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Processo nº 490/94
2ª Secção
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A ... e mulher M..., com os sinais identificadores dos
autos, vieram 'nos termos do disposto no art. 688º, nºs 1 e 2 do C.P.C. e 76º,
nº 4 e 77º da lei nº 28/82, de 15 de Novembro, reclamar do despacho de não
admissão do recurso', proferido em 5 de Julho de 1994 pelo Relator do Processo
nº 7496, pendente no Tribunal da Relação de Lisboa, e que é do seguinte teor
integral (o despacho foi confirmado pelo acórdão do mesmo Tribunal, de 11 de
Outubro de 1994, 'nos termos do artº 69º da Lei nº 28/82 de 15/11 e 688º, nº 3
do C.P. Civil'):
'Os agravados A ... e M... vieram interpor recurso para o Tribunal
Constitucional do Acórdão que deu provimento ao agravo, por, em seu entender,
naquela decisão se ter dado interpretação ao artº 58º nºs 1 e 3 do R.A.U. que
viola o disposto nos artºs 13º e 65º nº 1 da Constituição da República.
Mais referem que a questão só agora é suscitada, por só agora ter ela
pertinência.
No que, salvo o devido respeito, não tem razão.
O referido acórdão acolheu a pretensão dos agravantes, pelo que a mesma decisão
não constitui surpresa para os agravados, que contra essa pretensão já se
poderiam ter defendido nas suas alegações de recurso, invocando a
inconstitucionalidade que, neste momento, querem fazer valer.
Assim, resta aplicar, aqui, o que tem sido a jurisprudência continuada do
Tribunal Constitucional, de que o recurso para este Tribunal, nos termos do
artº 70º, nº 1 alínea b) do Dec.Lei 28/82 de 15/11, só se justifica, quando
tenha havido uma decisão jurisdicional sobre constitucionalidade, previamente
suscitada pelo recorrente - cf. Acs do Tribunal Constitucional de 21/12/1983 e
23/10/1991, in BMJ, respectivamente 338, 207 e 410, 203 -. Deste modo, é, no
caso, inadmissível o recurso em causa.
Pelo exposto, não se admite o recurso interpos
to a fls. 224'.
2. No requerimento invocaram os reclamantes, em resumo, o
seguinte:
a) no citado Processo nº 7496, 'o ora reclamante teve a
posição processual de recorrido', pois, 'a decisão proferida em 1ª instância
foi-lhe favorável' e 'diga-se que não seria lícito nas contra-alegações
apresentadas invocar qualquer inconstitucionalidade';
b) proferida que foi 'uma decisão desfavorável ao ora
reclamante e sem recurso ordinário' (decisão do Tribunal da Relação de Lisboa),
veio 'então o ora reclamante a deduzir incidente processual de nulidades ao
abrigo do disposto no artº 668º, nº 1, al. a) C.P.C.' e seria 'este o único
articulado em que poderia lícito arguir as inconstitucionalidades invocadas';
c) poderia 'pôr-se ainda a hipótese de o reclamante ter
em sede de arguição de nulidades de invocar as inconstitucionalidades', mas
este Tribunal Constitucional 'tem entendido não ser a reclamação da nulidade
meio idóneo para suscitar a questão da inconstitucionalidade';
d) daí que, e citando-se os acórdãos do mesmo Tri
bunal nº 62/85, 94/88 e 61/92, se esteja perante uma situação do tipo das
'situações de todo excepcionais, em que os interessados não disponham de
oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes do
proferimento da decisão, caso em que lhe deverá ser salvaguardado o direito ao
recurso de constitucionalidade'.
E, conclui-se no requerimento, pedindo-se a procedência
da reclamação:
'1º- Não houve articulado posterior à decisão cuja inconstitucionalidade se
invoca onde a mesma pudesse ser arguida.
2º- Estamos assim perante a situação excepcional configurada em vários arestos
deste Tribunal onde a título excepcional se admite o recurso'.
3. No seu visto, o Ministério Público opinou nestes
termos:
'Resulta claramente dos autos que o ora reclamante não suscitou qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa 'durante o processo' - isto é, antes
de ser proferida a decisão que pretendia impugnar - nem sequer o tendo feito no
requerimento em que pretendeu arguir a nulidade daquela decisão: na verdade, é
apenas no
requerimento através do qual pretendeu interpor o recurso de constitucionalidade
que o ora reclamante veio, pela primeira vez, suscitar a questão de
inconstitucionalidade do artº 58º, nº 1 e 3 do RAU.
Não colhe, por outro lado, a argumentação expendida, no sentido de a presente
hipótese ser subsumível aos casos excepcionais em que a jurisprudência
constitucional vem admitindo a superveniente dedução de questões de
inconstitucionalidade normativa, mesmo após a prolacção da decisão recorrida: é
que a tese do reclamante padece de um equívoco, ao supor que o ónus que sobre
ele recai é o de 'invocar a inconstitucionalidade de uma decisão' - quando o
que lhe cumpria fazer era suscitar ou invocar atempadamente a
inconstitucionalidade de normas que, segundo um juízo de prognose, iriam
provavelmente ser apreciadas e aplicadas à dirimição do litígio, na decisão
recorrida.
Não releva, nesta perspectiva, a tese de que a decisão proferida em 1ª instância
lhe havia sido favorável, já que - face ao teor da alegação do agravante - era
evidente que as questões jurídico-processuais suscitadas acerca da
admissibilidade do eventual decretamento do despejo imediato passariam
necessariamente pela interpretação e aplicação, pelo tribunal 'ad quem', da
norma constante do citado artº 58º do RAU. Cumpria, pois, ao agravado, na
contra- alegação que produziu, confrontar o tribunal da
Relação com as 'inconstitucionalidades' que, porventura, pretendesse imputar a
uma norma que - bem sabia - iria ser inelutavelmente interpretada e aplicada à
concreta resolução do litígio, referente ao incidente de despejo imediato.
Inexistem, deste modo, os pressupostos de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade a que alude a alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, pelo que nenhuma censura merece a decisão de que se reclama'.
4. Completada a instrução do processo e vistos os autos,
cumpre decidir.
A seriação dos actos processuais relevantes, que se colhe
do processo, é, em resumo, a seguinte:
4.1. Contra os reclamantes foi intentada no Tribunal
Judicial do Seixal uma acção de despejo, com processo especial, pelos Autores
J... e mulher S.., vindo estes a requerer na acção o despejo imediato 'ao abrigo
do disposto no artº 58º, nºs 1, 2, e 3 do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de
Outubro', vulgarmente conhecido por RAU.
4.2. Os Réus, ora reclamantes, contestaram a acção,
sustentando dever ela 'ser considerada improcedente por não provada' e também se
opuseram ao 'pedido de despejo imediato'.
4.3 Por decisão do Mmº Juiz daquele Tribunal, foi
indeferido tal pedido de despejo imediato e, na sequência de recurso de agravo,
interposto pelos Autores, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de
Dezembro de 1993, deu provimento a esse recurso e revogou a decisão recorrida,
decretando o despejo imediato do prédio em causa.
Foi este, no essencial, o fundamento do julgado:
'Há, pois que concluir que as rendas vencidas na pendência da acção foram
depositadas fora do prazo contratualmente estipulado, porque depositadas depois
do dia nove do mês anterior àquele a que respeitavam. A sua prestação só
obstaria ao pedido de despejo imediato, se esse depósito tivesse sido
acompanhado da respectiva indemnização, tendo em conta que fora efectuado já em
mora. O que não aconteceu.
Não caducou, assim, o direito dos agravantes a requerer o despejo imediato, nos
termos do artº 58º nºs 1 e 3 do RAU.
Com o que procedem as conclusões dos agravantes'.
4.4. Os réus, ora reclamantes, vieram então arguir
nulidades daquele acórdão, ao abrigo do disposto no artigo 668º do Código de
Processo Civil, sustentando que 'existe contradição na argumentação aduzida,
faltando por outro lado analisar questões que foram levantadas e não foram
apreciadas', mas sem qualquer referência a questões de inconstitucionalidade.
4.5. O requerimento de arguição de nulidades foi
indeferido por acórdão de 14 de Junho de 1994 e, como última etapa, os
reclamantes 'vieram interpôr recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão
que deu provimento ao agravo', e esclarecera, 'dando cumprimento ao disposto no
artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro:
- norma e princípios violados: o princípio do acesso aos tribunais, da igualdade
das partes, da proporcionalidade e da equidade, da igualdade na aplicação do
direito, com expressa violação do artº 13º C.R.P., e ainda do artº 65º, nº 1 do
diploma fundamental, tendo-se dado interpretação violadora das referidas normas
e princípios constitucionais na interpretação dada ao artº 58º, nºs 1 e 3 do
RAU.
- peça processual onde foi invocada: só agora pode ser invocada, por só agora
ter pertinência, constituindo a situação excepcional a que entre outros se
refere o Ac. T.C. nº 61/92, de 11/2/92; O presente recurso é interposto ao
abrigo da al. b) do artº 70º da Lei nº 28/82'.
4.5. Foi este o recurso objecto de inadmissão no despacho
ora reclamado.
5. É bom de ver que os reclamantes fundaram o recurso de
constitucionalidade no artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
reproduzindo o artigo 280º, nº 1, b), da Constituição, e expressamente
identificam como 'peça processual onde foi invocada' a questão de
inconstitucionalidade o requerimento de interposição desse recurso, com a
justificação de que 'só agora pode ser invocada, por só agora ter pertinência,
constituindo a situação excepcional a que entre outros se refere o Ac. T.C. nº
61/92, de 11/2/92'.
Mas não é assim, não se podendo, pois, dar como
verificado, entre os pressupostos processuais exigidos para aquele tipo de
recurso de constitucionalidade, o de ter 'sido suscitada durante o processo' a
questão da inconstitucionalidade dirigida à 'interpretação dada ao artº 58º, nºs
1 e 3 do R.A.U.'.
Com efeito, é fácil constatar que foi na base daquele
preceito legal que foi proferida a primeira decisão nos autos e é ele que volta
a fundar o julgado no Tribunal da Relação de Lisboa.
Mas nunca os reclamantes, perante esse Tribunal,
suscitaram qualquer questão de inconstitucionalidade relativa àquele artigo 58º
ou outro preceito legal, e tiveram oportunidade de o fazer, desde logo na fase
das alegações, na medida em que, 'segundo um juizo de prognose', como regista o
Ministério Público, tal norma iria ser provavelmente apreciada e aplicada à
dirimição do litígio, em via de recurso de agravo.
A exigência processual de suscitação da questão de
inconstitucionalidade durante o processo implica, num sentido funcional, que ela
vá a tempo de o tribunal a quo se pronunciar sobre a questão, como é
jurisprudência corrente deste Tribunal Constitucional. E, in casu, o tribunal a
quo não se pronunciou, porque não lhe foi colocada tal questão.
Como os próprios reclamantes reconhecem, só no
requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional é que
é identificada a questão de inconstitucionalidade, com referência a uma violação
de normas constitucionais, o que é um momento totalmente inadequado a esse
efeito, conforme invariavelmente tem sido decidido por este Tribunal (v.g., os
acórdãos recentes nºs 134/95 e 135/95). E não se vê que seja caso de situação
excepcional, como querem os reclamantes, nem há similitude com as hipóteses
versadas nos acórdãos que eles referenciam.
Tanto basta para se entender que não merece censura o
despacho reclamado.
6. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação,
condenando-se os reclamantes nas custas, com a taxa de justiça fixada em cinco
unidades de conta.
Lisboa, 17 de Maio de 1995
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa