fixado em
500$00, sendo os limites máximos de coimas fixados para as pessoas colectivas de
6.000.000$00, em caso de dolo, e de 3.000.000$00, em caso de negligência (art.
17º, nº 1 e 3, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, na versão do Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro; hoje, esses limites foram actualizados pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro, mas tal alteração é irrelevante para o presente caso).
Ora, sendo o limite mínimo de 50.000$00 não inferior ao limite mínimo geral de 500$00 (ou de 10.000$00, se se considerasse a Lei nº 30/86) é manifesto que a norma impugnada não sofre de inconstitucionalidade orgânica.
7. É, aliás, irrelevante, contrariamente ao que sustenta a recorrente, que uma lei da Assembleia da República - no caso, a Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, Lei da Caça - tenha estabelecido no nº 13 do seu artigo 31º que 'às infracções não punidas como crimes nos termos dos números anteriores será aplicada coima de 10.000$00 a 200.000$00'. Este preceito carece de suficiente tipificação quanto às diferentes contra-ordenações nele referidas, tipificação essa que veio a ser feita por diploma legal posterior emanado do Governo (art. 102º do Decreto-Lei nº 274-A/88, de 3 de Agosto, revogado pelo art. 143º do Decreto-Lei nº 251/92).
De facto e como demonstra o Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, trata-se de equívoco em que caiu a recorrente a suposição de que, 'pela simples circunstância de a Lei nº 30/86 ter tipificado e sancionado determinados comportamentos como contra-ordenações, tal matéria teria passado a integrar a reserva de competência legislativa da Assembleia da República - não sendo legítimo ao Governo, em diploma não credenciado por autorização parlamentar, modificar os limites daquelas coimas, ainda que movendo-se dentro dos limites estipulados pelo regime geral do ilícito de mera ordenação social' (a fls. 63 e 64 dos autos). Com efeito, não é pelo facto de a Assembleia da República ter legislado antes sobre matéria de consequências do ilícito de mera ordenação social, nomeadamente sobre os montantes das respectivas coimas, mas no quadro do regime geral deste ilícito constante do citado Decreto-Lei nº 433/82, que fica impedido o Governo de legislar depois sobre a mesma matéria, uma vez que são concorrentes as competências legislativa de ambos os Órgãos de Soberania nesta matéria, como atrás se deixou indicado.
8. De harmonia com o que se deixa afirmado e entrando agora na apreciação do recurso de legalidade, tem de concluir-se que não pode encarar-se, no caso sub judicio, uma situação de violação de lei de valor reforçado, ao contrário do que sustenta a recorrente.
É certo que a Lei nº 30/86 (Lei da Caça) integra, nos termos do seu art. 1º, 'as bases para a protecção, conservação e fomento da fauna cinegética bem como da administração da caça'. Não é menos certo que esta lei prevê a necessidade de o Governo publicar diferentes regulamentos (art. 45º) e que, por outro lado, o Decreto-Lei nº 251/82 foi elaborado pelo Governo 'no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, e nos termos das alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 201º da Constituição'.
Simplesmente, no que toca ao ilícito de mera ordenação social, os nºs. 13 e 14 do art. 31º da Lei nº 30/86 não podem considerar-se normas de uma lei de bases, antes estabelecem de imediato normas sancionatórias para certas infracções contra-ordenacionais, por exclusão de partes com referência aos comportamentos de natureza criminal tipificados nos anteriores números do mesmo art. 31º.
Assim sendo, não pode considerar-se que o legislador governamental, ao editar os Decretos-Leis nºs. 274-A/88, de 3 de Agosto, e, depois, o Decreto-Lei nº 251/92, de 12 de Novembro, e no que toca à matéria de ilícito de mera ordenação social, não se movesse nos quadros do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, diferentemente do que se deixou afirmado na decisão recorrida.
Tratando-se de competências concorrentes entre a Assembleia da República e o Governo, podia este último aumentar os limites das coimas fixadas em 1986 e mantidas em 1988, dado entretanto ter sido publicado o Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro.
Não havia, assim, que recorrer à ideia de violação da lei de valor reforçado no caso sub judicio.
9. Sempre hão-de improceder os recursos interpostos pela sociedade recorrente.
III
10. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento aos recursos de constitucionalidade e de legalidade, confirmando a decisão recorrida, embora por fundamentos diversos.
Lisboa, 21 de Março de 1996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Luis Nunes de Almeida