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Proc. nº 225/93
1ª Secção
Rel.: Cons. Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. Em processo de acidente de trabalho, que correu os
seus termos no Tribunal do Trabalho de Barcelos, foi requerida, por 'Companhia
de Seguros A ..., ', ao abrigo do disposto no artigo 147º do Código do Processo
do Trabalho, a revisão da pensão anual e vitalícia, no montante de 443.968$00,
ali anteriormente acordada entre o sinistrado F ... e a referida seguradora.
Por despacho de 16 de Dezembro de 1991, e após exame
médico, foi fixada aquela pensão no novo montante de 340.320$00, e atribuído ao
respectivo incidente processual o valor de 8.611.458$00.
2. Desse despacho interpôs a 'Companhia de Seguros A
....' recurso para o Tribunal da Relação do Porto, por não aceitar o cálculo do
novo valor da pensão e do valor do incidente.
Quanto a este segundo ponto, afirmou a seguradora, nas
respectivas alegações, que o juiz recorrido, ao fixar o valor da causa, nos
termos do artigo 123º do Código de Processo do Trabalho, fez uso de coeficiente
constante das tabelas anexas à Portaria nº 632/71, de 19 de Novembro, recusando
assim a aplicação das tabelas anexas à Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro,
contra o que lhe impunha a alínea a) do nº 3 desta última Portaria, certamente
por decorrência do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91, de 13 de Março
de 1991 (Diário da República, I-A, de 1 de Abril de 1991), que declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do nº
3 da Portaria nº 760/85. Pretendia a seguradora que o valor da causa fosse
fixado nos termos do nº 3, alínea a), da Portaria nº 760/85, o que determinaria
um montante de 5.783.739$00.
O Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento
parcial ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte relativa ao valor da
pensão, mas quanto à questão do valor da causa sustentou o seguinte:
'(...) as tabelas aprovadas pela Portaria nº 760/85 não podem ser utilizadas
para efectivação dos cálculos das provisões matemáticas devido à declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, proferida pelo Acórdão nº
61/91, de 13 de Março, do Tribunal Constitucional.
Isto porque a aludida declaração de inconstitucionalidade
impossibilita ipso iure, a utilização das tabelas da Portaria nº 760/85, de 4 de
Outubro, para todos e quaisquer efeitos e, consequentemente, também para
efectivação dos cálculos das provisões matemáticas das pensões de acidentes de
trabalho (...)
(...) as tabelas da Portaria nº 760/85 não podem ser observadas no cálculo do
capital da remição de pensões por acidentes de trabalho, nem no cálculo das
provisões matemáticas das pensões dos mesmos acidentes, igualmente não poderão
ser observadas para o cálculo do valor da causa.
Na verdade, sendo o valor da causa nos processos de acidente de
trabalho ou de doenças profissionais igual ao valor das reservas matemáticas
(art. 123º do C.P.T.), o valor dessas reservas matemáticas não será, pois, o das
provisões matemáticas calculadas em conformidade com as Tabelas da Portaria nº
760/85, mas sim o valor das reservas matemáticas calculadas em conformidade com
a Portaria 632/71, de 19 de Novembro, por a dita declaração de
inconstitucionalidade determinar a repristinação das tabelas para o cálculo das
reservas matemáticas da última Portaria referida (art. 282º, nº 1, da
Constituição).
A não ser assim, a correspondência legal entre o valor da causa e o
das reservas matemáticas desapareceria e os trabalhadores veriam diminuídas as
suas garantias no que respeita às cauções das pensões - reservas matemáticas.
De resto, a violação do princípio da precedência de lei afecta a
Portaria na sua globalidade e não apenas em parte.
Consequentemente, quanto ao valor da causa o Mmo. Juíz aplicou e bem
a Portaria nº 632/71.'
Não se atendeu, pois, à argumentação da seguradora e
alterou-se o valor da causa apenas em função do novo valor de pensão definido
nesse acórdão, vindo assim o valor do incidente a ser fixado em 8.425.624$70.
3. Deste acórdão interpôs a 'Companhia de Seguros A
....' novo recurso, desta vez para o Supremo Tribunal de Justiça, restrito à
parte da decisão que fixou o valor do incidente.
Nas suas alegações de recurso, defendeu, designadamente,
que o citado 'Acórdão [do Tribunal Constitucional nº 61/91] declarou
inconstitucional a alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro,
pelo que a sua aplicação está restrita aos casos em que as respectivas pensões
permitam a remição de pensões nas modalidades legalmente consignadas nos nºs 1 e
2 do artigo 64º do Decreto‑Lei nº 360/71, de 21 de Agosto', concluindo que 'para
o cálculo do valor da presente causa é correcta e legal a aplicação da alínea a)
do nº 3 da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro'.
O Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao
recurso, por ter entendido ser inconstitucional a referida alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85, pelo que concluiu ter a Relação do Porto fixado
correctamente o valor da causa ao aplicar as tabelas anexas à Portaria nº
632/71. Na fundamentação, argumentou-se do seguinte modo:
'Nos processos de acidentes de trabalho, o valor da causa é igual ao
das reservas matemáticas (cfr. nº 1 do artº 123º do Cód. Proc. Trabalho). (...)
As taxas com base nas quais são calculadas as reservas matemáticas
constam actualmente das tabelas anexas à mencionada Portaria nº 760/85, que veio
substituir a (...) Portaria nº 632/71.
O acórdão recorrido fixou o valor da causa em função das tabelas
para o cálculo das reservas matemáticas das pensões de acidentes de trabalho
aprovadas por aquela Portaria nº 632/71, em virtude de considerar que a
declaração de inconstitucionalidade resultante do aludido acórdão do Tribunal
Constitucional [nº 61/91] impossibilita a utilização das tabelas constantes da
citada Portaria nº 760/85 (...)
Na verdade, aquele acórdão declarou somente a inconstitucionalidade,
com força obrigatória geral, da norma constante da al. b), do nº 3, daquela
Portaria nº 760/85, não se abrangendo nessa decisão a precedente al. a). Mas daí
não se pode concluir, sem mais, que as tabelas anexas àquela Portaria sejam
aplicáveis ao cálculo das provisões correspondentes às pensões de acidentes de
trabalho. (...)
No referido acórdão do Tribunal Constitucional, declarou-se a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante daquela
al. b), por violação do princípio da precedência da lei (primariedade da lei ou
reserva vertical da lei), consagrado nos nºs 6 e 7 do art. 115º da Constituição
da República. De acordo com este princípio, não existe exercício de poder
regulamentar sem fundamento numa lei anterior (...)
(...) constando a al. a), do referido nº 3 de um diploma regulamentar e
estabelecendo disciplina inicial, por não existir norma legal anterior que
suportasse o seu conteúdo, tem de considerar‑se também constitucionalmente
ilegítima, o que equivale a afirmar que colhem inteiramente, neste domínio, as
razões determinantes da declaração de inconstitucionalidade da norma inserida na
al. b) daquele nº 3 (...).
Além disso (...), parece indiscutível que os diplomas legais
respeitantes a acidentes de trabalho constituem legislação do trabalho, pelo que
seria constitucionalmente exigível a participação dos organismos representativos
dos trabalhadores na elaboração do normativo em causa.
Aquela Portaria nº 760/85 não faz qualquer referência à participação
dos mencionados organismos na sua elaboração, devendo, pois, presumir-se que
essa participação não teve lugar.
Daí que (também por este fundamento) haja de concluir‑se que a dita
norma se encontra ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos
arts. 55º, al. d) e 57º, nº 2, al. a), da Constituição da República (versão de
1982).'
4. Desta decisão vem interposto pelo Ministério Público
o presente recurso (obrigatório) para o Tribunal Constitucional, nos termos dos
artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, em
virtude de o tribunal a quo ter recusado a aplicação da alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85, com fundamento em inconstitucionalidade.
Neste Tribunal, o Magistrado do Ministério Público
apresentou alegações, de onde se destacam os seguintes argumentos:
'(...) o preâmbulo da Portaria nº 760/85 invoca expressamente, como lei
habilitante, o parágrafo único do artigo 1º do Decreto-Lei nº 26.095, de 23 de
Novembro de 1935. (...)
Assim, a norma desaplicada, enquanto se limita a alterar as tabelas
relativas ao cálculo das provisões matemáticas das pensões de acidentes de
trabalho, não viola os nºs 6 e 7 do artigo 115º da Constituição.
Diversa, porém, é a solução quanto à violação dos preceitos
constitucionais relativos à participação das organizações representativas dos
trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho.
(...) as reservas matemáticas não relevam apenas para a determinação do valor da
causa, aspecto em que, em rigor, não podiam ser consideradas como legislação do
trabalho.
Elas, além de constituirem garantias das pensões a cargo das
seguradoras, têm também repercussão directa no caucionamento de pensões, a que
estão sujeitas as entidades patronais quando não haja ou seja insuficiente o
seguro (artigo 70º, nº 1, do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto). (...)
Incidindo sobre um elemento substancial da matéria de protecção dos
trabalhadores no âmbito dos acidentes de trabalho, há que concluir que a norma
em causa se integra no conceito de legislação do trabalho, e que, tendo sido
emitida sem participação das organizações representativas dos trabalhadores,
viola os artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, da Constituição (versão de 1982).'
E conclui:
'1º. É inconstitucional, por violação dos artigos 55º, alínea d), e
57º, nº 2, da Constituição (versão de 1982), a norma constante da alínea a) do
nº 3 da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, por, incidindo, quer directamente
quer através da determinação do montante do caucionamento exigível às entidades
patronais, sobre a garantia das pensões por acidentes de trabalho, que integra o
conceito de 'legislação do trabalho', ter sido emitida sem se ter proporcionado
a participação, na sua elaboração, às organizações representativas dos
trabalhadores;
2º. Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte
impugnada.'
Não foram apresentadas contra-alegações.
5. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
6. O presente recurso tem por objecto a questão da
constitucionalidade da norma constante da alínea a) do nº 3 da Portaria nº
760/85, de 4 de Outubro. Essa norma foi desaplicada pelos tribunais
intervenientes nos autos, com fundamento em inconstitucionalidade, por terem
entendido que se verificavam, no caso, as razões que determinaram a declaração
de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 3º,
b), daquela Portaria, proferida no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91,
de 13 de Março de 1991.
A questão que se coloca é, deste modo, a de apurar se
valem para a alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85 as mesmas razões que
conduziram à aludida declaração de inconstitucionalidade da norma da alínea b)
do nº 3 dessa mesma portaria; ou, no caso de essas razões não procederem,
averiguar se outras razões existem para fundamentar um juízo de
inconstitucionalidade.
7. O problema é suscitado a propósito do cálculo do
valor das acções emergentes de acidentes de trabalho.
Dispõe o artigo 123º, nº 1, do Código de Processo do
Trabalho o seguinte:
'Nos processos de acidentes de trabalho ou de doenças profissionais,
o valor da causa é igual ao das reservas matemáticas.'
Por sua vez, o cálculo das reservas matemáticas é feito
com base em taxas constantes de tabelas, que, à data da entrada em vigor do
mencionado Código de Processo do Trabalho (aprovado pelo Decreto-Lei nº
272-A/81, de 30 de Setembro), se encontravam integradas na Portaria nº 632/71,
de 19 de Novembro, e que posteriormente foram substituídas pelas tabelas anexas
à Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro. Com efeito, a Portaria nº 760/85
substituiu a Portaria nº 632/71 por o legislador entender, como se menciona no
preâmbulo do diploma, que 'as tábuas de mortalidade e as taxas de juro técnicas
constantes das tabelas anexas à referida portaria [nº 632/71] se encontram
manifestamente desadequadas', pelo que se adoptaram novas tabelas.
No nº 1 da Portaria nº 760/85 lê-se que:
'São aprovadas, pela presente portaria, as tabelas anexas relativas
ao cálculo das provisões matemáticas das pensões de acidentes de trabalho.'
E refere-se no nº 3 que 'as referidas tabelas são
aplicáveis':
'a) Ao cálculo das provisões matemáticas corres-pondentes às pensões
fixadas, quer a partir da data da entrada em vigor da presente portaria, quer
anteriormente;
b) Ao cálculo, nos termos legais em vigor, do valor do capital de
remições autorizadas a partir do primeiro dia do mês seguinte ao da data da
publicação da presente portaria.'
Por via da remissão constante do citado artigo 123º, nº
1, do Código de Processo do Trabalho, o cálculo do valor da causa em processo de
acidente de trabalho deverá hoje fazer-se, portanto, segundo as tabelas anexas à
Portaria nº 760/85, em conformidade com o disposto no nº 3, alínea a), conjugado
com o nº 1, dessa portaria.
Porém, e como é sabido, no Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 61/91, de 13 de Março de 1991 (Diário da República, I-A, de 1
de Abril de 1991), foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral:
'a) da norma constante da alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85,
de 4 de Outubro, por violação do princípio da precedência da lei - decorrente,
designadamente, dos nºs 6 e 7 do artigo 115º e do artigo 202º, alínea c), da
Constituição - e também por violação do artigo 201º, nº 1, alínea a);
b) da norma constante do artigo 65º do Decreto nº 360/71, de 21 de
Agosto, na redacção do Decreto‑Lei nº 466/85, de 5 de Novembro, enquanto
conjugado com o nº 1 da referida portaria, por violação do preceituado nos
artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, alínea a), da Constituição da República
Portuguesa (versão de 1982).'
Para averiguar se, em relação à alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85, se pode igualmente sustentar a violação do princípio da
precedência da lei, tal como foi entendido para a alínea b) do nº 3 desse
diploma, é conveniente considerar a fundamentação, nessa parte, do mencionado
acórdão:
'Com efeito, como vimos, desde 1979 que não existia qualquer norma
legal ou regulamentar a estabelecer, com carácter genérico, a correspondência
entre as provisões matemáticas das companhias seguradoras no ramo acidentes de
trabalho e o valor do capital das remições, pelo que a norma impugnada da
Portaria nº 760/85 - tal como, anteriormente, a norma correspondente da Portaria
nº 362/71 - assumia, verdadeiramente, um conteúdo normativo para todos os
efeitos equiparável ao de uma norma legal.
Mas, assim sendo, logo se lobrigaria outro fundamento de
inconstitucionalidade para a norma em questão - o da violação do disposto nos
nºs 6 e 7 do artigo 115º, conjugados com a alínea a) do nº 1 do artigo 201º e
com a alínea c) do artigo 202º da lei fundamental.
Na verdade, como se afirmou no Acórdão nº 184/89 (publicado no
Diário da República, 1ª série, de 9 de Março de 1989), 'por força do princípio
da precedência da lei (primariedade da lei ou reserva vertical da lei) -
consagrado nos nºs 6 e 7 do artigo 115º da nossa Constituição -, não existe
exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei anterior', já que ao
Governo, no exercício de funções administrativas, apenas compete fazer os
regulamentos necessários à boa execução das leis [artigo 202º, alínea c)],
cabendo-lhe, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em
matérias não reservadas à Assembleia da República. Isto é, e consoante se
escreveu no mencionado aresto, são constitucionalmente ilegítimos os
regulamentos quando 'contêm disciplina inicial, que só pode constar de diploma
legislativo'.
Ora, no caso em apreço, e como se assinalou, a alínea b) do nº 3 da
Portaria nº 760/85 veio estabelecer disciplina inicial, uma vez que já não
existia, à data da sua edição, norma legal que suportasse o seu conteúdo.'
Na verdade, a norma constante da alínea b) do nº 3 da
Portaria nº 760/85 é editada num momento em que regia ainda a versão do artigo
65º do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, introduzida pelo Decreto-Lei nº
459/79, de 23 de Novembro, e anterior à redacção dada pelo Decreto-Lei nº
466/85, de 5 de Novembro - e dessa versão não constava a referência (existente
na versão originária) a que o valor da pensão, para efeitos de remição, era
calculado 'de harmonia com as bases oficialmente adoptadas para a determinação
das reservas matemáticas das sociedades de seguros'. E é essa circunstância,
como se viu, que permite sustentar a ocorrência de violação do princípio da
precedência da lei, quanto à alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85.
Ora, no caso da alínea a) do nº 3 dessa portaria, é
evidente que não se veio estabelecer disciplina inicial quanto ao cálculo do
valor da causa: a alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85 não regula
directamente essa matéria, mas apenas por remissão do artigo 123º, nº 1, do
Código de Processo do Trabalho, sendo esta norma legal anterior [aprovada por
decreto-lei e vigente à data da entrada em vigor da referida alínea a)] que
consagra a correspondência entre as reservas matemáticas e o valor da causa.
Note-se, aliás, que a alínea a) do nº 3 da Portaria nº
760/85 não se aplica apenas à determinação do valor da causa. As reservas ou
provisões matemáticas a que se refere esta disposição, para além de constituirem
garantias das próprias pensões por acidentes de trabalho, relevam ainda no plano
do caucionamento de pensões a que estão obrigadas as entidades patronais quando
não haja ou seja insuficiente o seguro (cf. artigos 70º, nº 1, e 71º, nº 3, do
Decreto nº 360/71). E também nesta perspectiva a norma constante da alínea a) do
nº 3 da Portaria nº 760/85 não contém disciplina inicial, na medida em que são
aquelas disposições anteriores do Decreto nº 360/71 que estabelecem a correlação
entre as reservas matemáticas e o caucionamento.
Acresce que no preâmbulo da Portaria nº 760/85 se
cumpriu o dever de citação da lei habilitante (imposto pelo artigo 115º, nº 7,
da Constituição), ao invocar-se expressamente o parágrafo único do artigo 1º do
Decreto-Lei nº 26.095, de 23 de Novembro de 1935, disposição que prevê a revisão
periódica das tabelas relativas ao cálculo das reservas automáticas das pensões
de acidentes de trabalho.
O exposto permite concluir que a alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85, diferentemente do que sucedia com a alínea b) no momento da
sua edição, não contém disciplina inovatória, antes comporta efectiva
regulamentação de lei anterior - pelo que não há violação do princípio da
precedência da lei.
Não valem, pois, para a alínea a) do nº 3 da Portaria nº
760/85 as razões determinantes da declaração de inconstitucionalidade da norma
da alínea b) desse nº 3.
8. Sendo assim, cabe então averiguar se a matéria em
causa naquela alínea a) constitui - como pretende o recorrente - legislação do
trabalho, para efeitos do disposto nos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2,
alínea a), da Constituição (na redacção da 1ª revisão constitucional, de 1982,
vigente à data da publicação da Portaria nº 760/85) [e a que correspondem
actualmente, e desde a 2ª revisão constitucional, de 1989, os artigos 54º, nº 5,
alínea d), e 56º, nº 2, alínea a)], nos quais se consagra o direito de
participação das organizações representativas dos trabalhadores na elaboração
dessa legislação.
A importância de tal averiguação deriva do facto de o
diploma em apreço (a Portaria nº 760/85) não fazer menção a uma eventual
intervenção daquelas organizações no respectivo processo de produção normativa,
pelo que se deve presumir que tal intervenção não ocorreu (cf., neste sentido,
os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 31/84, 451/87 e 15/88, in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vols. 2º, p. 123, 10º, p. 161, e 11º, p. 153,
respectivamente).
9. Conforme dispõem os preceitos constitucionais acima
mencionados, constitui direito das comissões de trabalhadores e das associações
sindicais a participação na elaboração da legislação do trabalho.
Os diplomas legais respeitantes a acidentes de trabalho
e doenças profissionais, pela sua dimensão de protecção dos trabalhadores numa
situação de inferioridade pessoal e social, integram o conceito de legislação do
trabalho. Na verdade, eles referem-se a direitos fundamentais dos trabalhadores
reconhecidos na Constituição (integrando‑se no conceito de legislação do
trabalho, perfilhado pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos nºs 31/84,
451/87, 15/88 e 107/88, Diário da República, I, de 17 de Abril de 1984, 14 de
Dezembro de 1987, 3 de Fevereiro de 1988 e 21 de Junho de 1988, respectivamente)
e, igualmente referidos pela doutrina (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 296).
Aliás, esse direito de participação das organizações
representativas dos trabalhadores e o correlativo dever de audição por parte do
legislador vieram a ser regulados por lei ordinária (a Lei nº 16/79, de 26 de
Maio), que contém a enumeração exemplificativa das matérias que constituem
legislação do trabalho. Entre essas matérias, foi incluída a de acidentes de
trabalho e doenças profissionais [cf. artigo 2º, nº 1, alínea h) da Lei nº
16/79].
Em conclusão, a norma desaplicada [alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85] constitui legislação do trabalho: integra-se em diploma
relativo à matéria de acidentes de trabalho e incide sobre aspectos substanciais
da protecção dos trabalhadores no âmbito do regime dos acidentes de trabalho. As
tabelas de reservas matemáticas para que remete repercutem-se na consistência
da garantia das pensões por acidentes de trabalho e no caucionamento das pensões
na falta ou insuficiência do seguro.
10. Perguntar-se-á, então, se tal preceito, ao
repercutir-se na determinação do valor da causa nos processos de acidentes de
trabalho e doenças profissionais, implicará uma norma concreta eminentemente
processual, em que já não estará em causa a legislação do trabalho. A resposta a
esta pergunta é negativa. Ainda que indirectamente, também aqui está em causa a
protecção dos trabalhadores visto que a definição do valor da causa interfere na
possibilidade de recorrer e, reflexamente, no conteúdo - em concreto - do
direito à pensão.
11. Também a circunstância de a norma desaplicada se
integrar em mero acto regulamentar (portaria) não obsta à conclusão de que se
está perante legislação do trabalho. Este conceito não se restringe aos actos
legislativos, envolvendo, no seu sentido amplo, toda a produção normativa,
designadamente os diplomas regulamentares, desde que não sejam 'puramente
executivos, isto é, que ainda contenham uma decisão substantiva sobre algum
aspecto que interesse ao estatuto jurídico dos trabalhadores' (Gomes Canotilho e
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, ob. cit., p. 296,
e Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 232/90 e 233/90, de 3 de Julho de
1990, Diário da República, II, de 22 de Janeiro de 1991).
A alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85, não obstante
o seu carácter regulamentar (e não directamente inovatório), não constitui
norma 'puramente executiva', uma vez que são as próprias tabelas de reservas
matemáticas, constantes dessa Portaria e a que essa norma se reporta, que
permitem 'quantificar' os direitos dos trabalhadores, conferindo-lhes conteúdo e
expressão. Tal norma tem, assim, repercussão substantiva sobre a situação dos
trabalhadores.
Aliás, a demonstração feita na doutrina de uma alegada
'iniquidade' da Portaria nº 760/85 - cujas tabelas contêm, efectivamente,
coeficientes inferiores, em regra, aos constantes das tabelas anexas à Portaria
nº 632/71 (cf. Vitor Ribeiro, 'Acidentes de Trabalho - Disposições Legais Mais
Recentes', in Cadernos da Revista do Ministério Público, nº 1, pp. 86 ss.) -, só
vem evidenciar a relevância substancial dessas tabelas.
Justifica-se, deste modo, o entendimento de que o
direito de participação dos trabalhadores na produção normativa deveria ter sido
exercido no decurso do processo de formação da Portaria nº 760/85,
designadamente em relação à alínea a) do seu nº 3.
Idêntica posição foi perfilhada, para a alínea b) do nº
3 dessa Portaria, nos citados Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 232/90 e
233/90, podendo ler-se, no primeiro desses arestos, o seguinte:
'(...) a norma que manda atender, para o cálculo do capital de remição, às
tabelas relativas às provisões matemáticas das empresas de seguros, em si mesma
considerada, nada adianta quanto à quantificação desse direito dos trabalhadores
que só veio a adquirir conteúdo e expressão através do coeficiente indicado nas
tabelas aprovadas pelo regulamento.
Deste modo, ondo o exercício daquele direito de participação mais se
justifica é no decurso do processo conducente à aprovação do acto regulamentar,
concretamente da Portaria nº 760/85, pois que aí se situou a opção fundamental
do legislador a propósito da definição dos montantes do capital de remição.'
12. Conclui-se, assim, que a norma constante da alínea
a) do nº 3 da Portaria nº 760/85 reveste a natureza de legislação do trabalho e,
uma vez que foi editada sem a participação, na sua elaboração, das organizações
representativas dos trabalhadores, sofre de inconsti-tucionalidade formal.
III
Decisão
13. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante da alínea
a) do nº 3 da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, enquanto conjugada com o nº 1
dessa portaria, por violação do disposto nos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº
2, alínea a), da Constituição (na redacção da primeira revisão constitucional);
b) Negar, em consequência, provimento ao recurso,
confirmando-se a decisão recorrida.
Lisboa, 20 de Abril de 1995
Ass) Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto aposta ao
acórdão nº 232/90, DR, II Série, de 22.01.91)
Armindo Ribeiro Mendes (vencido nos termos da
declaração de voto anexa)
Luis Nunes de Almeida (vencido, por entender
que se não está perante 'legislação do trabalho', uma vez que a norma em causa
não regula directamente matéria atinente a direitos dos trabalhadores)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido pelas razões que passo a
referir.
A norma aplicada por remissão do artº 123º,
nº 1, do Código de Processo de Trabalho - constante da alínea a) do nº 3º da
Portaria nº 760/85, conjugada com o nº º1 da mesma Portaria - tem a ver com
matéria processual, pelo que não se considera que ela possa pôr directamente em
causa os direitos dos trabalhadores, tanto mais que o valor da causa é
invariável quer a entidade patronal haja transferido a sua responsabilidade pelo
pagamento da pensão a uma seguradora, quer não o tenha feito e haja caucionado o
pagamento dessa pensão (cfr.art. 70º do Decreto nº 360/71).
Contra esta posição não pode argumentar-se
quer com a redacção do artº 8º, nº 1, alínea x), do Código das Custas Judiciais
(nessa disposição faz-se uma ligação entre as reservas matemáticas e a
finalidade da sua constituição 'para garantia das respectivas pensões', ligação
que provinha da redacção do artº 118º do Código de Processo de Trabalho de 1963,
mas que se não afigura de relevância para o presente recurso), quer com a
necessidade de manter uma solução unitária em matéria do valor do processo e em
matéria de constituição de caução. Tão-pouco se pode argumentar, no que toca à
incidência em concreto do cálculo do valor da acção, com a sua relação com as
alçadas dos tribunais de trabalho. Tenho por seguro que o valor das alçadas
nunca pode afectar directamente os direitos dos trabalhadores, não tendo, por
isso, as suas organizações de ser ouvidas sobre legislação atinente a esta
matéria de natureza processual e organizatória.
Alguma incongruência existe, no plano do
direito ordinário, mas não acarreta, em minha opinião, qualquer juízo de
desvalor constitucional no que toca ao modo de fixação do valor das causas em
matéria de acidentes de trabalho, por não se ver qual a norma ou princípio
constitucional violados por tal norma de natureza processual.
As) Armindo Ribeiro Mendes