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Procº. 326/90
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I A CAUSA
1. A. interpôs, para o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, recurso contencioso de anulação do despacho do Comandante-Geral da Polícia de Segurança Pública - que lhe foi notificado através do 'mandado' junto a fls. 4 - que considerando-o 'incurso no artigo 68º do Regulamento aprovado pelo DL nº 37313', lhe cassou a licença de uso e porte de arma de caça de que era detentor, fixando-lhe um prazo par 'proceder à venda da sua espingarda de caça', 'sob pena de, não o fazendo' ser a mesma 'declarada perdida a favor do Estado'.
Imputou a esse acto os vícios da falta de fundamentação e de
'audição do arguido' e à norma por ele aplicada (artigo 68º do citado Regulamento) inconstitucionalidade material por violação do artigo 32º da Constituição.
2. Culminando este processo, e após parecer do representante do Mº Pº. no sentido da inconstitucionalidade material da norma em causa, por violação do artigo 269º, nº 3 da Constituição, proferiu o Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra sentença recusando a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, do artigo 68º do Regulamento aprovado pelo DL 37313, concedendo provimento ao recurso, declarando nulo, por vício de violação de lei, o acto impugnado.
Fundou tal entendimento quanto à questão de inconstitucionalidade nas seguintes considerações :
'(...) O acto objecto do presente recurso vem arguido de vício de violação da lei por erro nos pressupostos de direito, por aplicação de norma legal ferida de inconstitucionalidade material superveniente.
Vejamos.
6.1. O artigo 68º do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei nº
37313, de 21.2.49, determina:
'As licenças ou autorizações para uso e porte de arma serão apreendidas e anuladas sempre que o seu portador tenha conduta que tal aconselhe, considerando-se motivo suficiente para este procedimento a prática de exercícios de tiro em locais não apropriados ou disparos de armas de defesa por motivo fútil. A apreensão das licenças implica a apreensão das armas'.
Quanto ao procedimento a adoptar pela autoridade competente, nada diz o Regulamento em causa, no que concerne às sanções previstas naquela norma. Afigura-se-nos que o legislador quis autorizar a autoridade policial a decidir a apreensão e perda das licenças de uso e porte de armas sempre que aquela o entenda aconselhável, designadamente quando tenha conhecimento de que o titular fez disparos com a arma em local não apropriado ou por motivo fútil, bem como a apreensão das armas, nas mesmas circunstâncias, arredando, assim, eventuais garantias de defesa do interessado.
E essa vontade do legislador, visando atribuir à autoridade policial plena discricionariedade na decisão a tomar, no que respeita ao caso de declaração de perda de licenças e armas, mais se arreiga quando vemos o mesmo legislador mandar ouvir o infractor e apreciar a matéria de facto, quando for caso de aplicação de multa variável - e apenas neste caso - cfr. artigo 75º do Regulamento.
O legislador arredou, pois na previsão do artigo 68º do Regulamento aprovado pelo Dec.-Lei 37313, as normais garantias de defesa do provável infractor.
E foi em conformidade com aquele preceito que foi tomada a decisão ora impugnada.
6.2. Como escreve Gomes Canotilho - Direito Constitucional 317 - ao analisar o princípio da protecção jurídica e das garantias processuais, 'do princípio do Estado de Direito deduz-se, sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e da realização do direito. Como realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designadas por garantias gerais de procedimento e de processo'.
E, logo adiante, escreve o mesmo autor (fls.318) :
'A exigência de um procedimento juridicamente adequado para o desenvolvimento da actividade administrativa considera-se como dimensão insubstituível da administração do Estado de direito democrático. Como garantias de um procedimento justo mencionam-se, entre outras: o direito de participação do particular nos procedimentos em que estão interessados (artigo 267º/4), o princípio da imparcialidade da administração (artigo 266º/2), o princípio da audição jurídica (artigo 269º/3), o princípio da informação (artigo 268º/1), o princípio da fundamentação dos actos administrativos (268º/3), o princípio da conformação do procedimento segundo os direitos fundamentais (artigos 266º/1 e
267º/4)'.
Aos apontados princípios constitucionais, deve o legislador ordinário inteira observância, devendo acatá-los e manter-se dentro dos seus limites, quando da feitura das leis ou seus regulamentos - cfr. artigo 277º da CPR.
E os tribunais não podem aplicar normas, nos feitos submetidos a julgamento, que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados - artº 207 da CRP.
6.2.1. Dos princípios atrás enunciados importa, no caso vertente destacar os da audição jurídica (artigo 269, nº 3) e da conformação do procedimento segundo os direitos fundamentais (artºs 266, nº 1 e 267º, nº 4).
Não oferece dúvidas que o preceito do artigo 68º do Regulamento citado, pela forma como está redigido e como vem sendo aplicado, designadamente no acto que é objecto do presente recurso, contraria claramente os aludidos princípios constitucionais e, na medida em que, regulando a aplicação da medida sancionatória, arreda o direito de defesa dos particulares, ou seja aquele direito de audição jurídica, infringindo princípios consignados na Constituição.
É, pois, materialmente inconstitucional.
6.3. Ora, como se acentua no Ac. do STA, de 10.5.90 - Rec. nº 26478 - embora não sendo nulo o acto que aplica norma inconstitucional, é anulável, por estar viciado de erro sobre os pressupostos de direito, o que integra vício de violação da lei.
Procede, assim, o vício invocado.
3. Desta decisão recorreu, obrigatoriamente o Mº. Pº. junto do referido Tribunal, suscitando a apreciação da inconstitucionalidade superveniente da norma recusada.
4. Neste Tribunal, apresentou o Sr. Procurador-Geral-Adjunto, as alegações de fls.42/53, formulando as seguintes conclusões :
' 1º Deve ser julgada inconstitucional a norma constante do corpo do artigo 68º do Regulamento respeitante ao fabrico, importação, comércio, detenção, manifesto, uso e porte de armas e suas munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº
37313, de 21 de Fevereiro de 1949, por violação dos princípios de audiência prévia e do Estado de direito democrático, consagrados, respecti- vamente, nos artigos 269º, nº 3 e 2º e 9º, alínea b), da Constituição.
2º (...) deve confirmar-se a sentença recorrida na parte impugnada.'
5. Corridos os vistos cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
6. A norma recusada aplicar pelo despacho impugnado, e à qual consequentemente se reporta o presente recurso de constitucionalidade, é a constante do artigo 68º do 'Regulamento Respeitante ao Fabrico, Importação, Comércio, Detenção, Uso e Porte de Armas e Suas Munições' (adiante Regulamento) aprovado pelo artigo 1º do DL nº 37313, de 21 de Fevereiro de 1949.
Como frisa o Mº.Pº. nas suas alegações, a evolução legislativa relativa a armas e munições entretanto ocorrida, suscita como ponto de partida a questão da própria vigência do Regulamento e em concreto do seu artigo 68º.
Com efeito, posteriormente a este diploma outros foram editados (DL
207-A/75, de 17.4.; DL 651/75, de 19.11.; DL 674-A/75, de 29.11.; DL 328/76, de
6.5.; DL 462-A/76, de 9.6.) que, por reportados ao mesmo assunto (armas e munições), poderiam ser entendidos, não como 'revogação expressa' (jamais feita), mas como revogação por 'incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes' ou pela circunstância de regularem 'toda a matéria da lei anterior' (artigo 7º, nº 2 do Código Civil).
Ora, não só nenhum dos diplomas entretanto publicados regulou toda a matéria constante do Regulamento aprovado pelo DL nº 37313, como existem variadas disposições deste - e é o caso do aqui questionado artigo 68º - de modo algum incompatíveis com aquelas.
Esta a raiz do consenso jurisprudencial (de que constitui paradigma o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5.4.89, BMJ 386, 103) e doutrinário
(cfr. por ex., Leal Henriques/Simas Santos, O Código Penal de 1982, vol. 3, Lisboa 1986, pp. 270 e 274; António Carvalho Martins, Criminogénese e Criminodinâmica dos Delitos com Armas de Fogo, Coimbra 1988, pp. 41 e 69/74), consenso a que alude o Mº.Pº., no sentido de que o Regulamento 'permanece em vigor na parte em que procede à classificação das armas e em que regulamenta o fabrico, o uso, porte e detenção de armas permitidas'.
7. Estando em vigor a norma desaplicada, passemos à sua análise.
Estabelece esta : Artigo 68º
As licenças ou autorizações para uso e porte de armas serão apreendidas e anuladas sempre que o seu portador tenha conduta que tal aconselhe, considerando-se motivo suficiente para este procedimento a prática de exercícios de tiro em locais não apropriados ou disparos de armas de defesa por motivo fútil. A apreensão das licenças ou autorizações implica a apreensão das armas.
§ 1º Quando for cassada qualquer autorização ou licença poderá o concessionário recorrer para o Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública em termos idênticos aos estabelecidos para os impetrantes de licenças a quem tenham sido indeferidas as pretensões.
§ 2º A autoridade que apreender autorizações ou licenças com fundamento no disposto neste artigo comunicará imediatamente o facto à entidade que as concedeu.
A questão de inconstitucionalidade coloca-se, na perspectiva do interponente do recurso contencioso, do Mº. Pº. na 1ª Instância e neste Tribunal e da decisão recorrida, relativamente ao corpo da norma e em concreto ao tipo de procedimento que, com base nela, se adopta para cassar as licenças e apreender as armas.
Olhando a situação documentada nos autos, que originou a sentença ora recorrida, vemos uma decisão do Comandante-Geral da PSP, assente num procedimento algo confuso onde se não detectam vestígios processuais de qualquer averiguação prévia de factos concretos indiciadores da tal 'conduta' que desaconselhe a titularidade da licença e onde o sujeito passivo da medida é posto perante um facto consumado, sem garantia alguma de intervenção, designadamente através da possibilidade de contraprova dos pressupostos da decisão.
Está, pois, em causa o procedimento - a sequência de actos de aquisição e tratamento de informação que levam uma autoridade a considerar alguém detentor não idóneo de uma licença de uso e porte de arma - e não a faculdade abstracta concedida a uma autoridade de retirar licenças de uso e porte de armas a quem, pela sua conduta (indiciada, ou não, pela prática de exercícios de tiro em locais inadequados e pela realização de disparos por motivo fútil) não se mostre merecedor de suficiente confiança para deter tais armas.
A atribuição a uma autoridade administrativa desta faculdade
(retirar a licença a quem demonstre não ter idoneidade para a manter) não é, em si, constitucionalmente questionável. Não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, sem exceptuar as de caça, independentemente de condicionamentos, entre eles os ditados pelo interesse público em evitar os perigos inerentes, o qual pode ser acautelado através da concessão de licenças e da retirada delas.
Mesmo num espaço jurídico, como o norte-americano, em que ' ... o direito do povo ao uso e porte de armas...' tem assento constitucional (na 2ª Emenda), vem entendendo o Supreme Court (desde 1939 em United States cfr. Miller, 307 US 174) que a Emenda em causa deve ser lida no seu contexto histórico (que foi o de impedir o Congresso de desarmar as milícias dos estados) e como tal não impede o estabelecimento de restrições e condicionalismos diversos à posse de armas por particulares (cfr. Robert J.Cottrol, «Second Amendment», in the Oxford Companion to the Supreme Court of the United States, ed. Kermit L.Hall, New York/Oxford 1992, pp.763 a 764).
8. Não tem este Tribunal que tomar posição nas possíveis controvérsias de direito infraconstitucional em torno da cassação de licença e consequente apreensão da arma, prevista no artigo 68º do Regulamento.
Desde logo, o artigo 68º inclui-se no capítulo V, sob a epígrafe
«Disposições Gerais». Daqui parece deduzir-se que abrange a cassação da licença de uso e porte de quaisquer das armas com uso e porte licenciado segundo o regulamento : armas de defesa, de caça, de precisão ou de recreio. Contudo, a cassação de licenças para uso e porte de armas de caça está especialmente prevista no artigo 58º, por motivo justificado e por ordem do Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública, órgão que é instância de recurso hierárquico segundo o § 1º do artigo 68º. E as duas hipóteses especificadas como exemplos de conduta que aconselha a cassação, nos termos do artigo 68º, são 'a prática de exercícios de tiro em locais não apropriados', que visa, pelo menos em primeira linha, armas de precisão ou de recreio, e 'disparos de armas de defesa por motivo fútil', o que também sugere que não se teve em vista no artigo 68º a cassação de armas de caça. Ora o tribunal a quo considerou aplicável à hipótese o artigo 68º e não compete a este Tribunal decidir tal questão.
Interpretado o artigo como abrangendo a cassação de qualquer das espécies de licenças para uso e porte de armas previstas no Regulamento, levanta-se naturalmente a questão da natureza jurídica da medida. Esta questão já tem relevância constitucional na medida em que as exigências constitucionais variam consoante a resposta. A questão só tem que ser dilucidada aqui enquanto dela depender a questão de constitucionalidade que foi colocada ao Tribunal neste processo. Trata-se de uma norma de direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição, sendo, por isso, irrelevantes os vícios formais e orgânicos (artigo 290º nº 2 da Constituição), entre eles os que podem afectar normas sancionatórias segundo a natureza jurídica da sanção, pelo que não releva aqui a questão da admissibilidade de sanções administrativas preventivas atípicas (cfr. o acórdão deste Tribunal nº 155/91, Acórdãos, 18 pp.525 e segs). Releva, porém, a inconstitucionalidade material.
9. A cassação de licença para uso e porte de armas constitui em qualquer caso uma revogação de uma autorização administrativa, não sendo necessário apurar se tem a natureza de uma sanção administrativa preventiva. Também não é indispensável discutir a natureza jurídica daquela autorização : se é verdadeira dispensa, que exclui a ilicitude de um acto genericamente proibido, o que pressupõe uma proibição geral de uso e porte de armas, ou se, no caso de armas de caça apenas condiciona o exercício de um direito, o que pressupõe um direito geral de caçar e, por consequência, de uso e porte de armas de caça (neste último sentido: Massimo Severo Giannini, Diritto Amministrativo, II, 3ª ed., 1993, pp.617 e ss.). Com efeito, basta atender a que, uma vez concedida a licença, o seu titular tem um direito que, por si e pelas despesas que pode ocasionar para o seu titular, poderá ter valor não insignificante. A apreensão das licenças e consequente apreensão das armas, previstas no corpo do artigo 68º, não pode, por isso, deixar de ser considerada uma medida com efeito equiparável a uma punição.
Tanto basta para não duvidar da sujeição da medida de cassação de licença de uso e porte de armas ao princípio constitucional da audiência prévia dos interessados (artigo 269º nº 3 da Constituição). Este princípio, referido no texto constitucional a propósito do 'processo disciplinar' e encerrando um verdadeiro 'direito fundamental fora do catálogo' (Vital Moreira/Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, pp.948), deve ser entendido como expressando um princípio geral de audiência prévia dos interessados e de reconhecimento do seu direito de defesa relativamente a quaisquer decisões tradutíveis num efeito punitivo ou equiparável (Parecer da Comissão Constitucional, nº 26/82, Pareceres da Comissão Constitucional, vol XX, pp. 222).
Trata-se de princípio intimamente conexionado com a ideia de 'Estado de direito democrático' (artigos 2º e 9º alínea b) da Constituição) e que não pode deixar de ser entendido como o assegurar de possibilidades reais, face a todo e qualquer procedimento com fim punitivo ou equiparável, de o interessado ser ouvido de modo a poder demonstrar a própria inocência ou reduzir a responsabilidade a termos justos, enfim, o 'right to be heard' caracterizador do
'due process'(cfr. Norman Vieira, Constitutional Civil Rights, St.Paul, Minnesota 1990, pp 36 e ss.).
10. Diz-se na decisão impugnada que os termos do artigo
68º do Regulamento têm como significado - e da recusa da norma depreende-se ser esse, na óptica da decisão, o único significado dela- ter o legislador pretendido 'autorizar a autoridade policial a decidir a apreensão e perda das licenças de uso e porte de armas sempre que aquela o entenda aconselhável (...), arredando assim, eventuais garantias de defesa do interessado ' atribuindo 'à autoridade policial plena discricionariedade na decisão a tomar'. Esta interpretação, como sendo a única viável, é deduzida ainda pela sentença de um argumento de natureza sistemática reportado à globalidade do Regulamento: neste, apenas na hipótese do artigo 75º ( aplicação de multa variável) está prevista expressamente a audição do infractor ('... depois de ouvido o infractor e apreciada a matéria de facto.').
Enfim, e constitui esta a conclusão da sentença, 'o legislador arredou (...) na previsão do artigo 68º do Regulamento aprovado pelo DL nº
37313, as normais garantias de defesa do provável infractor.'
Como já se referiu, o modo empregue nesta situação concreta para efectivação da cassação da licença, traduzindo-se numa quase ausência de processo - consequentemente de direitos processuais (= garantias processuais) - manifestada muito especialmente na não audição do infractor previamente à decisão, parece apontar no sentido de o entendimento da autoridade, quanto à faculdade atribuída no artigo 68º do Regulamento, ser aquele que a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra tomou por único possível e em função do qual recusou a norma por desconformidade constitucional.
Cabe, no entanto, perguntar se esse entendimento é algo de conatural
à própria norma, a única leitura interpretativamente possível dela, ou se, pelo contrário, é possível obter uma leitura interpretativa do artigo 68º compatível com o princípio constitucional da audiência prévia dos interessados.
Sendo possível esta leitura, quedar-nos-emos, em vez do fulminar puro e simples da norma por inconstitucionalidade, pela sua interpretação num sentido conforme à Constituição (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
6ª ed., Coimbra 1993, pp.229 e 230; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 3ª ed., Coimbra 1991, pp. 263 e ss.) incluindo aqui uma interpretação num sentido integrativo da lei com a Constituição, aquele a que o Prof. Jorge Miranda (referindo o parecer nº 14/77 da Comissão Constitucional: in Pareceres II, pp.57 e 58) chama 'interpretar certa lei (com preceitos insuficientes e, nessa medida, eventualmente, inconstitucionais), completando-a com preceitos da Constituição sobre esse objecto que lhe são aplicáveis e porque directamente aplicáveis' (Manual cit. pp.265).
Nesta visão poder-se-á manter o artigo 68º do Regulamento, embora, na sequência da interpretação enunciada como compatível com a Lei Fundamental, o concreto procedimento que não tenha seguido essa interpretação se não possa manter.
Estamos, procedendo assim, ainda no domínio da interpretação, com recurso a argumentos sistemáticos, sendo certo que o artigo 68º, interpretado no sentido de implicar um procedimento que garanta a audição do interessado, não deixa de ter na letra da lei (veja-se o § 1º do artigo 68º) 'um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso', como diz o artigo
9º nº2 do Código Civil (cfr. a este respeito o Acórdão nº 59/95, no Diário da República, I série-A de 10/3/95, particularmente a pp. 1314 e 1315).
11. Importa aqui vincular o intérprete (juiz incluído), como se disse recentemente no Acórdão nº 609/95 (ainda inédito), a preferir o sentido interpretativo compatível com a Constituição, devendo este Tribunal mandar aplicar no processo, à norma em causa, tal interpretação.
Significa isto que o artigo 68º do Regulamento respeitante ao Fabrico, Importação, Comércio, Detenção, Uso e Porte de Armas e suas Munições, aprovado pelo DL nº 37313, de 21 de Fevereiro de 1949, por impor uma medida que, por si mesma e por implicar a venda forçada ou, eventualmente, a apreensão da arma, se traduz numa perda de direitos e eventualmente, num prejuízo patrimonial equiparáveis a um efeito punitivo, deve ser interpretado no sentido de que a decisão de cassação de licença de uso e porte de armas será precedida de um procedimento que garanta a audição do interessado. Deve, pois, o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra sindicar a decisão objecto de impugnação contenciosa neste processo, aplicando a norma com esta interpretação.
III DECISÃO
12. Pelas razões expostas, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida a fim de ser reformada, interpretando-se o artigo 68º em causa com o sentido que se deixa indicado como sendo conforme à Constituição. Lisboa, 8 de Outubro de 1996 José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Bravo Serra Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa