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Processo n.º 303/91 Plenário Relator: Conselheiro Luís Nunes de Almeida
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 - Ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, da Constituição e no artigo
51.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o Provedor de Justiça veio requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 1/90, de
3 de Janeiro, que estabeleceu a atribuição de indemnizações compensatórias aos reformados da Empresa Pública do Jornal Diário Popular que, à data da extinção daquela empresa pública, estavam a receber complementos de reforma.
Segundo o Provedor de Justiça, tal norma ofende o disposto no artigo 63.º, n.º
1, da Constituição - que consagra o direito à segurança social -, não podendo o Estado extinguir um benefício de segurança social ou uma sua parcela diferenciada como é o complemento de reforma.
2 - Alega o requerente que os «complementos de reforma, atribuídos em resultado de acordos individuais efectuados entre a empresa e os seus trabalhadores, com base nos quais estes se reformaram antecipadamente, haviam revestido o carácter de prestação que se mantinham para sempre». Daí que a mera atribuição de indemnizações compensatórias, calculadas em função de um mês de complemento de reforma por cada ano de antiguidade, num mínimo de três anos, quando os trabalhadores «tinham aceitado passar antecipadamente à situação de reforma no pressuposto de que aqueles complementos lhes seriam concedidos vitaliciamente, seja patentemente injusta e inconstitucional».
Depois de sublinhar que a solução legislativamente adoptada é injusta «porque o Estado, que decidiu privatizar» a empresa pública em causa, ao fazê-lo,
«expropriou» um «direito que fora concedido a reformados da empresa e em atenção ao qual eles aceitaram a reforma antecipada», o Provedor de Justiça assinala:
«Por outro lado, e ainda que se reconheça que o encargo com obrigações deste tipo não possa passar para as empresas privadas sucessoras das empresas públicas desnacionalizadas, não parece justo concluir pela mera impossibilidade absoluta de cumprimento daquelas.
Essa impossibilidade decorre de uma decisão estatal.
Logo, é ao Estado que deve incumbir encontrar solução para garantir a manutenção desses benefícios de segurança social.»
3 - Notificado o Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, veio o mesmo a responder, considerando que o complemento de reforma em causa não tem a natureza de uma prestação de segurança social, resultando antes de acordos individuais celebrados com os trabalhadores que quiseram reformar-se antecipadamente, nos termos dos quais a empresa se obrigou a pagar-lhes parte da remuneração a que eles teriam direito se estivessem no activo.
Com efeito, segundo o Primeiro-Ministro, do preceituado no artigo 63.º da Constituição apenas decorre para o Estado o dever «de não reduzir os direitos adquiridos no âmbito do sistema de segurança social, o que afasta, portanto, da esfera de protecção desta norma quaisquer outros, quer resultem de acordos individuais celebrados entre as empresas e os trabalhadores, quer seja outra a sua origem». Assim, não sendo o referido «complemento de reforma» da responsabilidade de qualquer das entidades de segurança social mencionadas na Lei de Bases da Segurança Social, nem por qualquer delas gerido, e não se encontrando ele, por outro lado, previsto na mesma lei, forçoso seria concluir que ele não revestia a natureza de um benefício de segurança social.
Nesta conformidade, ainda de acordo com o Primeiro-Ministro, não se poderia obrigar «o Estado a garantir a manutenção» de direitos resultantes de contratos celebrados entre uma empresa e os seus trabalhadores, «após o desaparecimento jurídico, seja qual for a forma que este assuma», dessa mesma empresa, quer ela fosse pública ou privada. Cumpre, agora, decidir.
II – Fundamentos
4 - Vem expresso no relatório do Decreto-Lei n.º 1/90, de 3 de Janeiro:
«No âmbito da política de privatização dos meios de comunicação social do Estado, foram autorizadas as alienações do parque gráfico e edifícios da Empresa Pública do Jornal Diário Popular (EPDP), das suas quotas no capital da Sociedade Editora Record, Lda., e na empresa de O Comércio do Porto, S. A., e, finalmente, do título Diário Popular e bens móveis que lhe estavam afectos.
Concretizadas tais alienações mediante concursos públicos, restam à Empresa Pública do Jornal Diário Popular alguns bens residuais, bem como os créditos e débitos resultantes das actividades que exercia e das próprias alienações. Tornou-se assim impossível àquela empresa prosseguir o seu objecto estatutário, pelo que importa proceder à sua extinção.»
E foi assim que o diploma extinguiu a EPDP (artigo 1.º) e estabeleceu que, para a prática dos actos de liquidação e apresentação das respectivas contas, seria nomeado um administrador liquidatário (artigo 2.º). Os credores da empresa ficaram com um prazo de 30 dias para reclamarem os seus créditos. Mas, quanto aos complementos de reforma devidos a reformados da empresa, dispôs-se, especialmente:
«Art. 6.º - 1 - Aos reformados da EPDP que à data da extinção desta empresa pública estejam a receber complementos de reforma serão atribuídas indemnizações compensatórias.
2 - O critério base para cálculo das indemnizações corresponderá a um mês de complemento de reforma por cada ano de antiguidade na empresa, num mínimo de três anos.»
5 - Segundo o Provedor de Justiça, aqueles complementos de reforma constituem um benefício de segurança social - que o Estado não pode extinguir, por incompatibilidade com a norma do artigo 63.º, n.º 1, da Constituição, segundo a qual «todos têm direito à segurança social». Tal direito, por seu turno, não se reduzirá apenas à definição programática de que o Estado deverá instituir um sistema de segurança social que a todos aproveite, mas traduzir-se-á, também, no próprio direito subjectivo público de receber cada benefício de segurança social, uma vez preenchidos os requisitos legais da sua aquisição. E acrescenta:
«Se pode figurar-se que o valor daquele benefício possa, porventura, oscilar, já o mesmo não sucede com a sua extinção total ou de uma sua parcela diferenciada
(como é o complemento de pensão em causa), por incompatibilidade com a aludida regra da lei fundamental.»
6 - A isto responde o Primeiro-Ministro que complemento de reforma em causa não
é um benefício de segurança social, uma vez que não resulta de qualquer compromisso legalmente assumido por uma instituição de segurança social, nem a sua gestão cabe a qualquer das entidades referidas no artigo 64.º da Lei de Bases da Segurança Social. E continua:
«Assim, o que aconteceu foi que a EPDP estabeleceu, através de acordos individuais celebrados com os trabalhadores que quisessem reformar-se antecipadamente, continuar a pagar-lhes parte da remuneração a que teriam direito se estivessem no activo, prestação que, de modo algum, pode considerar-se como de segurança social.»
Tendo sido celebrado por uma empresa pública, acrescenta ainda o Primeiro-Ministro, o acordo em questão não obriga o Estado, que tem personalidade jurídica distinta dessa empresa. E com a extinção da EPDP, o mesmo Estado não assume a posição de devedor em relação a tal prestação; a norma questionada visa, antes, encontrar uma solução adequada e justa para os trabalhadores que tinham direito a tais complementos.
7 - Apreciemos estas razões.
O complemento de reforma em causa foi concedido pelo conselho de gerência da EPDP aos trabalhadores que quisessem reformar-se antecipadamente, tendo este conselho anunciado que ele seria pago de acordo com o estabelecido no contrato colectivo de trabalho que abrangia os profissionais do sector.
De qualquer forma, o pagamento de tal complemento de reforma foi uma obrigação assumida pela empresa e não por qualquer das instituições de segurança social referidas nos artigos 6.º e 7.º, n.º 2, da Lei n.º 28/84 (Lei da Segurança Social).
Assim, tendo embora um inegável carácter social, a prestação em causa não se configura como um benefício da segurança social, garantido pelo artigo 63.º, n.º
1, da Constituição. E, desde logo, por isso, a norma em apreço não pode violar esta disposição constitucional.
Mas examinemos a questão sob outros pontos de vista, o que é lícito a este Tribunal, consoante decorre do preceituado no artigo 51.º, n.º 5, da Lei n.º
28/82.
8 - Pelo Decreto-Lei n.º 639/76, de 29 de Julho, foram nacionalizadas várias empresa jornalísticas, entre as quais a Sociedade Industrial de Imprensa, S.A.R.L., editora do Diário Popular (artigo 1.º). O mesmo diploma determinou também, para além do mais, a criação de duas empresas públicas jornalísticas, sendo uma, a Empresa Pública dos Jornais Século e Popular (EPSP), constituída em resultado da fusão, por incorporação, da Sociedade Nacional de Tipografia, S.A.R.L., e da Sociedade Industrial de Imprensa, S.A.R.L. (artigo 4.º).
Posteriormente, esta empresa pública veio a ser «extinta, por cisão», sendo criadas duas novas empresas públicas, uma das quais a Empresa Pública do Jornal Diário Popular (EPDP), consoante se estabeleceu no Decreto-Lei n.º 465-A/79, de
6 de Dezembro (artigo 1.º). Para a EPDP foi, por aquele diploma, transferida a universalidade dos bens, direitos e obrigações que haviam sido pertença da extinta Sociedade Industrial de Imprensa, S.A.R.L., bem como dos adquiridos ou contraídos posteriormente à criação da EPSP, mas que devessem considerar-se imputados à ex-SII, caso esta tivesse mantido a sua existência jurídica (artigos
2.º e 3.º).
Mais tarde, tendo em conta a situação fortemente deficitária da EPDP, mas reconhecendo que «o edifício de que é proprietária a empresa e o respectivo equipamento, a valores actuais, sobrelevam o montante do passivo», o Governo, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51/84 (publicada no Diário da República, 1.ª série, de 20 de Dezembro de 1984), veio a declarar a mesma empresa em situação económica difícil, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º
353-H/77, de 29 de Agosto, sendo que nessa resolução se previu, logo, a possibilidade de recurso a reformas antecipadas dos trabalhadores de idade superior a 55 anos, «de preferência segundo acordos individuais a negociar com o conselho de gerência» [ponto II, alínea j)].
Em cumprimento dessa decisão governamental, o conselho de gerência da empresa abriu inscrições para a reforma antecipada, comprometendo-se, além do mais, a atribuir aos trabalhadores que optassem por esse esquema um complemento à pensão de reforma fixada pela respectiva instituição de segurança social, de modo que viessem a receber um montante global igual à remuneração ilíquida que vinham auferindo. E a proposta do conselho de gerência acrescentava expressamente: «O montante deste complemento mantém-se para sempre.»
9 - A partir de 1986 começam a surgir instrumentos jurídicos destinados a permitir a alienação de bens do Estado em empresas de comunicação social, designadamente a Lei n.º 20/86, de 21 de Julho, atinente a esta matéria.
A Lei n.º 20/86 estabeleceu que «a alienação de quaisquer partes, quotas ou acções que o Estado ou qualquer entidade pública» detivesse «nas empresas de comunicação social, bem como do título dos seus órgãos ou de certo conjunto de bens e instalações» que constituíssem «o respectivo estabelecimento comercial», só poderia ser feita por concurso público (artigo 1.º), remetendo para decreto-lei, a publicar pelo Governo, a sua regulamentação (artigo 2.º), o que veio a acontecer com o Decreto-Lei n.º 358/86, de 27 de Outubro.
Invocando o preceituado neste último diploma, o Conselho de Ministros aprovou, em 13 de Novembro seguinte, uma resolução em que, na parte que ora interessa, se autorizava a EPDP a alienar, por concurso público, «a parte do seu património afecta à respectiva actividade gráfica», bem como a quota que a empresa detinha na Sociedade Editora Record, Lda. (resolução do Conselho de Ministros publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 275, de 28 de Novembro de 1986).
Todavia, a esta resolução não terá sido dado integral seguimento, tendo em conta a suspensão, pela Assembleia da República, do Decreto-Lei n.º 358/86, ao abrigo do qual ela fora editada (cf. Resolução da Assembleia da República n.º 29/86, aprovada em 21 de Novembro e publicada no Diário da República, 1.ª série, de 6 de Dezembro). E, na sequência dessa suspensão, o citado decreto-lei foi alterado pela Lei n.º 24/87, de 24 de Junho. Ulteriormente, quer o Decreto-Lei n.º 358/86
(incluindo algumas das suas disposições alteradas pela Lei n.º 24/87), quer a própria Lei n.º 20/86, viriam ainda a sofrer modificações introduzidas pela Lei n.º 72/88, de 26 de Maio. Foi neste quadro que o Governo acabou por autorizar a EPDP a alienar o título Diário Popular e o conjunto de bens móveis que integravam o respectivo estabelecimento comercial (Resolução do Conselho de Ministros n.º 6/89, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 2 de Fevereiro).
Não restam, pois, dúvidas de que foi por decisão do Estado, como expressamente dá conta o já transcrito preâmbulo do ora em apreço Decreto-Lei n.º 1/90, que determinou a extinção da EPDP, que foram alienados os bens de maior valor que constituíam o património activo da empresa («parque gráfico e edifícios», participações sociais noutras empresas, o título do jornal e os bens móveis que lhe estavam afectos). Ficaram, pois, por liquidar apenas «alguns bens residuais» desse património activo, bem como «os créditos e débitos resultantes da actividade que exercia e das próprias alienações», tornando-se inelutável a extinção da empresa, «no âmbito da política de privatização dos meios de comunicação social do Estado» (cf. o citado preâmbulo).
Finalmente, cabe assinalar que, ainda antes da publicação do Decreto-Lei n.º
1/90, a Constituição da República Portuguesa foi objecto de uma segunda revisão, ocorrida por força da Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho. Com particular importância para a questão ora em análise, cumpre acordar que a segunda revisão constitucional veio substituir a até então vigente regra da irreversibilidade das nacionalizações directamente efectuadas depois da Revolução de 25 de Abril, passando a Constituição a permitir «a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974», embora tão-só «nos termos de lei quadro aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções» (artigo 85.º, n.º 1), devendo tal lei quadro, para além do mais, assegurar que «os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares»
[artigo 296.º, alínea c)].
10 - Ao extinguir a empresa, o Decreto-Lei n.º 1/90 previu, como seria natural, o pagamento dos débitos da empresa, de acordo com a graduação estabelecida na lei geral. E estabeleceu uma norma excepcional relativa a uma categoria particular de credores da empresa: os trabalhadores que tinham direito a complementos de reforma receberiam, não o crédito correspondente (aliás, de natureza vitalícia), mas sim uma indemnização compensatória correspondente a um mês de complemento de reforma por cada ano de antiguidade, num mínimo de três anos.
Tal norma terá assentado na circunstância de a extinção da EPDP tornar impossível que ela continuasse a pagar uma prestação a título vitalício. No entanto, resultando essa impossibilidade de um facto que é imputável à própria empresa - porque necessariamente assim se há-de considerar a extinção decretada pelo Estado, em cuja titularidade ela se encontrava -, os credores de tal prestação teriam normalmente o direito a uma indemnização decorrente do incumprimento do contrato.
Atentas as circunstâncias específicas do caso, nada obstaria, em princípio, a que se estabelecesse um critério especial para a determinação das indemnizações correspondentes às prestações periódicas, como era o caso deste complemento de reforma, pelo que poderia, nomeadamente, tal prestação periódica ser substituída por uma indemnização compensatória de natureza fixa, o que afasta qualquer censura à norma do artigo 6.º, n.º 1, do diploma em apreço.
No entanto, apesar de ser à partida impossível comparar o montante desta indemnização compensatória com o complemento de reforma, dado o carácter vitalício deste, o certo é que não se poderia nunca, para se respeitar os princípios gerais, vir a estabelecer um critério de que resultasse, necessária ou até provavelmente, uma indemnização substancialmente inferior aos montantes que os interessados tinham legitimamente a expectativa de vir a receber, segundo os critérios legais comuns.
Ora, por força do critério imposto na norma do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 1/90, verdade é que, em concreto, tal indemnização pode revelar-se muito inferior, sobretudo para os reformados com menor antiguidade de serviço e com maior esperança de vida. Relativamente a estes, a compensação pode mesmo, nalguns casos, ser manifestamente irrisória face ao número previsível de prestações vincendas.
11 - Assim, suscita-se, desde logo, a questão de saber se, ao substituir o crédito que resultava do negócio jurídico celebrado entre a empresa e os seus ex-trabalhadores - negócio jurídico que havia sido o próprio Governo a impulsionar - por uma indemnização compensatória, em regra sensivelmente inferior e muitas vezes irrisória, o Estado-legislador não está a frustrar a confiança que os cidadãos devem ter na tutela jurídica dos seus direitos, tendo em conta, desde logo, que, in casu, esses direitos decorrem de situações criadas também pelo Estado, na veste de Estado-Administração.
Com efeito, é evidente que a convicção de que viriam a beneficiar de um complemento vitalício à pensão de reforma da segurança social terá sido determinante para que certos trabalhadores hajam optado pela reforma antecipada, em vez de manterem vigente o respectivo contrato de trabalho. E que, depois de captada a sua anuência a essa solução - como vimos, sugerida pelo Estado-Administração -, veio o Estado-legislador retirar-lhes o benefício concedido, sem compensação justa e adequada, porque a empresa - mais uma vez por incumbência do Estado-Administração - foi colocada em situação de não poder já solver o compromisso.
Não se pode, portanto, deixar de considerar que uma tal situação afronta, de forma intolerável e inadmissível, a segurança jurídica dos cidadãos e a confiança que hão-de depositar no Estado. É que, como resulta do Acórdão n.º
93/84 (publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 266, de 16 de Novembro de 1984), a Administração «não pode furtar-se, num Estado de direito democrático, e salvo circunstâncias excepcionais, a honrar compromissos que expressa e livremente assumiu e cujo reconhecimento e respeito foi com certeza determinante» na formação da vontade do cidadão. Isto porque, na afirmação lapidar do Acórdão n.º 666/94, «num Estado de direito, nunca os cidadãos [...] podem ficar à mercê de puros actos de poder».
A norma do artigo 6.º, n.º 2, viola, pois, nesta perspectiva, os princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos na ideia de Estado de direito democrático consagrada no artigo 2.º da Constituição.
12 - É verdade que, em sentido contrário, se poderia apontar, por um lado, que não estamos perante a quebra de um compromisso assumido pelo Estado, ele próprio, mas perante a regulação jurídica, ainda que em condições desvantajosas, de uma situação de impossibilidade de cumprimento, por parte da empresa; e, de outra banda, que a extinção dessa mesma empresa, com as suas inevitáveis consequências, entre as quais se encontraria a impossibilidade de continuar a pagar os complementos de reforma, era algo de previsível, com que os trabalhadores, incluindo os reformados, deveriam contar, dada a difícil situação económica e financeira com que ela há muito se debatia.
Quanto à primeira objecção, cumpre ripostar que o Estado era o único proprietário da empresa pública EPDP, pelo que os compromissos por esta assumidos eram, em última análise, necessariamente reportados ao próprio Estado. E, para além disso, que não é lícito ao Estado intervir legislativamente, sem violação do princípio da confiança, para extinguir ou intoleravelmente comprimir direitos patrimoniais de que os cidadãos sejam titulares, mesmo que - ou principalmente quando - em benefício de terceiros; ora, como se apurou, no caso vertente a compensação atribuída pode ser muito inferior ao direito de crédito resultante do contrato ou que resultaria do seu incumprimento, por aplicação dos princípios gerais.
Quanto à segunda objecção, há que assinalar que, pelo menos a partir da entrada em vigor da segunda revisão constitucional - e, portanto, desde momento anterior
à publicação do diploma em apreço -, a posição dos trabalhadores que recebiam o complemento de reforma se encontrava juridicamente muito reforçada, merecendo uma particular tutela.
Com efeito, face ao acima exposto, pode dar-se por assente que a EPDP era uma empresa pública resultante de uma nacionalização directa operada após 25 de Abril de 1974, através do Decreto-Lei n.º 639/76; e, outrossim, que a sua extinção culminou um processo integrado na «política de privatização dos meios de comunicação social do Estado».
Não se descortina, pois, como a finalização desse processo possa deixar de respeitar o preceituado na Constituição, depois de 1989, quanto à reprivatização de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974.
É certo que, no caso, o processo de reprivatização se iniciara antes da revisão constitucional e através de sucessiva alienação do património da empresa, que não por via da alienação do seu capital. Contudo, nenhum desses aspectos invalida a sujeição do processo de privatização, pelo menos daqueles actos posteriores à revisão constitucional, àquilo que na Constituição se passou a determinar, designadamente no que se refere à garantia de manutenção de todos os direitos de que os trabalhadores fossem titulares.
Nem se contradiga que os titulares do direito ao complemento de reforma não beneficiam da garantia concedida pelo artigo 296.º, alínea c), por já não serem trabalhadores da empresa, mas antes reformados. É que o objectivo da referida norma constitucional foi, seguramente, o de assegurar a protecção, face à empresa, dos direitos de todos aqueles que, em virtude de um contrato de trabalho, se acharam a ela vinculados - obviamente, desde que tais direitos radiquem nesse mesmo contrato de trabalho. Ora, encontrado-se o direito ao complemento de reforma indissoluvelmente ligado à extinção do contrato de trabalho, parece líquido que tal direito necessariamente nele radica, pelo que os reformados titulares desse mesmo direito sobre a empresa - e que, portanto, com ela continuam a manter um vínculo contratual - devem ser tidos como seus
«trabalhadores», para efeitos do disposto no artigo 296.º, alínea c), da lei fundamental.
E muito menos se argumente com o facto de o mencionado preceito constitucional constituir uma mera directiva para a lei quadro das privatizações, só podendo, por isso, ser por ela violado. Na verdade, como se afirmou no Acórdão n.º 71/90
(publicado no Diário da República, 2.ª série, de 18 de Julho de 1990), «enquanto princípio ou norma de garantia, o preceito constitucional invocado constitui uma regra de aplicação directa, uma vez que, em face do seu teor, a protecção dispensada aos direitos dos trabalhadores no processo de reprivatização abrange, de facto, todos os direitos e obrigações de que estes forem titulares, não distinguindo a lei fundamental entre os que têm origem legal e os que têm origem contratual».
Pode, pois, afirmar-se que a inconstitucionalidade da norma do artigo 6.º, n.º
2, do Decreto-Lei n.º 1/90 radica, verdadeiramente, na violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, decorrentes da ideia de Estado de direito democrático, consagrada no artigo 2.º da Constituição, quando conjugados com o disposto no artigo 296.º, alínea c), da mesma lei fundamental.
13 - Aqui chegados, desnecessário se torna verificar se ocorrem outros eventuais fundamentos de inconstitucionalidade, designadamente de inconstitucionalidade orgânica (quer por se poder estar perante matéria de direitos, liberdades e garantias, por ocorrer a privação ou amputação de um direito patrimonial já subjectivado, quer por se poder estar perante matéria de estatuto das empresas públicas, por a norma em causa integrar um diploma de extinção de uma empresa dessa natureza, e face à eventual ausência de bases gerais atinentes a essa matéria), de inconstitucionalidade formal (por eventual falta de audição dos organismos representativos dos trabalhadores) e de inconstitucionalidade material (quer por se questionar a possibilidade de se aniquilarem ou amputarem direitos patrimoniais subjectivados fora do caso de utilidade pública, quer por eventual tratamento discriminatório dos credores por complementos de reforma face aos restantes credores da empresa). Todas essas questões dispensam, porém, o seu tratamento por este Tribunal, que escusa de sobre elas se pronunciar neste momento, num ou noutro sentido, uma vez que outro fundamento de inconstitucionalidade foi já encontrado.
III – Decisão
14 - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 1/90, de 3 de Janeiro;
b) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 6.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, ínsitos na ideia de Estado de direito democrático consignada no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, quando conjugados com o preceituado no artigo 296.º, alínea c), da mesma Lei Fundamental.
Lisboa, 4 de Julho de 1996
Luís Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Armindo Ribeiro Mendes José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma (com declaração de voto) Messias Bento (vencido nos termos da declaração junta) Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Messias Bento) José Manuel Cardoso da Costa [não sendo embora insensível a parte da argumentação do acórdão, votei vencido quanto à alínea b) da decisão, porque - em último termo - o critério base para a determinação do valor da indemnização, definido na norma aí considerada, é paralelo ao que, nos termos da lei geral, se aplica à determinação do valor da indemnização devida aos trabalhadores, de qualquer empresa, cujo contrato de trabalho cesse por força de extinção da entidade empregadora ou de despedimento colectivo (Decreto-Lei n.º 68-A/89, de
27 de Fevereiro, artigos 6.º, n.ºs 2 e 3, e 23.º, n.º 1, com referência ao artigo 13.º, n.º 3). As situações - de trabalhador, que vê o seu vínculo laboral cessar nessas circunstâncias, e de reformado, que vê extinguir-se o direito a uma pensão vitalícia contratualmente estabelecida com a sua empresa - não são exactamente idênticas; mas a diferença não se me afigura suficientemente relevante para não encontrar aí, ainda, tertium comparationis mais próximo da situação em apreço - e em termos que não tornaram inequívoca para mim a inconstitucionalidade da situação legal].
Declaração de voto
Votei o presente acórdão, não tendo ultrapassado, todavia, dúvidas quanto à argumentação pela qual se veio afastar a declaração de inconstitucionalidade do artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 1/90, de 3 de Janeiro, por violação do artigo 63.º, n.º 1, da Constituição. Na realidade, não só entendo que não é líquido que só sejam benefícios sociais relevantes para o artigo 63.º, n.º 1, os que sejam atribuíveis pelos serviços de segurança social do Estado, como também considero discutível que só a redução de tais benefícios sociais conferidos pelo Estado consubstancie uma violação do artigo 63.º, n.º 1.
O artigo 63.º da Constituição é uma clara emanação do Estado de direito social e do Estado democrático social, de modo que qualquer direito concreto à segurança social surge tanto como direito à prestação do Estado como direito à promoção pelo Estado de formas não estatais de segurança social. Por outro lado, a qualificação de uma pretensão concreta como direito subjectivo público à segurança social não depende, essencialmente, do seu modo de atribuição (através do Estado ou de outra entidade), mas também da sua finalidade, do seu objecto e do preenchimento de requisitos para sua titularidade ou até das circunstâncias de extinção de um determinado benefício. Independentemente de cuidar de saber se, no caso concreto, os complementos de pensão de reforma poderiam ser objecto de um verdadeiro direito subjectivo público, parece-me ser indiscutível que nas situações em que entidades diferentes do Estado realizam tarefas de segurança social que a ele incumbem já estarão em causa verdadeiros direitos subjectivos públicos. Maria Fernanda Palma
Declaração de voto
Entendi, contrariamente à posição que fez vencimento, que a norma do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 1/90, de 3 de Janeiro - ao dispor que o critério base para cálculo das indemnizações compensatórias, a pagar aos reformados da EPDP que, à data da extinção desta, estivessem a receber complementos de reforma corresponderá a um mês de complemento de reforma por cada ano de antiguidade na empresa, num mínimo de três anos -, não afronta, de forma intolerável e inadmissível, a segurança jurídica dos cidadãos e a confiança que eles hão-de depositar no Estado.
1 - Não questiono que a promessa de pagamento de complementos de reforma vitalícios tenha sido determinante da opção de muitos trabalhadores pela reforma antecipada. E também não duvido que o critério de cálculo das indemnizações compensatórias, previsto na norma sub iudicio, possa conduzir a que os reformados com menos anos de serviço na empresa e maior esperança de vida acabem por receber indemnizações de montante muito inferior àquele que esperavam vir a receber ao longo da vida, assim vendo frustrada a expectativa com que passaram à reforma antecipada (ou seja, a expectativa de receberem, durante toda a vida, os complementos de reforma acordados).
Do que discordo é que se impute ao Estado-legislador a frustração de expectativas que tenham sido criadas aos reformados da EPDP (Empresa Pública do Jornal Diário Popular) pelo Estado-Administração.
Só seria razoável fazer uma tal afirmação se o legislador tivesse intervindo para extinguir a EPDP sem que essa extinção se fundasse em sérias razões económicas. Num tal caso, tratava-se, de facto, de uma pura decisão política do legislador, à qual havia, exclusivamente, que imputar a frustração daquela expectativa dos trabalhadores.
Quando, porém, o legislador intervém para extinguir uma empresa pública economicamente inviável, a frustração de tal expectativa dos trabalhadores - como se sublinhou no Acórdão n.º 576/96 (por publicar) produz-se «não propriamente por via do acto legislativo que decretou a extinção da empresa, mas, na crueza das coisas, pelo facto de esta ter entrado em estado de insolvência». Por isso, num tal caso, não se tratando de uma pura opção política do legislador, mas de uma decisão imposta pelas regras de uma boa administração, não há razões para «furar o véu» da personalidade jurídica da empresa e, esquecendo que se trata de uma empresa com património próprio e capacidade jurídica para o gerir e para responder pelas dívidas que assume, fazer apelo à ideia de que, sendo seu dono o Estado, tem este de assumir a responsabilidade dos encargos que ela contraiu, mas que, uma vez extinta, não pode continuar a cumprir.
2 - Pois bem: no presente caso, foi a EPDP, por cujas dívidas respondia apenas o respectivo património, nisso se traduzindo a sua autonomia patrimonial (cf. artigo 15.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril) - e não o Estado-Administração - quem assumiu o encargo de pagar os complementos de reforma aos seus trabalhadores que foram passando à reforma antecipada. E foi a sua situação fortemente deficitária que, em última análise, determinou o legislador a decretar a sua extinção.
É certo que, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 1/90, de 3 de Janeiro, a que pertence o mencionado artigo 6.º, n.º 2, se diz que se intervém «no âmbito da política de privatização dos meios de comunicação social do Estado». Simplesmente, daí não pode concluir-se que a autorização de alienação do parque gráfico, dos edifícios da empresa, das quotas que ela possuía noutras empresas, do próprio título Diário Popular e, bem assim, de bens móveis que lhe estavam afectos e de outros bens residuais, tenha sido uma pura decisão política do legislador.
É que a empresa apresentava, de há muito, uma exploração fortemente deficitária, tornando a sua recuperação problemática ou, no mínimo, demorada. E foi essa sua situação económica que, seis anos antes, tinha levado o Conselho de Ministros a declará-la em situação económica difícil, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 353-H/77, de 29 de Agosto, logo nessa altura se anunciando a necessidade de recorrer à reforma antecipada de trabalhadores (cf. a Resolução n.º 51/84, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 20 de Dezembro de 1984).
Não se tratou, pois, de levar a cabo uma política de privatização dos meios de comunicação social do Estado e, dando execução a essa decisão política, privatizar a EPDP. Do que se tratou foi, antes, de extinguir uma empresa, cuja exploração era, há muito, deficitária, embora a liquidação respectiva tivesse sido precedida de alienações de bens integradas «no âmbito da política de privatização dos meios de comunicação social do Estado».
3 - A razão acabada de apontar, aliada ao facto de aquele processo de alienações se ter iniciado antes da Revisão Constitucional de 1989, conduz a que, para decidir a questão de constitucionalidade, me não pareça relevante a norma da alínea c) do artigo 296.º da Constituição, que prescreve que «os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares». Messias Bento