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Proc. nº 284/95 ACÓRDÃO Nº 576/96 Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A e outros impugnaram no Supremo Tribunal Administrativo o acto administrativo constante do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, que declarou a extinção da B.
Sem êxito, porém: a Secção de Contencioso Administrativo, primeiro (acórdão de 11 de Março de 1993) e o Pleno dessa Secção, depois (acórdão de 23 de Março de 1995), negaram provimento aos recursos interpostos.
2. É deste último acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (de 23 de Março de
1995) que vem o presente recurso, interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação das ilegalidades e inconstitucionalidades que indicam no requerimento respectivo.
Neste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações que, no que aqui importa, concluiram do modo que segue:
1. O acto de extinção de uma empresa pública é um acto administrativo necessariamente vinculado que tem de respeitar o quadro normativo do Decreto-Lei nº 260/76, diploma que, por conter as bases gerais das empresas públicas, tem a natureza de lei reforçada.
2. [...]
3. O Decreto-Lei 138/85 ao determinar no seu artigo 1º, nº 1 a extinção da B por liquidação incorreu em violação do artigo 37º do Decreto-Lei nº 260/76.
4. O Decreto-Lei nº 138/85, diploma legal que contém um acto de extinção de uma empresa pública é na sua totalidade, um acto ilegal, por desrespeito da forma prescrita no artigo 38º do citado Decreto-Lei nº 260/76, diploma superior que não podia derrogar.
5. A forma do acto de extinção de uma empresa pública insere-se no estatuto geral das empresas públicas, matéria da competência reservada da Assembleia da República nos termos do artigo 168º, 1., v) da Constituição da República, no texto da Revisão de 1982.
6. Não tendo o Governo obtido a necessária autorização legislativa, ao utilizar a forma de decreto-lei para extinguir uma empresa pública, ofendeu a reserva da competência da Assembleia da República, incorrendo por isso o Decreto-Lei nº
138/85, na sua globalidade, em inconstitucionalidade orgânica por ofensa do artigo 168º, nº 1. v) da Constituição, na redacção em vigor na data de publicação do citado Decreto-Lei.
7. [...]
8. Quer a norma do nº 4 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 138/85, quer a norma do nº 1 do artigo 45º do Decreto-Lei nº 260/76, ao determinarem o pagamento rateado, no caso de insuficiência do activo do património em liquidação, são materialmente inconstitucionais, na medida em que consagram uma irresponsabilização do Estado pelos prejuízos causados com a extinção da empresa, o que colide com o princípio constante do artigo 22º da Lei Fundamental.
9. [...]
10. Tendo o Estado assumido o pagamento de encargos e indemnizações decorrentes da extinção da empresa pública o Jornal ... (cfr. artigo 3º do Decreto nº 162/79 de 29.12 e Resolução do C.M nº 249/81 de 19.1.81), e tendo esta empresa sido extinta também por razões de degradação económico financeira, a não assunção pelo Estado da responsabilidade pelo pagamento dos encargos e indemnizações decorrentes da extinção da B, determina a inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 138/85 por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República.
11.e 12. [...]
13. O Decreto-Lei nº 138/85, ao decretar a extinção da B e a consequente cessação do pagamento dessas pensões complementares de reforma, porque traduz um retrocesso em matéria de direitos sociais, violou o direito consagrado no artigo
63º da Lei Fundamental.
14. Tendo as pensões complementares de reforma sido concedidas aos reformados e pensionistas da B com carácter vitalício, por decisão da empresa pública, sancionada pelo Governo que sobre aquela exercia a superintendência e tutela, o Decreto-Lei nº 138/85 ao eliminar o direito a essas prestações violou o princípio da protecção da confiança, corolário do princípio de estado de direito, constante dos artigos 2º e 266º da Constituição da República.
15. O Decreto-Lei nº 138/85, ao provocar a cessação do pagamento de prestações complementares de reforma aos reformados e pensionistas da B, violou o direito à segurança económica destes, consagrado no artigo 72º da Constituição, já que a extinção de prestações de natureza vitalícia gera necessariamente instabilidade e insegurança.
16. A norma do artigo 4º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 138/85, ao impossibilitar a propositura de novas acções contra a B é inconstitucional na medida em que atinge a garantia de acesso aos tribunais consagrada no artigo 20º da Lei Fundamental.
17. Embora o artigo 8º do Decreto-Lei em apreço permita em momento posterior o aceso ao Tribunal, a imposição de recurso prévio a um órgão administrativo, como condição para o posterior acesso ao tribunal, constitui uma significativa limitação e restrição da garantia constitucional, o que só podia ser efectuado através de lei geral e abstracta nos termos do artigo 18º, nº 3, da Constituição da República, e não por decreto-lei de conteúdo individual, encerrando um verdadeiro acto admnistrativo.
18. A norma do artigo 4º, 1, b) é ainda inconstitucional, na medida em que determina a extinção da instância das acções pendentes na data de publicação do Decreto-Lei 138/85, tendo, nesta parte, carácter retroactivo, o que também só podia ser efectuado através de lei geral e abstracta e não por decreto-lei de carácter individual.
19. a 25 [...]
26. Ao utilizar a competência legislativa, em vez da administrativa, com o propósito de derrogar o Decreto-Lei nº 260/76 não estando munido de autorização legislativa, o Governo actuou com excesso ou desvio do poder legislativo, sendo o Decreto-Lei nº 138/85, em consequência, materialmente inconstitucional por ofensa do disposto no artigo 115º, nº 2, 168º, 1, v), 201º, nº 1, b) e c) e 202º da Constituição da República, vícios que determinam a sua invalidade (artigo 3º da Constituição da República). Termos em que, deve ser dado provimento ao recurso declarando-se a inconstitucionalidade global do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio ou, se assim não vier a ser julgado, a inconstitucionalidade e ilegalidade das identificadas normas daquele diploma legal.
O Primeiro-Ministro, de sua parte, conclui como segue as suas alegações: a) O Decreto-Lei nº 138/85 respeitou o enquadramento legal definido pelo Decreto-Lei nº 260/76 (Bases Gerais das Empresas Públicas) porquanto, decidido que foi fazer cessar a actividade da B, usou a forma de extinção seguida de liquidação do património, nos termos prescritos no artº 37º deste diploma; b) O excesso de forma legislativa na prática do acto de extinção não determina a violação do artº 38º do DL nº 260/76, já que o uso de forma mais solene do que a prevista naquela norma (decreto referendado nos termos do artº 4º do mesmo diploma) satisfaz as exigências de responsabilização que nela se contém; c) O Dec.-Lei nº 138/85 não está igualmente incurso em inconstitucionalidade por ofensa da reserva de competência legislativa da Assembleia da República (Artº
168º, nº 1, v)), já que não contém qualquer norma derrogatória do estatuto geral das empresa públicas, da competência reservada àquele órgão de soberania; d) O regime estabelecido pelos artºs 45º nº 1 do Dec.-Lei nº 260/76 e 10º, nº 4 do Dec.-Lei nº 138/85, deriva necessariamene da personalidade jurídica e da autonomia financeira e patrimonial de que gozam as empresa públicas; e) O Artº 22º da C.R.P. não contempla qualquer tipo de responsabilidade do Estado por dívidas alheias pelo que não se mostra violado pelas referidas normas; f) Nada obstando a que o Estado assuma livremente dívidas de terceiros, e não havendo elementos que permitam um juízo de valor sobre a identidade das situações jurídico-sociais resultantes da extinção da empresa pública mencionada e da B., forçoso é concluir pela não violação do princípio constitucional da igualdade; g) Não resultou também violado o Artº 63º da Constituição na medida em que as prestações complementares da segurança social a cargo da empresa extinta, não se enquadram no esquema de segurança social que incumbe ao Estado assegurar, nos termos do citado preceito e da Lei nº 28/84 de 14 de Agosto; h) A eventual violação do princípio da protecção da confiança, constante dos Artºs 2º e 266º da C.R.P., teria de assentar necessariamente na alteração, por via do Dec.-Lei nº 138/85, das condições do risco de insatisfação dos créditos existentes no momento em que se estabeleceram as relações jurídicas que lhe deram origem, o que não se verifica; i) Pelas mesmas razões não resultou violado o Artº 72º da Constituição; (direito
à segurança económica ds pessoas idosas ); j)O artº 4º, nº 1, alínea b) do Dec.-Lei nº 138/85 não foi aplicado aos recorrentes, como resulta dos autos, pelo que a apreciação da sua conformidade com o Artº 20º da Constituição excede o âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade; l) Inexistindo qualquer definição material de acto legislativo, o uso pelo Governo da forma de decreto-lei para extinguir a B., não torna incurso o diploma de extinção (D.L nº 138/85), em inconstitucionalidade formal por violação dos artºs 115º, nº 1, 201º e 202º da Constituição. Neste termos não deverá ser declarada a inconstitucionalidade das normas referenciadas no Dec.-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, confirmando-se a decisão jurisprudencial recorrida.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso:
De entre as normas indicadas no requerimento de recurso como sendo inconstitucionais [artigos 4º, nº 1, alínea b), e 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio; e 45º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril], o Tribunal não vai conhecer da questão de constitucionalidade relativa à norma do mencionado artigo 4º, nº 1, alínea b).
É que, tal norma, como bem resulta do texto do acórdão recorrido ('o STA só aprecia a inconstitucionalidade das normas na medida em que a mesma se reflecte na legalidade do acto, o que de forma alguma é o caso' - lê-se aí), não foi por ele aplicada.
Ora, a aplicação pela decisão recorrida da norma que se pretende ver apreciadaa sub specie constitutionis por este Tribunal é - a par da suscitação da sua inconstitucionalidade durante o processo - pressuposto do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Não se verificando tal pressuposto, não pode o Tribunal conhecer do recurso tendo por objecto a constitucionalidade do mencionado artigo
4º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio.
5. As questões de constitucionalidade e de legalidade do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, no seu todo:
5.1. A recorrente imputa ao Decreto-Lei nº 138/85, no seu todo, os vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade.
A inconstitucionalidade traduzir-se-ia: (a) em ter o Governo legislado sobre o estatuto das empresa públicas sem que estivesse munido de autorização legislativa - o que importaria violação da alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República; (b) em ter o Governo utilizado a competência legislativa para praticar um acto administrativo - o que constituiria violação dos artigos 115º, nº 2, 168º, nº 1, alínea v), 201º, nº 1, alíneas b) e c), e 202º, também da Constituição; (c) em não ter o Estado assumido o pagamento de encargos e indemnizações decorrentes da extinção da B - o que, por ser comportamento diferente daquele que adoptou quando extinguiu o jornal ..., que era também uma empresa pública, importaria violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental; (d) e em, como consequência da extinção decretada, ter feito cessar o pagamento das pensões complementares de reforma aos reformados e pensionistas da B - o que violaria o princípio da protecção da confiança, corolário do princípio do Estado de Direito, consagrado nos artigos 2º e 266º da Constituição, e o direito à segurança económica, consagrado no artigo 72º, também da Constituição; e importaria retrocesso social, com violação do artigo 63º, igualmente da Lei Fundamental.
A ilegalidade traduzir-se-ia na existência de violação de uma lei de valor reforçado - o Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, que contém o Estatuto das Empresas Públicas -, pois, contrariando o que se preceitua no artigo 37º, nº 1, deste Estatuto, determinou-se a extinção da B por liquidação; e, desrespeitando o artigo 38º do mesmo Estatuto, tal se fez por acto legislativo.
Não têm razão os recorrentes.
5.2. O Governo, ao decretar a extinção da empresa pública B, lançando mão para tanto de um decreto-lei, em vez de um simples decreto, como o artigo 38º do Decreto-Lei nº 260/76 lhe permitia que fizesse, não violou qualquer norma ou princípio constitucional.
O Governo utilizou, é certo, a forma legislativa para extinguir uma empresa pública. Deixou, porém, intocado o Estatuto desse tipo de empresas - recte, o citado artigo 38º -, no ponto em que prevê que essa extinção se faça por decreto. Por isso, não legislou ele sobre o 'estatuto das empresas públicas'.
Só se o fizesse carecia de autorização parlamentar, como decorria do artigo 168º, nº 1, alínea v), da Constituição, na versão de 1982
[cf., hoje, após a revisão de 1989, o memso artigo 168º, nº 1, alínea x)].
A isto acresce que a utilização pelo Governo da forma legislativa para a prática de um acto administrativo - para além de representar um reforço de garantias, uma vez que os decretos-leis ficam sujeitos a ratificação, contrariamente ao que acontece com os decretos regulamentares - não importa qualquer inconstitucionalidade, por violação dos artigos 115º, nº 2,
168º, nº 1, alínea v), 201º, nº 1, alíneas b) e c), e 202º da Constituição, sendo certo que nenhum preceito constitucional impede que os decretos-leis incorporem actos administrativos ou proíbe que os actos administrativos possam revestir essa forma.
A possibilidade de os actos administrativos revestirem forma legislativa pode, de resto, ver-se implicitamente admitida no artigo 268º, nº 4, da Constituição, quando, ao garantir o recurso contencioso contra quaisquer actos administrativos que lesem os direitos ou interesses legalmente protegidos, o faz 'independentemente da forma' que esses actos revistam.
A este propósito, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA acentuam que estão 'abrangidos pela garantia do direito ao recurso contencioso designadamente os actos administrativos contidos em lei ou praticados sob forma de lei [...] (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 940).
Este Tribunal, no acórdão nº 26/85 (publicado no Diário da República, II série, de 28 de Abril de 1985, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º volume, 1985, páginas 7 e seguintes), teve ocasião de sublinhar que, 'utilizando a forma de decreto-lei para extinguir as empresas públicas em causa [a C e a B], o Governo não actua como simples órgão superior da Administração Pública, mas recorre ao seu poder legislativo - ou seja, a um poder cujo exercício, seja qual for o conteúdo de que se revistam as suas determinações, se encontra sujeito à fiscalização de constitucionalidade'.
5.3. O Decreto-Lei nº 138/85 também não viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
O facto de o Estado ter assumido, relativamente a outras empresa públicas que extinguiu, as respectivas dívidas, e de não ter feito outro tanto no caso da B, não é, de per si, bastante para importar lesão daquele princípio constitucional.
É que, com base em tal princípio, só podem recusar-se as soluções legislativas que introduzam distinções de tratamento irrazoáveis, porque materialmente infundadas - e, por isso mesmo, arbitrárias e discriminatórias.
Ora, não pode afirmar-se que tal ocorra no caso: desde logo, porque não é evidente que as consequências para os trabalhadores fossem idênticas num e noutro caso.
5.4. O referido diploma legal também não ofende o artigo
63º da Constituição, que prescreve que 'todos têm direito à segurança social'
(nº 1).
De facto, os complementos de reforma dos reformados e pensionistas da B eram-lhes pagos por esta, e não pelo 'sistema de segurança social' que ao Estado cumpre 'organizar, coordenar e subsidiar' (cf. o nº 2 do citado artigo 63º). Por isso, mantinham tais prestações absoluta autonomia em relação às pensões que aos mesmos pensionistas são pagas pela Caixa Nacional de Pensões. Estas, sim,.que são da responsabilidade do Estado. Mas elas em nada foram atingidas pelo diploma legal sub iudicio.
Seja, pois, qual for o sentido e alcance que o princípio da proibição do retrocesso social assume no nosso sistema constitucional [sobre isto, cf. os acs. nºs 39/84, 186/88, 232/90 e 101/92 (Diário da República, II série, de 5 de Maio de 1984, de 5 de Setembro de 1988, de 12 de Janeiro de 1991 e de 18 de Agosto de 1992, respectivamente), J. J.GOMES CANOTILHO (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, página 374) e J. C. VIEIRA DE ANDRADE (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, p. 307 e seguintes)], ele não foi afrontado pelo Decreto-Lei nº
138/85.
5.5. O Decreto-Lei nº 138/85 também não lesa o artigo
72º da Constituição, que garante às pessoas idosas o direito à segurança económica.
A segurança, que aos pensionistas é dada pelas pensões pagas pelo sistema de segurança social que ao Estado cumpre organizar e manter e que constitui o núcleo essencial do dever que o preceito constitucional impõe, mantém-se, de facto, intocada. A segurança que para eles decorria das pensões complementares, essa sim, que desapareceu. Tal sucedeu, no entanto, não propriamente por via do acto legislativo que decretou a extinção da empresa, mas, na crueza das coisas, pelo facto de esta ter entrado em estado de insolvência. A responsabilidade pelo pagamento destas pensões era da empresa, pois esta, embora fosse pública, tinha património próprio e gozava de capacidade jurídica para o gerir e para responder pela dívidas que assumisse (cf. artigos
2º e 15º do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril).
5.6. Também o princípio da protecção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito, não é violado pelo Decreto-Lei nº
138/85.
A frustração da expectativa de continuar a receber pensões complementares de reforma vitalícias decorreu também da insolvência da empresa, e não do facto de aquele diploma legal ter decretado a sua extinção.
5.7. A circunstância, já referida, de a extinção da empresa ter sido feita por decreto-lei (recte, pelo Decreto-Lei nº 138/85), e não por decreto, como o artigo 38º do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, permitia que tivesse sido feito, não implica ilegalidade que este Tribunal deva sindicar.
De facto - e deixando por resolver a questão de saber se o Decreto-Lei nº 260/76 assume a natureza de lei de valor reforçado -, uma coisa
é certa: a adopção de decreto-lei não acarretou qualquer diminuição de garantias, pois que este, depois de aprovado em Conselho de Ministros, é promulgado e referendado - tudo como sucederia, se a extinção tivesse sido feita por decreto regulamentar [cf. artigos 137º, alínea b), e 143º da Constituição). E mais: passou a poder ser pedida a sua ratificação (cf. artigo 172º da Constituição), o que não sucederia com um decreto regulamentar.
Ora, verificando-se a adopção de uma forma mais solene
(e, assim, um reforço de garantias) a desconformidade existente entre o artigo
38º do Decreto-Lei nº 260/76 e o Decreto-Lei nº 138/85 - suposta a supremacia daquele diploma - não merece censura.
Também não existe qualquer ilegalidade no facto de o Decreto-Lei nº 138/85 (recte, o seu artigo 1º) ter ordenado a extinção, seguida de liquidação, da empresa.
O artigo 37º do Decreto-Lei nº 260/76, já citado, prescreve que a 'extinção de uma empresa pública pode visar a reorganização das actividades desta, mediante a sua cisão ou fusão, ou destinar-se a pôr termo a essa actividade, sendo então seguida de liquidação' (nº 1). E acrescenta no nº
2: 'as formas de extinção de empresas públicas são unicamente as previstas neste capítulo, não lhes sendo aplicáveis as regras sobre dissolução e liquidação de sociedades, nem os institutos da falência e insolvência'.
Significa isto que a extinção das empresa públicas só pode assumir um dos três modos seguintes: fusão ou cisão, se o objectivo for proceder à reorganização das actividades da empresa; liquidação, se se pretender pôr termo à actividade empresarial da mesma, procedendo à sua extinção pura e simples.
Não é, pois, possível a extinção de uma empresa pública pelo recurso às regras aplicáveis à dissolução e liquidação das sociedades
(constantes, respectivamente, dos artigos 141º a 145º e 146º a 155º, do Código das Sociedades Comerciais), nem pelos institutos da falência e insolvência, regulados no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril (cf., neste sentido, MOTA PINTO,Direito Público da Economia, lições policopiadas, Coimbra,
1982/3, página 157; MANUEL AFONSO VAZ, Direito Económico, 3ª edição, Coimbra,
1994, página 216; e LUÍS CABRAL MONCADA, Direito Económico, Coimbra, 1986, página 155).
Ora, a forma que o Decreto-Lei nº 138/85 adoptou foi, justamente, a da extinção pura e simples da B, seguida da sua liquidação.
Em nada foi, pois, contrariado o Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, por isso que também agora não interesse decidir a questão de saber se este diploma legal assume ou não a natureza de lei de valor reforçado.
6. A questão de constitucionalidade da norma do artigo
45º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, e da do artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio:
No entender dos recorrentes, tais normas, 'ao determinarem o pagamento rateado, no caso de insuficiência do activo do património em liquidação, são materialmente inconstitucionais, na medida em que consagram uma irresponsabilização do Estado pelos prejuízos causados com a extinção da empresa, o que colide com o princípio constante do artigo 22º da Lei Fundamental'.
O artigo 45º do Decreto-Lei nº 260/76, prescreve: Artigo 45º (Pagamento aos credores)
1. Terminada a verificação do passivo e realizado todo o activo da empresa, serão os credores pagos de acordo com a graduação estabelecida.
2. Mostrando-se insuficiente o produto da realização do activo para pagamento aos credores comuns, serão estes pagos rateadamente.
3. Se após o pagamento de todo o passivo relacionado for apurado um saldo, será este entregue ao Estado, através da Direcção-Geral do Tesouro, desde que o decreto de extinção não lhe atribua outro destino.
4. Encerradas as operações de liquidação, devem os liquidatários apresentar as respectivas contas aos Ministros da Tutela e das Finanças e do Plano, para a aprovação, com a qual ficam exonerados de responsabilidade pela actividade exercida.
(A redacção dos nºs 3 e 4 foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 25/79, de 19 de Fevereiro).
O artigo 10º do Decreto-Lei nº 138/85 reza assim:
1 - Terminada a verificação do passivo, serão os credores pagos à medida da realização do activo e de acordo com a graduação estabelecida, sem prejuízo do disposto no artigo 1254º do Código de Processo Civil.
2 - Poderá o Estado, quando o interesse público o justifique, efectuar o pagamento de créditos sobre o património em liquidação. Neste caso, ficará sub-rogado, com direito de regresso nos direitos do credor, bem como nas garantias e acessórios do crédito pago.
3 - O disposto nos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, e nos artigos 10º e 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, não será aplicável
à presente liquidação.
4 - Mostrando-se insuficiente o produto da realização do activo para o pagamento aos credores comuns, serão estes pagos rateadamente.
5 - Se, após o pagamento de todo o passivo reconhecido, sobejar saldo, será este entregue ao Estado, através da Direcção-Geral do Tesouro.
6 - Sob proposta fundamentada da comissão liquidatária, poderá ser autorizado o pagamento antecipado de débitos da empresa resultantes de retribuições vencidas, decorrentes, nomeadamente, de contratos de trabalho caducados na data da extinção, com o produto de subsídios ou empréstimos concedidos com essa finalidade pelo Governo.
Significa isto que: (a). é o activo (realizado) da empresa extinta que responde pelo seu passivo; (b). os credores são pagos de acordo com a graduação de créditos feita; (c). os credores comuns serão pagos rateadamente, se o activo for insuficiente para pagar a todos eles.
Bem se compreende que assim seja, pois que - dispõe o artigo 15º, nº 4, do Decreto-Lei nº 260/76 - 'pelas dívidas da empresa responde apenas o respectivo património' Nisto se traduz a sua autonomia patrimonial.
De resto, 'o reconhecimento de uma razoável autonomia às empresa públicas é condição necessária de uma gestão eficiente e dinâmica. Este
é, aliás, um ponto em que insistem os mais reputados estudos sobre organização e administração de empresas públicas: uma excessiva ingerência do Ministro ou Ministros competentes na administração das empresas públicas destrói a iniciativa e a responsabilidade dos seus gestores, as quais , pelo contrário, importa a todo o custo fomentar' - lê-se no Prâmbulo do Decreto-Lei nº 260/76.
É por isso que as empresas públicas - para além de gozarem de autonomia patrimonial - gozam também de autonomia administrativa e financeira (cf. artigos 2º, nº 1, 15º e 16º do Decreto-Lei nº 260/76). E é ainda por isso que a intervenção do Governo em tais empresas consiste no exercício de simples poderes de tutela económica e financeira (cf. artigo 13º do Decreto-Lei nº 260/76, na redacção do Decreto-Lei nº 29/84, de 20 de Janeiro) - de uma tutela que ainda é compatível com a autonomia das ditas empresas, pois que, à parte os casos de controlo prévio (autorizações) e a posteriori (aprovações), ela traduz-se, essencialmente, em poderes de orientação geral e de fiscalização
(cf., neste sentido, MANUEL AFONSO VAZ, Direito Económico cit., páginas 223 e
224. Cf. também J. BAPTISTA MACHADO, Participação e Descentralização ..., Coimbra, 1982, páginas 12 e 13).
As empresas públicas são, pois, pessoas jurídicas diferentes do Estado, gozando de capacidade jurídica que 'abrange todos os direitos e obrigações necessários à prossecução do seu objecto, tal como está definido nos respectivos estatutos' (cf. artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº
260/76).
O Estado, não obstante ser titular de todo o capital social da empresa extinta, não podia, portanto, ser responsabilizado pelas dívidas da mesma. Por elas - repete-se - 'responde apenas o respectivo património'.
As normas dos artigos 45º, nº 1, e 10º, nº 4, respectivamente, do Decreto-Lei nº 260/76 e 138/85 não violam, pois, o artigo
22º da Constituição.
Este preceito constitucional consagra a responsabilidade civil do Estado (e das demais entidades públicas) 'pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício' pelos
'titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes', 'de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem' - é dizer a responsabilidade do Estado pelos danos causados a outrem pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por actos ou omissões, praticados no exercícico das suas funções ou por causa delas. Não consagra, pois, qualquer responsabilidade do Estado por dívidas do seu sector empresarial.
III. Decisão:
Isto posto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento das questões de constitucionalidade que nele se contém.
Lisboa 16 de Abril de 1996 Messias Bento Luis Nunes de Almeida Bravo Serra José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa