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Acórdão 983/96 ACTA
Aos sete de Agosto de mil novecentos e noventa e seis, achando-se presentes o Exmº. Conselheiro Presidente José Manuel Moreira Cardoso da Costa e os Ex.mos Conselheiros Guilherme da Fonseca, Armindo Ribeiro Mendes, José de Sousa e Brito, Luís Nunes de Almeida, Messias Bento e Fernando Alves Correia, foram trazidos à conferência, nos termos do artigo 12º, nº 5, da Lei nº
49/90, de 24 de Agosto, os presentes autos de apreciação da constitucionalidade e legalidade de consulta local.
Após debate e votação, foi pelo Ex.mo Presidente ditado o seguinte
ACÓRDÃO Nº 983/96
1. O presidente da Assembleia Municipal de Estarreja veio requerer ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 11º, nº 1, da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, a apreciação da constitucionalidade e legalidade da consulta directa aos cidadãos eleitores cuja realização foi aprovada por esse órgão autárquico, em sessão extraordinária de 12 de Julho findo, consulta essa que se pretende que abranja as seguintes perguntas:
1º.- Deve a Assembleia Municipal de Estarreja tomar posição favorável à construção de uma unidade de incineração e tratamento físico-químico de resíduos industriais no Município? - SIM/NÃO; 2ª.- Deve a Câmara Municipal dar parecer favorável ou aprovar a instalação ou construção de uma unidade de incineração de tratamento físico-químico de resíduos industriais no Município em qualquer processo administrativo em que intervenha relativo a loteamento, obras de urbanização, obras de construção, Plano Municipal de urbanização ou licenciamento industrial? - SIM/NÃO.
Ao requerimento juntou o requerente - cumprindo assim o preceituado no nº 2 do citado artigo 11º - cópia do texto da deliberação assim tomada pela assembleia municipal em causa, bem como cópia da acta da respectiva sessão.
2. Face ao teor da deliberação da Assembleia Municipal de Estarreja e ao que consta da correspondente acta, pode logo afirmar-se que se acham verificados alguns dos requisitos ou pressupostos formais da regularidade da realização da consulta. Assim: - a correspondente deliberação - tendo sido aprovada por doze votos a favor com dez abstenções, achando-se presente a maioria do número legal dos membros da assembleia - foi tomada à pluralidade de votos (artigo 9º, nº 2); - a proposta aprovada pela assembleia municipal continha as perguntas a submeter aos cidadãos eleitores, ficando o número destas aquém de três (artigo 9º, nº 1); - as perguntas, ao menos de um ponto de vista formal, acham-se formuladas em termos que consentem uma resposta inequívoca pela simples afirmativa ou negativa (artigo 7º, nº 1, todos da Lei nº 49/90).
Já, porém, não se alcança de qualquer dos documentos juntos ao requerimento inicial, só por si, que - tendo a proposta para a realização da consulta partido de um conjunto de membros da Assembleia Municipal de Estarreja
- se haja respeitado a exigência da alínea b) do artigo 8º, ainda da mencionada Lei, a saber, que essa proposta haja sido subscrita, no mínimo, por um terço dos membros daquela assembleia em efectividade de funções: na verdade, a simples indicação de que a proposta foi apresentada pelos 'grupos parlamentares' do Partido Popular e do Partido Social Democrata nada diz, em rigor, acerca da expressão quantitativa dos subscritores dela. A correcção de tal deficiência haveria de obter-se fazendo uso da faculdade prevista no nº 2 do artigo 12º da Lei nº 49/90 - a menos que se pudesse supri-la oficiosamente através do recurso ao Mapa Oficial dos resultados das últimas eleições autárquicas.
Seja como for, não se torna necessário proceder ao preciso apuramento do ponto acabado de referir, já que outras razões há que inviabilizam, no plano constitucional e legal, a possibilidade de realização da consulta em apreço.
3. Nos termos do artigo 5º da Lei nº 49/90, 'as consultas locais têm eficácia deliberativa'. Não esclarecendo a lei, mais desenvolvidamente, em que haja de consistir esse tipo de eficácia das consultas, certo é que, em particular, não a reconduz a um imediato efeito ou alcance 'substitutivo' - tal que, para o respectivo resultado ser logo operativo na ordem jurídica, se dispense a sua 'execução', através de uma deliberação formal, com conteúdo idêntico ou correspondente, de todo e qualquer órgão autárquico local.
Assim, deverá entender-se que a exigência de uma tal 'eficácia deliberativa' da consulta é igualmente cumprida quando o objectivo e o efeito da mesma consulta forem tão-só - como no caso - o de predeterminar o conteúdo ou o sentido de deliberações a tomar por um ou mais órgãos autárquicos (a propósito, cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, artigo 241º, nota VIII, p. 894, os quais questionam mesmo se não terá de ser esse o objecto ou configuração das consultas locais).
Ainda não será por este lado, pois, que se haverá de inviabilizar a realização da consulta em apreço.
4. Simplesmente, nos termos do disposto do artigo 241º, nº 3, da Constituição, as consultas populares que os órgãos das autarquias locais são admitidos a fazer só podem incidir sobre matérias incluídas na sua competência exclusiva; e o mesmo veio dispor-se (em obediência, evidentemente, a esse comando constitucional) no artigo 2º, nº 1, da Lei nº 49/90, segundo o qual as consultas incidem sobre matéria da exclusiva competência dos órgãos autárquicos.
Quer isto dizer que, tratando-se de consultas promovidas por uma assembleia municipal, no respectivo âmbito territorial, elas só podem recair sobre matérias da competência dos órgãos do município, consoante se especifica no artigo 6º, nº 1, ainda da Lei nº 49/90. E quer - obviamente - dizer também que, destinando-se a consulta a condicionar ou predeterminar o sentido de subsequentes deliberações de certos órgãos autárquicos (no caso, os órgãos municipais), importa que dos termos dela resulte com clareza qual ou quais as competências desses órgãos tidas em vista: é isso, na verdade, indispensável para saber se se está verdadeiramente perante uma 'matéria de exclusiva competência' dos mesmos órgãos.
Entretanto, este Tribunal já teve ocasião de esclarecer, em jurisprudência reiterada (cfr., primeiro, Acórdãos nºs 238/91 e 242/91, em
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 19º vol., p. 673 e 687, e, depois, Acórdão nº 498/94, no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1994), que a circunstância de num determinado procedimento, conducente à decisão final de outra entidade (o legislador ou a Administração central), se inscrever um passo ou trâmite consistente na emissão obrigatória de um parecer por um órgão autárquico não é suficiente para preencher a exigência ou condição legal agora considerada: - seja, desde logo, porque não parece ser a uma competência
'consultiva' (mas antes às competências 'deliberativas' dos órgãos autárquicos) que a Constituição e a lei se referem quando delimitam o campo de matérias em que pode ter lugar a realização de consultas locais; - seja, depois, porque, numa situação desse tipo, a competência autárquica, em último termo, nunca se poderia caracterizar como 'exclusiva', conforme é qualificadamente exigido pelo artigo 214º, nº 3, da Constituição e pelo artigo 2º, nº 1, da Lei nº 49/90.
Ora, tendo em conta tudo o que vem de ser dito, haverá de concluir-se que a consulta em apreço, que a Assembleia Municipal de Estarreja deliberou realizar, não se contém dentro do rigoroso condicionalismo, que vem de ser evocado, constitucional e legalmente estabelecido para a realização de consultas locais - e isso, tanto quanto à primeira, como quanto à segunda das perguntas que incluiria. Dir-se-á de seguida, sucintamente, porquê.
5. Pelo que respeita à primeira pergunta - visando condicionar a Assembleia Municipal a 'tomar posição favorável', ou não, à construção da unidade de incineração e tratamento de resíduos industriais no município -, dir-se-á que fica logo por esclarecer, em rigor, a específica competência desse
órgão autárquico a cujo exercício a mesma pretende reportar-se (o que, como antes se viu, se afigura indispensável).
Mas a isso acresce que, se o teor da pergunta, apesar de tudo, algo pode ainda sugerir a tal respeito, será que se tem em vista, não propriamente uma competência 'deliberativa' (hoc sensu) das assembleias municipais (isto é, concretizada na tomada de uma decisão jurídico-vinculativa de efeito imediato), mas antes uma competência de outro tipo, traduzida na emissão, seja de um 'parecer', seja de um 'voto' com alcance essencialmente
'político', visando a 'decisão' de outra entidade. Ora, como igualmente se viu, também isto não chega para que se preencha o condicionalismo constitucional e legal das consultas locais, que está a considerar-se.
6. Quanto à segunda das perguntas previstas - a que visa condicionar a Câmara Municipal de Estarreja, seja a 'dar parecer favorável', ou não, seja a 'aprovar', ou não, a instalação da unidade de incineração e tratamento de resíduos industriais na área do respectivo município, e isso em qualquer processo administrativo em que seja chamada a intervir - não poderá, porventura, excluir-se que abranja também o exercício de competências específicas (e que devam mesmo qualificar-se como 'exclusivas') da Câmara, atenta a extensão e variedade de intervenções possíveis desse órgão autárquico que contempla.
Saber se é assim ou não - e saber se, nesse caso, se poderia condicionar validamente em toda a extensão pretendida o exercício dos poderes camarários (o que seria ainda outro aspecto do problema) - é algo que, todavia,
só poderia afirmar-se, com rigor e segurança, conhecidos que fossem dados que os autos não fornecem. Tais dados seriam os relativos, nomeadamente, à entidade ou organismo a que cabe a iniciativa e responsabilidade pela construção, instalação e funcionamento da unidade de incineração em causa, e à situação actual do processo ou processos administrativos a ela respeitantes, em particular no que concerne ao facto de neles já haverem sido eventualmente praticados actos administrativos consolidados na ordem jurídica.
É essa, porém, uma indagação que o Tribunal não precisa de promover, e isso porque, seja como for - isto é, ainda que, por hipótese, a pergunta de que ora se trata abranja o exercício de competências que mereçam qualificar-se (questão que fica em aberto) como 'exclusivas' da Câmara Municipal de Estarreja -, sempre tal pergunta vai claramente além disso, quando nela se pretende igualmente predeterminar o sentido ou o conteúdo de simples
'pareceres' a emitir por esse órgão autárquico, no decurso de procedimentos em que a decisão final cabe a outra entidade, v.g., a Administração central.
Que tal não é compaginável com o disposto no nº 1 do artigo 2º da Lei nº 49/90, foi o que antes se viu. E que tal, no caso, sempre há-de conduzir à inadmissibilidade da pergunta em causa, nos termos em que se encontra formulada, é o que resulta da óbvia falta de poder do Tribunal para 'reduzi-la' ou 'reformulá-la' - isto na hipótese (só como tal contemplada, insiste-se) de ela abranger, de todo modo, matéria de 'exclusiva' competência camarária.
7. Pelo que vem de dizer-se, não haverá dúvida, pois, de que - seja qual for o mais preciso alcance que deva ou devesse atribuir-se às perguntas que incorpora - sempre a consulta directa aos cidadãos, ora em causa, tal como delineada pela Assembleia Municipal de Estarreja, não respeita, e quanto a ambas essas perguntas, o condicionalismo estabelecido pelo artigo 241º, nº 3, da Constituição e pelo artigo 2º, nº 1, da Lei nº 49/90.
Nestes termos, e atento o disposto na alínea a) do nº 3 do artigo 12º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, o Tribunal Constitucional decide não admitir o requerimento de apreciação da constitucionalidade e da legalidade da consulta local, a que respeita a deliberação da Assembleia Municipal de Estarreja, de 12 de Julho do ano corrente.
Guilherme da Fonseca
Armindo Ribeiro Mendes
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Messias Bento
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa