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Processo nº 708/95 ACÓRDÃO Nº 243/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- O Hospital Distrital de Abrantes instaurou, no Tribunal Judicial dessa cidade, acção executiva contra A, para pagamento da quantia devida por serviços de assistência hospitalar por si prestados a esta
última, na sequência de lesões sofridas em acidente de viação.
Para o efeito, e segundo decorre dos autos, muniu-se, como título executivo, de certidão de dívida hospitalar, emitida ao abrigo do disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
A executada deduziu oportunamente embargos - a que respeitam os presentes autos - não se considerando responsável pelo pagamento da quantia exequenda.
Os embargos foram recebidos e o exequente contestou-os, pugnando pela sua improcedência, por não provados.
Na sequência, o Juiz, por despacho de 16 de Outubro de 1995, julgou materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 205º, nº 1, da Constituição da República, os artigos 2º, nº 2, alínea a), e 4º do mencionado Decreto-Lei nº 194/92 que, por conseguinte, não aplicou, concluindo, desse modo, pela procedência dos embargos tendo em conta carecer o embargante de título executivo.
2.- Inconformado, do assim decidido recorreu o Hospital Distrital de Abrantes para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Recebido o recurso, tão só alegou o exequente-embargado o que fez, na parte que interessa, em termos de não considerar as citadas normas como materialmente inconstitucionais por violação do princípio da separação de poderes.
Dispensaram-se os vistos dada a actual simplicidade da questão, considerando a jurisprudência que este Tribunal tem recentemente lavrado sobre a questão.
II
1.- A norma objecto de apreciação dispõe:
'1.- As certidões de dívida a qualquer das entidades a que se refere o artigo anterior [instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde], por serviços ou tratamento prestados, são títulos executivos'.
Ora, sobre a problemática subjacente pronunciou-se este Tribunal em vários acórdãos, das suas duas Secções (cfr. os nºs. 760/95 e
761/95, publicados no Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de 1996).
Limitamo-nos, em consequência, a transcrever parte do acórdão nº 118/96, de 6 de Fevereiro do corrente ano, ainda inédito:
'[...]5.- O Decreto-Lei nº 194/92 dá conta, no seu preâmbulo, de que, por decorrência do disposto na Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90, de 24 de Agosto), se tornava necessário regular a cobrança de dívidas as instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde: de facto, por força da Base XXXIII, nº 2, desta lei, essas instituições e serviços podem cobrar, como receitas próprias, as quantias relativas a pagamentos 'de cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras' [alínea b) deste número e artigo]. Ora, atendendo aos curtos prazos de prescrição estabelecidos na legislação civil (prescrições presuntivas previstas no art. 317º do Código Civil; prescrição de três anos na responsabilidade civil extracontratual), o legislador optou, ainda segundo o mesmo preâmbulo, por afastar 'o recurso, sempre moroso, à acção declarativa, como forma de obter a declaração de direitos quase sempre certos e indiscutíveis' (solução adoptada pelo Decreto-Lei nº
147/83, de 5 de Abril, atribuindo força de título executivo às certidões de dívidas tal como sucedia desde 1940 para as certidões de dívidas dos Hospitais Civis de Lisboa.
No que se refere aos danos pessoais causados por acidentes de viação, os arts. 4º e 5º do Decreto-Lei nº 194/92 indicam quais os responsáveis que devem figurar nos respectivos títulos executivos (certidões de dívida): o transportador e a entidade seguradora, havendo seguro: se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a entidade seguradora do veículo ou dos veículos intervenientes no acidente; não havendo contrato de seguro válido ou eficaz ou não sendo possível proceder à identificação dos responsáveis pelo acidente, o Fundo de Garantia Automóvel.
As normas acabadas de referir nada mais fazem do que adjectivar a responsabilidade decorrente da legislação civil (arts. 503º a 508º do Código Civil; Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, sobre seguro obrigatório de responsabilidade civil, sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis nºs. 122-A/85, de 30 de Maio, 81/87, de 20 de Fevereiro, 394/87, de 31 de Dezembro, 415/89, de 30 de Novembro, 122/92, de 2 de Julho, 358/93, de
14 de Outubro, e 130/94, de 19 de Maio), considerando a indiscutibilidade e prática certeza da identificação dos responsáveis, no comum dos acidentes de viação.
6. Terá razão o Senhor Juiz a quo quando entende que a solução constante das normas impugnadas viola o art. 205º, nº 1, da Constituição?
Responde-se decididamente pela negativa.
A criação de títulos executivos extra-judiciais - muito frequente, conforme se nota nas alegações do hospital exequente com referência a abundante legislação especial - não implica a violação da reserva do exercício da função jurisdicional aos juízes e aos tribunais. Transcreve-se a este propósito o seguinte passo do recente acórdão nº 760/95, ainda inédito [já publicado, no Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de 1996], tirado pela 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
'Escreveu-se lapidarmente no acórdão nº 182/90 que a função jurisdicional se consubstância «numa composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do Direito ou da Justiça».
Sendo estas as notas que caracterizam a função jurisdicional, logo se vê que a elas se não reconduzem os poderes conferidos pelos artigos 2º, 4º e
6º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, ao «presidente do órgão de administração» das «instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde» (ou a «quem legitimamente o substitua») para a emissão de certidões de dívida por serviços ou tratamentos prestados.
Nestas certidões de dívida, que são títulos executivos, o emitente, que é uma entidade pública, certifica, não apenas a existência de um crédito próprio, como também a identidade daquele ou aqueles contra quem a execução deve correr. E isso, sem que o executado haja assumido a responsabilidade pelo débito e sem que tenha havido qualquer decisão judicial prévia a definir
(declarar) essa responsabilidade. Ou seja: tais certidões de dívida gozam legalmente de um grau de fé pública tal que dispensam a intervenção do juiz, previamente à instauração da execução, para declarar a existência da dívida e dizer quem o responsável pelo seu pagamento.
Esta actividade de certificação de um crédito por parte da entidade pública que dele é titular não representa, contudo, o exercício de poderes característicos da função judicial, pois que o hospital, ao emitir a certidão de dívida, não resolve ou compõe qualquer conflito que, acaso, oponha o credor
(ou outrem) àquele que, no título, é indicado como devedor. Na execução, pode, de facto, o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter usado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar. Ele pode opor-se à execução mediante embargos de executado. E, se o fizer, então sim, haverá lugar à resolução do conflito por um órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais pré-existentes - e tudo com vista à realização do direito e da justiça'.
7. O juízo no sentido da não inconstitucionalidade das normas desaplicadas não significa, claro, que não se deixe de reconhecer que existem dificuldades práticas decorrentes da solução legislativa adoptada, nomeadamente nos casos apontados na decisão recorrida em que há um litígio sobre uma causa de exclusão de responsabilidade legal ou contratual (nas suas alegações, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto chama a atenção para a
'proliferação indefinida 'de embargos de executado, nas situações mais complexas, que poderá pôr em causa a celeridade visada pelo legislador).
Simplesmente, o reconhecer-se que se está perante mau direito não implica que tenha de se concluir que se está perante uma inconstitucionalidade.
8. Por último, e como se acentua no citado acórdão nº
760/95, a circunstância de se instaurar logo a acção executiva acarreta incómodos para o exequente: embora ele tenha toda a latitude, no processo de embargos, para pôr em causa a sua responsabilidade (artº 815º do Código de Processo Civil), a verdade é que a execução só se suspende se o embargante prestar caução (art. 818º, nº 1, do mesmo diploma): 'simplesmente - refere-se nesse acórdão - de um lado, quando a execução prossegue achando-se pendentes os embargos, também o exequente só pode obter pagamento se prestar caução (cf. artigo 919º, nº 1, do mesmo código); e, de outro, atento o montante da quantia exequende, no caso [11.600400], nunca a exigência de caução poderá dificultar a defesa em termos tais que pudesse ter-se por violado o direito de acesso à justiça'.
Estas considerações são transponíveis para o presente recurso, não obstante o valor de execução ser mais elevado (embora não atingindo metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância), sendo certo que, sendo a executada uma seguradora, não terá dificuldade patrimonial em assegurar a sua defesa em qualquer instância executiva.'
2.- Adere-se à argumentação desenvolvida, que já serviu de fundamento a decisões anteriores do Tribunal, como se registou, tendo por objecto a mesma questão de constitucionalidade..
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, devendo a decisão impugnada ser reformulada em conformidade com o ora decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Fevereiro de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa