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Proc. nº 180/94
Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. e sua mulher, B., responderam no Tribunal Judicial
da Comarca de --------------, acusados da prática, em comparticipação, de um
crime de usurpação de funções, previsto e punível pelo artigo 400º, nº 2, do
Código Penal.
Na audiência de julgamento, provou-se, entre o mais, que
os arguidos vêm, desde 1989, examinando, diagnosticando, administrando vacinas e
medicamentos e efectuando tratamentos em animais de raça bovina, recebendo por
cada intervenção o respectivo pagamento (em dinheiro ou em géneros alimentícios)
- tal fazendo sem que possuam licenciatura em Medicina Veterinária (o arguido
era agente da Polícia de Segurança Pública, presentemente aposentado, e obteve
na Faculdade de Veterinária de Lourenço Marques a aprovação no exame de
ferrador; a arguida, essa é alveitar).
Os arguidos foram, porém, absolvidos, por sentença de 2
de Março de 1994: de um lado, porque, segundo o juiz recorrido, as suas condutas
não preenchem o tipo legal de crime, previsto e punível pelo artigo 400º, nº 2,
do Código Penal; e, de outro, porque, não obstante tais condutas se enquadrarem
no artigo 60º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários (aprovado
pelo Decreto-Lei nº 368/91, de 4 de Outubro), esta norma - diz o mesmo juiz -
não pode ser aplicada, por padecer de inconstitucionalidade.
De facto - lê-se na sentença -, o crime de usurpação de
funções (previsto e punível pelo artigo 400º, nº 2, do Código Penal) não se
consuma com o tão-só facto de alguém, sem possuir a necessária licenciatura,
praticar actos que apenas por médicos veterinários podem ser praticados, sendo
ainda necessário que o autor desses actos se arrogue 'do título respectivo, isto
é, do título de médicos veterinários', que é o que no caso não sucedeu, pois que
'os arguidos não se arrogam de tal título' e 'as pessoas que [os] procuram [...]
para tratamentos de animais sabem que eles não são veterinários, nem os arguidos
se fazem passar por tal'. Ao que acresce que o mencionado artigo 60º, nº 2, do
Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários - que (contrariamente ao nº 2 do
artigo 400º do Código Penal, que 'exige a prática da profissão e a ostentação do
título') se basta 'com a simples prática da profissão' - viola o artigo 168º, nº
1, alínea c), da Constituição, em virtude de a autorização legislativa constante
da Lei nº 19/91, de 18 de Junho (ao abrigo da qual o Decreto-Lei nº 368/91 foi
editado) não habilitar o Governo a definir crimes e penas.
2. É desta sentença (de 2 de Março de 1994) que vem o
presente recurso, interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da
constitucionalidade do mencionado artigo 60º, nº 2, do Estatuto aprovado pelo
Decreto‑Lei nº 368/91, de 4 de Outubro, que a sentença recorrida se recusou a
aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Neste tribunal, apenas alegou o Procurador-Geral
Adjunto, que formulou as seguintes conclusões:
1º. O artigo 60º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Médicos [Veterinários],
aprovado pelo Decreto-Lei nº 368/91, de 4 de Outubro, que qualifica como crime
de usurpação de funções o simples exercício da profissão de veterinário por quem
não possua título legalmente exigido para esse exercício, constitui um tipo
legal de crime de usurpação de funções diferenciado do do artigo 400º, nº 2, do
Código Penal, uma vez que naquele, diferentemente do que acontece neste, não se
exige que o agente se arrogue possuir tal título.
2º. Situando-se a matéria da definição de crimes no âmbito da competência
exclusiva da Assembleia da República e não habilitando a lei de autorização
legislativa invocada (Lei nº 19/91, de 18 de Junho) o Governo a legislar sobre
tal tema, aquela norma, na dimensão referida, é organicamente inconstitucional,
por violação do artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição.
3º. Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida na parte impugnada.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Sem que com isso viole o direito que cada um tem de
escolher a forma de actividade profissional que preferir (liberdade de escolha
de profissão, consagrada no artigo 47º, nº 1, da Constituição), pode o
legislador regulamentar o exercício de certas profissões, designadamente fazendo
exigências que - como se diz naquele preceito constitucional - sejam impostas
'pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade'.
É que - como se assinalou no parecer nº 1/78 da Comissão
Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, volume 4º, página 139) -,
o interesse colectivo, nalguns casos, pode exigir uma certa 'preparação, v.g.,
universitária, liceal, estágios, concursos, experiência em certas actividades,
etc.'.
Há, assim, profissões que, pela sua relevância social,
só devem ser exercidas por quem possua especiais qualificações. E, mais do que
isso, o interesse colectivo impõe que, no exercício das mesmas, os respectivos
profissionais obedeçam a um estrito código deontológico.
Para assegurar a defesa dos interesses públicos que a
regulamentação de tais profissões postula, o Estado cria, por vezes, associações
profissionais, a quem comete o encargo de organizar as respectivas profissões,
controlando o ingresso nas mesmas, e o de garantir que os profissionais em causa
exerçam o seu ofício, cumprindo um conjunto muito apertado de regras
deontológicas, conferindo-lhes, para o efeito, diversos poderes de autoridade
(entre eles, o de impor a inscrição na respectiva associação a todos quantos
pretendam exercer a profissão em causa, o de lhes exigir o pagamento das
respectivas quotas, e bem assim o de aplicar sanções disciplinares a quem não
observar os deveres deontológicos).
Está-se, então, em presença de associações públicas
(sobre associações públicas, cf., por último, o Acórdão nº 199/94, Diário da
República, II série, de 20 de Maio de 1994).
5. Uma dessas associações profissionais é a Ordem dos
Médicos Veterinários (criada pelo Decreto-Lei nº 368/91, de 4 de Outubro,
editado no uso da autorização legislativa constante da Lei nº 19/91, de 18 de
Junho), que 'é a instituição representativa dos licenciados em Medicina
Veterinária ou equiparados legais que [...] exercem actividades veterinárias'
(cf. artigo 1º, nº 1, do respectivo Estatuto, aprovado pelo mesmo Decreto-Lei nº
368/91).
A ela cumpre, pois, regular e disciplinar 'o exercício
da actividade médico-veterinária em termos de assegurar o respeito dos
princípios deontológicos que devem nortear todos os profissionais que a ela se
dedicam e de garantir a prossecução dos interesses públicos que lhe estão
subjacentes' - diz-se no preâmbulo do mesmo diploma legal.
Salvo o caso daqueles que, nos termos do artigo 61º,
podem, sem prévia inscrição na Ordem, 'prestar em Portugal serviços
médico‑veterinários individualizados, nos termos da legislação aplicável',
ficando, contudo, sujeitos à Ordem 'para efeitos de deontologia e de
responsabilidade disciplinar', 'só os médicos veterinários com inscrição em
vigor na Ordem podem exercer, no território nacional, a título profissional, a
actividade médico‑veterinária' - prescreve o nº 1 do artigo 60º do mesmo
Estatuto.
A inscrição na Ordem exige a licenciatura em Medicina
Veterinária 'por escolas ou universidades portuguesas autorizadas a conceder
licenciaturas' ou habilitação 'com cursos ministrados em universidades' de
Estados membros das Comunidades Europeias 'equiparados ou reconhecidos nos
termos da legislação aplicável' (cf. artigo 10º do Estatuto; cf. também o
Decreto-Lei nº 399/89, de 10 de Novembro).
6. Feito este apanhado, passemos à apreciação da
constitucionalidade da norma aqui sub iudicio, que é, recorda‑se, a do nº 2 do
artigo 60º do Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários.
Dispõe o referido artigo 60º:
Artigo 60º (Exercício profissional da medicina veterinária)
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, só os médicos veterinários com
inscrição em vigor na Ordem podem exercer, no território nacional, a título
profissional, a actividade médica veterinária.
2 - O exercício da profissão veterinária em infracção ao disposto no número
anterior constitui crime de usurpação de funções punido nos termos do disposto
no artigo 400º do Código Penal.
De acordo com o que prescreve o nº 2 do artigo 60º,
acabado de transcrever, aquele que, sem estar inscrito na respectiva Ordem ou
sem que a sua inscrição esteja em vigor, exercer a profissão de médico
veterinário comete o crime de usurpação de funções, punido nos termos do artigo
400º do Código Penal.
Este artigo 400º do Código Penal preceitua como segue:
Artigo 400º (Usurpação de funções)
1. Quem, sem para tal estar autorizado, exercer funções ou praticar actos
próprios de funcionário ou de comando militar ou de força de segurança pública,
invocando essa qualidade, será punido com prisão até 2 anos ou multa até 100
dias.
2. Na mesma pena incorre quem exercer profissão, para a qual a lei exige título
ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente,
possuí-lo ou preenchê-las, quando, efectivamente, o não possui ou as não
preenche.
3. Na mesma pena incorre quem continuar no exercício de funções públicas, depois
de lhe ter sido oficialmente notificada a demissão ou a suspensão dessas
funções.
No nº 2 do artigo 400º, que acaba de transcrever-se,
pune-se o crime de exercício ilegal de profissão para a qual a lei exija título
ou o preenchimento de determinadas condições, que é uma modalidade do crime de
usurpação de funções.
Consiste tal crime na prática habitual de actos próprios
de uma profissão que, por disposição expressa da lei, não possa ser exercida
senão por quem tenha título adequado ou reúna as condições que a mesma lei
prescreva, arrogando-se o respectivo agente, ainda que de modo tão-só implícito,
a posse desse título ou o preenchimento dessas condições.
Como sublinham LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, na
anotação ao artigo 400º (O Código Penal de 1982, volume 4, Lisboa, 1987, página
489):
[...] o legislador contenta-se com um arrogo implícito por banda do agente,
sendo suficiente, assim, que este, ainda que não invocando a qualidade que
pretende impor, surge a exercer actos próprios dela, como se possuísse o título
ou reunisse as condições que a lei para tanto reclama.
O que importa, assim, é o mero exercício de actos próprios [...] da profissão
sem título ou condições, desde que a sua expressão pública seja de molde a
convencer as pessoas de que [...] se reúne as condições legais ou profissionais.
Do confronto do tipo legal de crime previsto no artigo
60º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários, com o que prevê o
artigo 400º, nº 2, do Código Penal, resulta que aquele fica preenchido com o
tão-só facto de alguém praticar, de modo profissional, actos
médico-veterinários, sem estar inscrito na respectiva Ordem ou sem que essa
inscrição se encontre em vigor; o crime previsto no artigo 400º, nº 2, a mais do
que isso, requer que o respectivo agente, ainda que tão‑só pelo seu
comportamento, faça crer que possui essa qualidade, que reúne as condições para
o exercício da medicina veterinária, em termos de as pessoas se convencerem de
que ele pode exercer legalmente tal profissão.
Significa isto (para nos expressarmos com o acórdão nº
223/90, publicado no Diário da República, I série, de 24 de Julho de 1990) que o
artigo 60º, nº 2, aqui sub iudicio 'contém um tipo legal de crime diferenciado
daquele para o qual remete' (ou seja: diferenciado do do artigo 400º, nº 2, do
Código Penal). Em tal normativo, pois - para usar a linguagem utilizada no
recente acórdão nº 431/94, publicado no Diário da República, I série-A, de 21 de
Junho de 1994 -, 'define-se, autonomamente, um específico crime' de usurpação de
funções.
Ora, nos termos do artigo 168º, nº 1, alínea c), da
Constituição da República, apenas a Assembleia da República (ou o Governo por
ela autorizado) podem legislar sobre a definição de crimes e penas, sendo que,
na respectiva reserva, se inclui tanto a criminalização de condutas, como a sua
descriminalização, e, mais especificamente, 'o poder de variar os elementos
constitutivos do facto típico' (cf. acórdão nº 56/84, publicado no Diário da
República, I série, de 9 de Agosto de 1984).
No presente caso, porém, o Governo não estava
parlamentarmente autorizado a definir este específico crime de usurpação de
funções. Daí que tenha invadido a reserva de competência da Assembleia da
República, constante da alínea c) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
De facto, a Lei nº 19/91, de 18 de Junho (que contém a
'autorização legislativa para criar a Ordem dos Médicos Veterinários e aprovar
os respectivos estatutos' e que o Governo utilizou para editar o Decreto-Lei nº
368/91, de 4 de Outubro, que aprovou o Estatuto de que faz parte aquele artigo
60º, nº 2) prescreve:
Artigo 1º. Fica o Governo autorizado a legislar com o objectivo de criar, com a
natureza de associação pública, a Ordem dos Médicos Veterinários e de
estabelecer o respectivo estatuto.
Artigo 2º. O sentido e a extensão da legislação a elaborar ao abrigo da presente
lei serão:
a) Fazer depender o exercício profissional da actividade médico-veterinária de
inscrição na Ordem dos Médicos Veterinários;
b) Estabelecer os princípios deontológicos da actividade médico-veterinária e o
sistema sancionatório aplicável às respectivas infracções;
c) Definir os requisitos básicos de que depende a inscrição na Ordem dos Médicos
Veterinários;
d) Instituir um sistema de eleições directas para os órgãos superiores da Ordem
dos Médicos Veterinários;
e) Definir o âmbito das incompatibilidades e impedimentos, com o objectivo de
assegurar a independência no exercício da medicina veterinária.
Artigo 3º. A presente autorização legislativa tem a duração de 120 dias.
O Governo ficou, pois, autorizado pela Assembleia da
República a emitir um decreto-lei 'com o objectivo de criar, com a natureza de
associação pública, a Ordem dos Médicos Veterinários e de estabelecer o
respectivo estatuto', devendo, para tanto, observar os critérios que, a seguir,
se indicam e mover-se no âmbito que, seguidamente também, se define:
(a). O exercício profissional da actividade médico‑veterinária há-de ficar
dependente de inscrição na respectiva Ordem (inscrição obrigatória);
(b). Tal inscrição depende de se preencherem os requisitos básicos que o
Estatuto definirá;
(c). O exercício da actividade profissional médico‑veterinária obedece a
princípios deontológicos que o Estatuto definirá, cuja violação constitui
infracção disciplinar para que o Estatuto há-de prever as sanções adequadas;
(d). A actividade médico-veterinária há-de exercer-se com independência, para o
que o Estatuto definirá um sistema de incompatibilidades e de impedimentos;
(e). Os órgãos superiores da Ordem hão-de ser eleitos, devendo o Estatuto
instituir um sistema de eleições directas.
As únicas infracções que o Governo ficou autorizado a
definir, prevendo as correspondentes sanções, são, assim, infracções
disciplinares - violações dos princípios deontológicos que os veterinários devem
observar no exercício da sua actividade [cf. alínea b) do artigo 2º].
O Governo ficou autorizado a impôr a inscrição na Ordem
dos Médicos Veterinários como condição do exercício da respectiva profissão. Não
tinha, porém, autorização para criar (definir) um específico crime de usurpação
de funções, consistente no facto de se exercer profissionalmente a actividade
médico-veterinária, sem se estar inscrito na Ordem ou sem que a inscrição esteja
em vigor.
O artigo 60º, nº 2, do Estatuto é, assim,
inconstitucional, já que o Governo carecia de competência para o editar.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos:
(a). julga-se inconstitucional - por violação do artigo 168º, nº 1, alínea c),
da Constituição da República - a norma do artigo 60º, nº 2, do Estatuto da Ordem
dos Médicos Veterinários, aprovado pelo Decreto-Lei nº 368/91, de 4 de Outubro;
(b). em consequência, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença
recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade que nela se
contém.
Lisboa, 20 de Junho de 1995
Messias Bento
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida