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Procº nº 93/92
Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. M..., empregada administrativa do Banco de
Portugal, requereu, em 15 de Setembro de 1986, ao Conselho Distrital de Lisboa
da Ordem dos Advogados a sua inscrição como advogada estagiária, referindo
expressamente aquela sua profissão.
Tal pedido veio a ser deferido por deliberação do
Conselho Distrital de Lisboa de 29 de Outubro de 1986 e confirmada por
deliberação do Conselho Geral de 12 de Novembro de 1986.
2. Em 25 de Julho de 1988, requereu a M... a
inscrição como advogada, reiterando que mantinha a mesma situação profissional.
Mas, por deliberação de 15 de Novembro de 1988, o Conselho Distrital de Lisboa
indeferiu o pedido de inscrição, por considerar a requerente abrangida pela
incompatibilidade prevista no artigo 69º, nº 1, alínea i), do Estatuto da Ordem
dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, isto é, por
entender que ela era agente de um serviço público de natureza central. Daquela
deliberação recorreu a mesma para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados,
que, por acórdão de 7 de Julho de 1989, negou provimento ao recurso e manteve a
deliberação recorrida.
3. Inconformada, recorreu a M... para o Tribunal
Administrativo de Círculo de Lisboa, que, por Sentença de 10 de Outubro de 1990,
negou provimento ao recurso. Deste aresto interpôs a mesma novo recurso, desta
vez para o Supremo Tribunal Administrativo, referindo, em síntese, nas
respectivas alegações, que, não tendo havido alteração na sua situação
profissional, a sua admissão como advogada estagiária constituiu-a no direito a
exercer a actividade de advogada estagiária e a, 'nesse mesmo contexto fáctico e
feito o estágio com boa informação, nos termos do artigo 170º, nº 1, do E.O.A.,
ter acesso à categoria de advogada, que não é mais que a continuação e o
desenvolvimento da primeira situação em que foi investida'. Ainda segundo a
argumentação aduzida nas referidas alegações, a admissão como advogada
estagiária 'implicou a verificação de requisitos que foram atributivos de
direitos para a recorrente: primeiro, o de exercer as actividades de advogada
estagiária, segundo, o de, feito o estágio, ter acesso à plenitude da profissão
de advogado'. Finalmente, refere a recorrente naquela peça processual que 'a
interpretação dada a qualquer norma do E.O.A., maxime ao seu artigo 170º, que
permita sustentar a possibilidade da revisão dos pressupostos em que assentou a
admissão como advogado estagiário, constitui violação do princípio
constitucional do respeito pelos direitos adquiridos, que o artigo 266º, nº 1,
da Constituição reflecte'.
4. Por Acórdão de 19 de Dezembro de 1991, o Supremo
Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, confirmando a sentença
recorrida. Naquele aresto, o Supremo Tribunal Administrativo rejeitou a questão
de inconstitucionalidade suscitada, ponderando que 'nada há na legislação
vigente que imponha a inscrição obrigatória no quadro da Ordem dos Advogados aos
advogados estagiários com aproveitamento ou que a inscrição seja concedida
automaticamente após a efectivação do estágio com aproveitamento'. Ainda segundo
aquela instância, 'o que a lei efectivamente prevê são duas inscrições distintas
a apreciar e a conceder por órgãos diferentes e com implicações também
diferentes. Trata-se, sem dúvida, de actos constitutivos de direitos. Mas
direitos distintos e por isso não ocorre a violação do princípio do respeito
pelos direitos adquiridos consagrado no artigo 266º, nº 1, da Constituição'.
5. É daquele acórdão que vem interposto pela M... o
presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro).
No requerimento de interposição do recurso,
apresentado na sequência do convite feito pelo Relator, nos termos do nº 5 do
artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, refere a recorrente que a norma
cuja inconstitucionalidade se pretende que seja apreciada é 'o nº 1 do artigo
170º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto--Lei nº 84/84,
de 16 de Março, no entendimento que lhe é dado pela autoridade recorrida e pelas
instâncias no sentido de que tal preceito permite, aquando da apreciação do
pedido de inscrição do advogado estagiário como advogado, que a Ordem reveja a
verificação dos requisitos em que assentou a admissão como advogado estagiário
(ou, se se preferir, que a Ordem os aprecie de novo)'. Mas 'se se entender que
tal sentido resulta da conjugação desse preceito com o disposto nos artigos
157º, 161º e 171º daquele Estatuto, como igualmente pode decorrer da decisão
recorrida, a inconstitucionalidade dessa conjugação também deve ser apreciada'.
De acordo com o mesmo requerimento, as normas ou princípios constitucionais
violados são os princípios constitucionais da 'protecção da confiança e do
respeito pelos direitos adquiridos pelos particulares e o artigo 266º, nº 1, da
Constituição'.
Nas alegações produzidas neste Tribunal, conclui
assim a recorrente:
'1- Admitido um advogado estagiário com base no
pressuposto de que detém certa qualidade de empregado, não pode, findo o estágio
com boa informação, ser-lhe recusada a sua inscrição como advogado com
fundamento em diferente interpretação da norma que avalia a compatibilidade
dessa situação com o exercício da advocacia.
2- Entenderam a autoridade recorrida e as
instâncias em sentido diverso, sustentando que, aquando da inscrição como
advogado, pode ser reapreciada a verificação desse requisito, invocando em favor
da sua tese o artigo 170º, nº 1, do EOA ou, se se entender nesse sentido, a
conjugação de tal preceito com os artigos 157º, 161º e 171º do EOA.
3- Tal entendimento viola os princípios
constitucionais da protecção da confiança e do respeito pelos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos, que estão inscritos no nosso
modelo constitucional, reflectindo-se o segundo designadamente no artigo 266º,
nº 1, da Constituição'.
Por sua vez, o Conselho Superior da Ordem dos
Advogados começou por suscitar, nas alegações aqui produzidas, a questão prévia
da inadmissibilidade do recurso, por a recorrente não ter arguido a
inconstitucionalidade de quaisquer normas do Estatuto da Ordem dos Advogados na
petição de recurso contencioso para o Tribunal Administrativo de Círculo de
Lisboa. E conclui as suas alegações do modo que se segue:
'1- O presente recurso deverá ser rejeitado por não
se poder considerar a questão de inconstitucionalidade por ele proposta como
suscitada 'durante o processo';
2- De todo o modo, o nº 1 do artigo 266º da
Constituição não tutela a estabilidade das situações jurídicas criadas pela
Administração na esfera jurídica dos administrados, mas sim a observância do
princípio da legalidade administrativa;
3- Não parece, pois, invocável para os efeitos
pretendidos pela recorrente;
4- Também não houve violação do princípio da
protecção da confiança, desde logo porque o acto administrativo sujeito a
impugnação contenciosa não destruiu quaisquer efeitos jurídicos gerados por acto
anterior e ainda ....
5- ... porque, mesmo que o tivesse feito, essa
conduta seria imposta pela reposição da legalidade ofendida pelo acto anterior e
teria tido lugar no primeiro momento em que seria materialmente possível a
conduta revogatória'.
6. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e
decidir.
II - Fundamentos.
7. Como foi salientado, o recorrido iniciou as suas
alegações pela invocação de uma questão prévia, traduzida na inadmissibilidade
do recurso, por a recorrente não haver levantado tempestivamente a questão de
inconstitucionalidade. Segundo o Conselho Superior da Ordem dos Advogados, a
recorrente não arguiu, na petição do recurso contencioso administrativo, a
inconstitucionalidade de quaisquer normas. Tal só veio a acontecer nas alegações
do recurso por ela interposto para o Supremo Tribunal Administrativo e, na
perspectiva do recorrido, 'não estava já em tempo de o fazer, porque os
recorrentes não podem levantar questões de direito nos recursos que interpõem
das sentenças dos tribunais de primeira instância. A violação de preceitos
constitucionais foi 'questão nova', de que o Supremo Tribunal Administrativo não
podia conhecer, por o seu poder jurisdicional quanto à matéria da causa se
esgotar para além do âmbito da matéria discutida e decidida na primeira
instância (artigo 666º do Código de Processo Civil)'.
Como as questões de inconstitucionalidade não foram
devidamente suscitadas no 'processo-pretexto', deve entender-se, na óptica do
recorrido, que não se encontram reunidos os pressupostos previstos no artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
Ouvida sobre a questão prévia, veio a recorrente
dizer, em síntese, que 'a Lei do Tribunal Constitucional (art. 70º) não exige
que a inconstitucionalidade tenha sido suscitada desde a primeira intervenção da
parte no processo, bastando-se com o facto de que tal inconstitucionalidade
tenha sido materialmente suscitada durante o processo, como aqui manifestamente
aconteceu'.
Importa, por isso, começar por conhecer da
assinalada questão prévia. É o que vai fazer-se.
7.1. O recurso de inconstitucionalidade previsto no
artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional exige, para além dos pressupostos gerais,
a verificação dos seguintes requisitos específicos:
a) A suscitação durante o processo da
inconstitucionalidade de uma ou de várias normas jurídicas;
b) A aplicação ulterior pela decisão recorrida
dessa norma ou normas jurídicas reputadas de inconstitucionais;
c) A inadmissibilidade de recurso ordinário da
decisão de aplicação, por a lei não o prever ou por já se haverem esgotado todos
os que no caso cabiam.
Ao suscitar a questão prévia, o recorrido contestou
a verificação,in casu,do primeiro requisito específico referido.
Constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste
Tribunal que aquele requisito deve ser entendido não em sentido meramente
formal, tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da
instância, mas num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ser feita
em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão, ou seja,
antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, o qual ocorre, em princípio,
com a prolação da sentença. Noutros termos, a questão de inconstitucionalidade
considera-se suscitada durante o processo sempre que seja invocada em momento em
que o tribunal a quo ainda dela possa conhecer. Neste sentido, cfr., inter alia,
os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 90/85, 94/88, 318/90, 41/92 e 310/94,
os primeiros quatro publicados no Diário da República, II Série, de 11 de Julho
de 1985, 22 de Agosto de 1988, 15 de Março de 1991, e 20 de Maio de 1992,
respectivamente, e o último ainda inédito).
7.2. No caso sub judicio, a questão de
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 170º do Estatuto da Ordem dos
Advogados foi suscitada pela primeira vez pela recorrente nas alegações do
recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. E, como já foi realçado, segundo
entendimento do recorrido, a questão de inconstitucionalidade não foi
oportunamente suscitada, pois a 'violação de preceitos constitucionais foi
'questão nova', de que o Supremo Tribunal Administrativo não podia conhecer, por
o seu poder jurisdicional quanto à matéria da causa se esgotar para além do
âmbito da matéria discutida e decidida na primeira instância (artigo 666º do
Código de Processo Civil)'.
Acontece, porém, que, como resulta do artigo 207º
da Lei Fundamental, a inconstitucionalidade é questão de conhecimento oficioso
de qualquer tribunal, pelo que os interessados podem invocá-la em qualquer via
de recurso ordinário que a decisão consinta. Como se consignou no Acórdão deste
Tribunal nº 173/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 30 de
Novembro de 1988) e se repetiu nos citados Acórdãos nºs. 41/92 e 310/94, 'se
suscitada (a questão de inconstitucionalidade) pela primeira vez em alegações
perante o Supremo Tribunal de Justiça, não há que considerá-la, pois, uma
'questão nova', que ao Supremo seja vedado apreciar: há sim, que conhecer dela'.
Deve, por isso, entender-se que a natureza oficiosa
do conhecimento da questão de inconstitucionalidade prevalece sempre em face do
argumento da 'questão nova', desde logo porque, em processo constitucional,
basta que a decisão do tribunal aplique norma cuja inconstitucionalidade haja
sido suscitada durante o processo, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, norma que aparece, de resto, em
consonância com a alínea b) do nº 1 do abrigo 280º da Constituição.
Há, pois, que concluir pelo desatendimento da
questão prévia invocada pelo recorrido.
8. Como flui das peças processuais, a recorrente
defende o seu direito à inscrição como advogada, sustentando que o acto de
admissão de um canditado 'como advogado estagiário' é o acto constitutivo de
direitos (constitutivo do status profissional), pelo que a inscrição como
advogado fica apenas condicionada por uma actividade de controlo da
administração, destinada a certificar o cumprimento de determinadas obrigações
legais: frequência do estágio com 'boa informação' (artigo 170º, nº 1, do
Estatuto da Ordem dos Advogados).
Assim sendo, a admissão da recorrente como advogada
estagiária constituiu-a no direito de exercer a actividade de advogada
estagiária e a ter acesso à categoria de advogada, desde que verificadas as
condições legais previstas no artigo 170º daquele Estatuto, e que a
administração é apenas chamada a declarar verificadas ou não.
Ainda segundo a argumentação da recorrente,
mantendo-se a mesma situação fáctica existente no momento da decisão sobre o
pedido de inscrição como advogada, não é possível rever e alterar a decisão de
não incompatibilidade efectivada no momento da inscrição como advogada
estagiária, sob pena de violação do princípio constitucional da protecção da
confiança (artigo 2º da Constituição) e do princípio do respeito pelos direitos
adquiridos (artigo 266º, nº 1, da Lei Fundamental).
Em reforço da sua tese da proibição da alteração,
aquando da decisão sobre a inscrição como advogado, da anterior decisão de
verificação dos requisitos de admissão como advogado estagiário, nomeadamente de
não existência de incompatibilidades, arguiu a recorrente, nas alegações do
recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, 'a inconstitucionalidade da
interpretação dada a qualquer norma, maxime ao artigo 170º do Estatuto da Ordem
dos Advogados, com base na qual se sustenta a possibilidade de, em sede de
inscrição como advogado, se poder pôr em causa a verificação dos requisitos que
permitiram a inscrição como advogado estagiário, desde que, naturalmente não se
alterem os pressupostos fácticos de ambos os actos'.
Verifica-se do trecho transcrito que a única norma
cuja inconstitucionalidade a recorrente suscitou 'durante o processo' foi a do
artigo 170º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na interpretação que lhe foi
dada tanto na Sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa de 10 de
Outubro de 1990, como no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de
Dezembro de 1991, isto é, com o sentido de que, no momento da decisão sobre a
inscrição como advogado de um 'advogado estagiário', é possível reapreciar a
existência de incompatibilidades com o exercício da advocacia. Isto significa
que não foi suscitada a inconstitucionalidade, 'durante o processo', das normas
dos artigos 157º, 161º e 171º do Estatuto da Ordem dos Advogados - de facto,
estas normas só foram indicadas no requerimento de interposição do recurso para
este Tribunal -, nem da norma da alínea i) do nº 1 do artigo 69º daquele
Estatuto, que estabelece a incompatibilidade com o exercício da advocacia com as
funções de 'funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza
central, regional ou local, ainda que personalizados', incompatibilidade essa
que, no caso da recorrente, foi considerado verificar-se. Com efeito, em parte
alguma do processo, invocou a recorrente a inconstitucionalidade desta última
norma, resultando antes dos autos que aquela não contesta a legitimidade
constitucional da norma que prevê a incompatibilidade que lhe veio a ser
reconhecida, mas apenas da norma que possibilita que uma incompatibilidade
venha a ter-se por verificada no momento da decisão sobre a inscrição como
advogado, quando essa mesma incompatibilidade foi tida por inexistente no
momento em que foi proferida decisão favorável sobre a admissão como advogado
estagiário.
Objecto do presente recurso de constitucionalidade
é, pois, tão-só a norma do artigo 170º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na
interpretação acima assinalada.
9. A norma do artigo 170º da Estatuto da Ordem dos
Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, prescreve o
seguinte:
'1 - A inscrição como advogado depende do estágio com boa informação.
2 - A boa informação no estágio depende do cumpri- mento do disposto nos artigos
165º e 166º'.
Como se referiu, a recorrente entende que a norma
transcrita é inconstitucional, por violação dos 'princípios constitucionais da
protecção da confiança e do respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, que estão inscritos no nosso modelo constitucional,
reflectindo-se o segundo designadamente no artigo 266º, nº 1, da Constituição',
se interpretada, tal como o foi pelas instâncias, com o sentido de que, no
momento da decisão sobre a inscrição como advogado de um 'advogado estagiário',
é possível reapreciar a verificação de incompatibilidades com o exercício da
advocacia, mantendo-se inalteráveis os pressupostos existentes aquando da
decisão de admissão como 'advogado estagiário'.
Entende, porém, o Tribunal que a aludida norma não
viola nem o princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado
de direito, consagrado nos artigos 2º e 9º, alínea b), da Constituição, nem o
artigo 266º, nº 1, da Constituição. Vejamos porquê.
9.1. Interpretando o artigo 170º, nº 1, do Estatuto
da Ordem dos Advogados, escreveu-se, em dado passo, no acórdão recorrido:
'O facto de anteriormente a recorrente ter sido
admitida a estágio da advocacia não era de per si suficiente e decisivo para
que, findo o estágio com boa informação, fosse imediatamente inscrita como
advogada. Trata-se de dois actos distintos e não de actos sobre actos, pois
constituem direitos bem diferentes. O primeiro consistiu no direito da
recorrente efectuar um estágio e o segundo no direito ao exercício da profissão
de advogado.
O acto que a admitiu como advogada estagiária
definiu e declarou esta qualidade, que, porém, não pode transpor-se para outra
situação, que é a de exercer a advocacia.
Não se pode, por isso, falar, em rigor, de acto
revogatório. Daí que o artigo 18º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal
Administrativo (LOSTA) não tenha aplicação ao caso sub-judice,já que o acto
administrativo impugnado pela recorrente não revogou o anterior acto de admissão
desta ao estágio da advocacia.
Não obstante o primeiro acto de admissão se ter
fundado, entre outros pressupostos, num juízo de compatibilidade, não estava
impedido o Conselho Superior da Ordem dos Advogados de, no segundo
acto,considerar, como veio a suceder, a ocorrência da incompatibilidade da
alínea i) do nº 1 do artigo 69º do EOA.
Trata-se de dois actos administrativos distintos,
como decorre da leitura dos artigos 157º e 161º do EOA, por um lado, e dos
artigos 170º e 171º do mesmo EOA, por outro, e dos quais ressalta que se trata
de duas deliberações autónomas, que desempenham funções distintas: admitir a
fazer estágio e admitir ao exercício da profissão de advogado.
Não há, assim, que falar em 'accertamento' na
modalidade de uma verificação constitutiva, como pretende a recorrente quando
sustenta que o exame do pressuposto da (in)compatibilidade teria integrado o
conteúdo do acto de admissão ao estágio, já que a valoração da situação
profissional da requerente de admissão ao estágio, para concluir se ocorre ou
não incompatibilidade que impeça a inscrição, não obedece a qualquer propósito
de atestação para efeito de criar uma certeza legal'.
E um pouco mais à frente, debruçando-se sobre a
questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente, ponderou o acórdão
aqui sob recurso:
'Tal inconstitucionalidade consubstanciar-se-ia na
violação do princípio do respeito pelos direitos adquiridos pelos cidadãos, que
o artigo 266º, nº 1, CRP reflecte e o artigo 18º da LOSTA concretiza.
Resulta do que acima se escreveu que não colhe a
argumentação da recorrente, visto que não se trata do respeito por direitos
adquiridos.
Na verdade, nada há na legislação vigente que
imponha a inscrição obrigatória no quadro da Ordem dos Advogados aos advogados
estagiários com aproveitamento ou que a inscrição seja concedida automaticamente
após a efectivação do estágio com aproveitamento.
O que a lei efectivamente prevê são duas inscrições
distintas a apreciar e a conceder por órgãos diferentes e com implicações também
diferentes.
Trata-se,sem dúvida, de actos constitutivos de
direitos. Mas direitos distintos e, por isso, não ocorre a violação do princípio
do respeito pelos direitos adquirido consagrado no artigo 266º, nº 1, da
Constituição'.
9.2. O acórdão recorrido interpretou, como se viu,
a norma do artigo 170º do Estatuto da Ordem dos Advogados com o sentido de que
a inscrição de um advogado estagiário como advogado é um acto autónomo em
relação à inscrição de uma pessoa como advogado estagiário, já que se trata de
actos que seguem procedimentos diferentes, obedecem a pressupostos diversos e
produzem efeitos distintos - interpretação esta que é controversa, mas que não
pode ser sindicada pelo Tribunal Constitucional, dado que não lhe cabe intervir
ou resolver contendas doutrinais ou jurisprudenciais relacionadas com a
interpretação de normas de direito ordinário, as quais escapam à sua função
específica de controlo da constitucionalidade (cfr. o Acórdão deste Tribunal nº
370/93, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1993).
[Uma interpretação oposta àquela é defendida, por exemplo, por João Pacheco de
Amorim, A Liberdade de Escolha da Profissão de Advogado (Procedimento
Administrativo de Concretização), Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 47-49, para
quem o acto de inscrição como advogado estagiário não é um acto constitutivo
(autorização), mas meramente declarativo, uma vez que o exercício do direito
está condicionado apenas a juízos de conhecimento vinculados, limitando-se o
estagiário, findo o estágio, a pedir à Ordem que certifique o cumprimento das
suas (dele estagiário) obrigações legais].
Assim sendo, se a inscrição de alguém como advogado
estagiário não lhe confere automaticamente direito, uma vez terminado o estágio
com boa informação, a ser inscrito como advogado, a recusa de inscrição dessa
mesma pessoa como advogado, no caso de o órgão competente da Ordem dos Advogados
detectar a existência de uma incompatibilidade com o exercício
da advocacia, não constitui violação do princípio da protecção da confiança, nem
a revogação de qualquer direito adquirido. Equivale isto por dizer que a norma
do artigo 170º do Estatuto da Ordem dos Advogados, interpretada nos termos
assinalados, não infringe o princípio da protecção da confiança, decorrente do
princípio do Estado de direito, referenciado nos artigos 2º e 9º, alínea b), da
Constituição, nem o artigo 266º, nº 1, da Lei Fundamental, mesmo que se
considere - o que não é seguro - que nele encontra guarida um verdadeiro e
autêntico princípio constitucional de respeito pelos direitos e interesses
legalmente protegidos.
10. Antes de terminar, apenas mais duas notas.
A primeira para referir que a norma do artigo 170º
do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de
Março, foi alterada recentemente pelo artigo 1º da Lei nº 33/94, de 6 de
Setembro - fenómeno que não tem, porém, qualquer repercussão no caso sub
judicio, já que a norma aplicada no presente processo foi a constante da sua
versão originária. A segunda para adiantar que o Tribunal Constitucional, no seu
Acórdão nº 106/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Julho de
1992), interpretou a norma da alínea i) do nº 1 do artigo 69º do Estatuto da
Ordem dos Advogados no sentido de o conceito de 'funcionário ou agente de
quaisquer serviços públicos' não poder abranger certas classes de pessoas, como
sejam, por exemplo, a classe dos 'trabalhadores de empresas públicas não
sujeitos ao regime geral da função pública'. Nesta linha, o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucional, naquele aresto,por violação do artigo
13º da Constituição, a norma da alínea i) do artigo 69º do Estatuto da Ordem dos
Advogados (Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março), quando interpretada no sentido
de abranger os trabalhadores das empresas públicas não sujeitos ao regime geral
da função pública.
Mas, no presente processo, não pode o Tribunal
Constitucional conhecer da questão da inconstitucionalidade daquele norma, uma
vez que, como foi demonstrado, nunca a recorrente suscitou a sua
inconstitucionalidade 'durante o processo'.
III- Decisão.
11. Nos termos e pelos fundamentos expostos,
decide--se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão
recorrido, na parte impugnada.
Lisboa, 26 de Abril de 1995
Fernando Alves Correia
Bravo Serra
Messias Bento
Guilherme da Fonseca
José Manuel Cardoso da Costa