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Processo nº 517/94
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1.- A. e B., identificados nos autos, apresentaram, em
requerimento dirigido ao Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, nos
termos do artigo 688º do Código de Processo Civil (CPC), reclamação do despacho
de 20 de Junho de 1994 do Conselheiro Relator, no processo nº 46 365 (3ª Secção
- 2ª Subsecção) a correr termos no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que não
admitiu o recurso por eles interposto do acórdão desse Supremo de 5 de Maio de
1994.
Sustentaram os recorrentes, ora reclamantes, que
este acórdão acolheu orientação já anteriormente julgada inconstitucional do
artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 (CPP 29), entendimento não
seguido, no entanto, pelo magistrado relator, que não admitiu o recurso.
Inconformados, reagiram os mesmos, porquanto -
dizem - 'a orientação seguida pelo Acórdão em apreço contraria frontalmente a
admissibilidade do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto
acolhida pelo Acórdão nº 401/91 desse Tribunal Constitucional em interpretação
do artº 665º já citado'.
Foi junta aos autos cópia autenticada das seguintes
peças processuais:
- acórdão de 15 de Junho de 1992, do
Circulo Judicial de Évora, que, além do mais, condenou cada um dos reclamantes,
em cúmulo jurídico, como co-autores de vários crimes, à pena única de doze anos
e seis meses de prisão, bem como a pena de multa;
- acórdão de 5 de Janeiro de 1993, do
Tribunal da Relação de Évora, que, essencialmente, confirmou a decisão da 1ª
instância;
- acórdão de 5 de Maio de 1994, do STJ,
que negou provimento ao recurso dos arguidos, mantendo na íntegra o acórdão
recorrido.
E, em momentos posteriores:
- alegações apresentadas pelos arguidos
nos recursos para a Relação e para o STJ;
- parecer do magistrado do Ministério
Público junto do STJ;
- requerimento dos reclamantes, relativo
ao recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do STJ, pelo qual se
verifica terem estes agido com fundamento na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para assim reagirem ao acórdão recorrido que
'fez um entendimento do artigo 665º do Código de Processo Penal que traduz a sua
aplicação em sentido contrário ao anteriormente decidido pelo Tribunal
Constitucional no Acórdão nº 401/91'.
O Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal foi de
parecer ser manifestamente improcedente a reclamação deduzida, com argumentação
que se indicará adiante.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2.- Os reclamantes, nas suas alegações, pretendem que o
acórdão do STJ terá violado o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição da
República (CR), no entendimento dado pelo acórdão nº 401/91 do Tribunal
Constitucional que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, da norma do artigo 665º do CPP de 1929, na interpretação do assento de
29 de Junho de 1934 (acórdão publicado no Diário da República, I Série-A, de 8
de Janeiro de 1992), imputação que corrigiram ao interporem recurso de
constitucionalidade: o acórdão recorrido, na tese dos interessados, terá feito
um entendimento daquele artigo 665º que traduz a sua aplicação em sentido
contrário ao anteriormente decidido pelo citado aresto nº 401/91.
Assim, concedendo-se provimento ao recurso, deverá
ser ordenada a reapreciação da requerida prova testemunhal.
No entanto, o Conselheiro Relator actuou
diferentemente , ao não receber o recurso: o aresto, em sua perspectiva, não
aplicou a norma do artigo 665º, enquanto delimitadora do conhecimento da matéria
de facto pela Relação, mas, sim, a norma desse artigo, integrada pelas
disposições do Código de 1987, nomeadamente as dos seus artigos 433º e 410º.
Por sua vez, para o magistrado do Ministério
Público neste Tribunal, e como já se registou, a reclamação deve improceder.
Em primeiro lugar, por não se verificarem os pressupostos de admissibilidade do
recurso de constitucionalidade com base na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da
Lei nº 28/82, residindo o fundamento invocável na alínea g) do preceito.
Depois, por que os reclamantes partem do pressuposto de que, segundo o acórdão
nº 401/91, a garantia de segundo grau de jurisdição, quanto à matéria de facto
no âmbito do processo penal, envolve, necessariamente, a possibilidade ou o
direito de o arguido obter a repetição da prova produzida na 1ª instância, em
audiência perante a Relação, sempre que discorde com o decidido, por considerar
ser a prova insuficiente para a sua condenação - o que não é assim, como,
aliás, resulta do acórdão citado, ao relativizar o princípio da dupla jurisdição
no processo penal.
Com efeito, aí se ponderou não poder entender-se a
exigência do duplo grau de jurisdição como significando a necessidade de
repetição da prova em audiência pública perante as Relações. 'É que
(escreveu-se), entre o sistema em questão [o da estrutura do direito ao recurso
segundo o CPP 29] que, na prática, e na grande maioria das situações, reduz a
zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto, e o que
ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de
recurso, outros há certamente - não competindo ao tribunal indicá-los - que
não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve
assegurar, por força do citado preceito constitucional' (o nº 1 do artigo 32º da
CR).
O próprio aresto recorrido, observa o magistrado
do Ministério Público, reconhece que, não se impondo 'a repetição da prova com
audiência pública perante o Tribunal de recurso', mas 'podendo as Relações,
eventualmente e conforme os casos, recorrer a outros elementos de prova para
alterar a decisão do Tribunal Colectivo', é manifesto que o decidido não
afronta a jurisprudência constitucional emergente do Acórdão nº 401/91.
3.- O recurso interposto pelos ora reclamantes teve por
fundamento a alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, relativo às
decisões dos tribunais que 'recusem a aplicação de norma constante de acto
legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção
internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido
sobre a questão pelo Tribunal Constitucional'.
A alínea i), aditada pela Lei nº 85/89, de 7 de
Setembro, procurou resolver a divergência verificada ao nível da jurisprudência
das duas Secções deste Tribunal quanto a saber se este é ou não competente para
conhecer dos recursos de decisões em que fora apreciado o vício de
desconformidade entre uma norma de direito interno e uma norma de direito
internacional convencional (cfr. J. M. Cardoso da Costa, A Jurisprudência
Constitucional em Portugal, 2ª edição, Coimbra, 1992, págs. 26 e 27).
Limita-se, assim, a enunciar um específico
pressuposto que tem que ver com a competência do Tribunal para apreciar a
questão da contrariedade do acto legislativo com convenção internacional, nas
dimensões jurídico-constitucional e jurídico-internacional (cfr. Acórdãos nºs.
162/93, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Abril de 1993,
249/93, 366/93 e 54/95, estes inéditos, inter alia; cfr., igualmente o artigo
71º, nº 2, da Lei nº 28/82).
Não é este, obviamente, o caso vertente, em que não
está em causa qualquer confronto entre norma de direito interno e norma de
direito internacional convencional. O fundamento correcto residiria na alínea
g), pertinente à aplicação de norma já anteriormente julgada inconstitucional
pelo próprio Tribunal Constitucional e destina-se a fazer prevalecer as decisões
deste Tribunal em questões de inconstitucionalidade, como se observou já em
anteriores acórdãos (cfr. os nºs. 257/89 e 214/90, publicados no Diário da
República, II Série, de 29 de Agosto de 1989 e 17 de Setembro de 1990,
respectivamente): 'Do que se trata [ponderou-se neste último] é de não deixar
subsistir decisões de outros tribunais que julguem questões de
constitucionalidade divergentemente dos julgamentos feitos sobre a matéria pelo
Tribunal Constitucional, pois este é o órgão de soberania a quem «compete
especificamente administrar a justiça em matérias de natureza
jurídico-constitucional» (cf. artº 223º da Constituição), julgando-se em
derradeira instância'.
Logo aqui, por conseguinte, poderia entender-se
existir motivo suficiente para não se receber o recurso interposto pelos ora
reclamantes.
4.- Admita-se, no entanto, que uma benévola ponderação
possa atribuir a mero lapso a indicação da alínea i), quando, na verdade o que
se pretende é veicular a via de recurso através do apelo à alínea g).
De qualquer modo e, sem prejuízo do decidido
naquele acórdão nº 401/91, o recurso não devia ser recebido - como não foi.
Com efeito, ao debruçar-se sobre o acórdão da
Relação, teve o Supremo presente o acórdão do Tribunal Constitucional quando
considerou, de modo explícito, dele não resultar, no âmbito do recurso da
matéria de facto, a exigência da repetição da prova com audiência pública
perante o tribunal de recurso, podendo as Relações 'eventualmente e conforme os
casos, recorrer a outros elementos de prova para alterar a decisão do Tribunal
Colectivo', observando não se ter oferecido outros elementos de prova nem se
descortinando vícios, contradições, insuficiências, erros ou quaisquer outras
anomalias na matéria de facto susceptíveis de abalar o valor probatório.
Ou seja, o STJ não se ateve - não aplicou - à
norma do artigo 665º do CPP29 com a sobreposição interpretativa do assento, o
que implicaria a reanálise e eventual alteração da matéria de facto unicamente
em face de elementos do processo que pudessem ser contrariados pela prova
apreciada em julgamento e que houvesse determinado as respostas aos quesitos.
Mas, sendo assim, não está preenchido o pressuposto
legal exigido pela alínea g) do nº 1 o artigo 70º da Lei nº 28/82 para o
concreto recurso de constitucionalidade - o que basta para não se receber o
recurso interposto pelos ora reclamantes.
5.- Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de
justiça em 4 (quatro) unidades de conta.
Lisboa, 30 de maio de 1995
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
Antero Alves Monteiro Diniz (vencido, nos termos da
declaração de voto que produzi no Acórdão nº 54/95)
Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da
declaração de voto proferida no Acórdão nº 54/95)
José Manuel Cardoso da Costa