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Procº nº 594/96
2ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A., detido à ordem de um processo de extradição, apresentou no Supremo Tribunal de Justiça um pedido de habeas corpus, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 34º da Constituição e nos artigos 222º, nº 2, alínea a), e 223º do Código de Processo Penal.
Invocou o requerente que a sua detenção havia sido ordenada e efectuada por entidade incompetente, para além do mais, por:
a) Ser inconstitucional a norma constante do nº 1 do artigo 66º do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, que atribui ao presidente do tribunal da relação da área onde a detenção foi efectuada competência para apreciar a legalidade e decidir da manutenção da mesma detenção, por aquela norma violar o preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea q), da CRP, que reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre «organização e competência dos tribunais», sendo certo que a autorização legislativa conferida pela Lei nº
17/90, de 20 de Julho, não abrange matéria atinente à alteração das competências dos juízes;
b) Ser inconstitucional a norma constante do artigo 38º do Decreto-Lei nº 43/91, que autoriza as autoridades de polícia criminal a efectuar a detenção de indivíduos que sejam procurados por autoridades competentes estrangeiras para efeito de procedimento ou de cumprimento de pena por factos que notoriamente justifiquem a extradição, por tal norma, por um lado, violar o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea b), da CRP, que reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre «direitos, liberdades e garantias», sendo certo que a autorização legislativa conferida pela Lei nº 17/90 não inclui essa matéria, e, por outro lado, afrontar as disposições conjugadas dos artigos 27º, nºs 2 e 3, e 15º da Lei Fundamental, atinentes, respectivamente, ao direito à liberdade e à igualdade entre portugueses e estrangeiros;
c) Ser inconstitucional, quando interpretada como conferindo competência para efectuar detenções, a norma constante do artigo 45º, designadamente do seu nº 2, alínea e), do Decreto-Lei nº 295-A/90, de 21 de Setembro, que define a competência do Gabinete Nacional da Interpol.
2 - Por acórdão de 20 de Março de 1996, o STJ julgou improcedente a pretensão do requerente e indeferiu o pedido de habeas corpus.
Para tanto, fundou-se aquele Supremo Tribunal no facto de o requerente ter já anteriormente apresentado outro pedido de habeas corpus, a propósito da mesma detenção, pretensão que fora denegada por decisão do STJ, já transitada em julgado.
Para o STJ, a redacção do artigo 223º, nº
4, alíneas b), c) e d), e nº 5, do Cód. Proc. Penal «conduz à conclusão de que, requerida uma providência de habeas corpus, necessariamente baseada numa situação de prisão reputada ilegal, o Supremo Tribunal tem de, oficiosamente, apurar se se verifica qualquer dos pressupostos da existência e manutenção de uma prisão dessa natureza, mesmo que algum ou alguns deles não tenham sido expressamente invocados pelo requerente, pois só assim se pode determinar a correcta reposição da justiça relativamente a um cidadão cuja prisão seja ilegal». Assim sendo, forma-se «um caso julgado formal sobre a matéria, pelo que, enquanto se mantiverem os mesmos dados de facto que existiam no momento em que foi pedida a providência [...], se não pode renovar a apreciação da mesma com base na submissão a outras regras jurídicas».
Daí retira o STJ:
No caso concreto, o requerente já havia formulado um pedido de habeas corpus, que lhe foi indeferido, e, no presente, sem que se tivessem alterado as condições de facto existentes na ocasião da formulação do primeiro pedido, veio invocar razões de direito que igualmente poderiam e deveriam ter sido invocadas inicialmente (incompetência funcional da entidade captora e do Presidente da Relação, e inconstitucionalidade dos mencionados artigos do Decreto-Lei 43/91).
A apreciação do primeiro pedido, com indeferimento da sua pretensão, por o dito requerente não poder ser considerado como em situação de prisão ilegal, quer no momento da detenção, quer no da apreciação por este Supremo, implica, por força das regras do caso julgado formal, a impossibilidade de reapreciação das mesmas matérias, quando referidas, como é o caso, aos momentos da sua detenção e da validação judicial desta.
Em consequência, o STJ entendeu que ficava prejudicado o conhecimento da «matéria respeitante às pretensas ilegalidades da prisão e da validação desta».
3 - Após aclaração e arguição de nulidades, ficou esclarecido que o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre o primeiro pedido de habeas corpus ainda não transitara em julgado, por se encontrar também pendente de recurso para o Tribunal Constitucional, para além de ter sido igualmente arguida a sua nulidade.
Contudo, considerou o STJ que tal circunstância em nada alterava o decidido, já que a solução propugnada no acórdão de 20 de Março se impunha, do mesmo modo, ocorrendo «uma proibida repetição da instância, equivalente à situação de litispendência, prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil, perante a qual a lei (artigo 497º do mesmo Código), tal como para o caso julgado, pretende evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior».
4 - Inconformado com a decisão do STJ, o requerente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, socorrendo-se da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Pretende o recorrente ver apreciada a questão de constitucionalidade das normas constantes da Lei nº 17/90 (que seria formalmente inconstitucional), do Decreto-Lei nº 43/91 (afectado pela inconstitucionalidade da lei de autorização legislativa), dos artigos 38º e 66º do mesmo decreto-lei e do artigo 45º do Decreto-Lei nº 295-A/90. Aponta como normas constitucionais violadas os artigos 15º, 18º, nº 2, 27º, nºs 1, 2 e 3, e
168º, nº 1, alíneas b) e q), e nº 2, da Lei Fundamental. E, finalmente, afirma ter suscitado a invocada questão de inconstitucionalidade no requerimento de interposição da providência de habeas corpus.
5 - Já neste Tribunal, o relator lavrou exposição prévia, ao abrigo do preceituado no artigo 78º-A da LTC, pronunciando-se pelo não conhecimento do recurso.
É que, tendo o STJ indeferido o presente pedido de habeas corpus por se encontrar pendente um outro pedido da mesma natureza e com objecto idêntico, não teria chegado aquele Supremo Tribunal a aplicar qualquer das normas cuja inconstitucionalidade fora suscitada pelo ora recorrente no requerimento de interposição da providência. E, sendo assim, porque o tribunal a quo não aplicou norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo, faleceriam os pressupostos do recurso de constitucionalidade fixados na referida alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
O Ministério Público manifestou a sua inteira concordância com a exposição do relator.
O recorrente apresentou resposta em que sustenta que os fundamentos dos dois pedidos de habeas corpus não são os mesmos, que as questões a decidir em cada um deles, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, são distintas - pelo que podem ter soluções diferentes - e que o STJ aplicou as normas impugnadas, porque para «afirmar que se verifica a excepção dilatória da litispendência» teve, no fundo, de «fazer uma interpretação das normas em causa, e um enquadramento dos factos nessas normas, com a interpretação e o sentido previamente determinados», já que a «afirmação de que há identidade de partes, de pedido e de causa de pedir, passa sempre por uma qualificação jurídica da pretensão formulada no processo».
Tendo sido dispensados os vistos, cumpre decidir.
6 - Assinale-se, antes de mais, que o presente recurso nunca poderia ter como objecto outras normas para além das indicadas não só no respectivo requerimento de interposição, mas também no requerimento de interposição da providência de habeas corpus, já que só quanto a estas últimas se verifica um dos presupostos do recurso - o de a sua inconstitucionalidade ter sido suscitada durante o processo. É o que acontece, apenas, relativamente às normas constantes dos artigos 38º e 66º, nº 1, do Decreto-Lei nº 43/91 e do artigo 45º, nº 2, alínea e), do Decreto-Lei nº
295-A/90.
Só que, como se indica na exposição prévia do relator, nenhuma destas normas foi aplicada na decisão recorrida.
Recorde-se, com efeito, que o STJ entendeu, no acórdão de que se recorre, que ficava prejudicado o conhecimento da «matéria respeitante às pretensas ilegalidades da prisão e da validação desta». Ou seja, exactamente a matéria a que se reportam as normas impugnadas.
É que, na verdade, na lógica do Supremo, não havia sequer que apurar se, concretamente, existia identidade de causa de pedir entre os dois pedidos de habeas corpus apresentados (a identidade de partes e de pedidos é obviamente incontestada). Nessa lógica, requerida uma providência de habeas corpus, como o Supremo Tribunal tem de, oficiosamente, apurar se se verifica qualquer dos pressupostos da existência e manutenção da prisão, e a decisão que sobre essa matéria proferir não é susceptível de ser alterada rebus sic stantibus, a identidade da causa de pedir resulta da própria lei, uma vez que se há-de ficcionar que o pedido assenta necessariamente em todas as causas de pedir que poderiam ter sido invocadas inicialmente.
Assim sendo, o STJ não chegou efectivamente a aplicar, no acórdão recorrido, qualquer das normas questionadas pelo recorrente quanto à respectiva constitucionalidade. Aplicou - isso sim, como aliás expressamente refere - as normas do artigo 223º, nº 4, alíneas b), c) e d), e nº 5, do Código de Processo Penal (eventualmente em conjugação com as normas dos artigos 497º e 498º do Código de Processo Civil), interpretadas de forma a considerar-se que cada pedido de habeas corpus deve ser analisado à luz de todas as causas de pedir à data admissíveis, fazendo caso julgado relativamente a todas elas, o que inviabiliza a apreciação de novo pedido fundado numa dessas mesmas causas de pedir, ainda que nunca antes invocadas pelo requerente.
Uma tal interpretação do direito ordinário não pode ser objecto de censura por este Tribunal, por exorbitar manifestamente a sua competência. E, por outro lado, o presente recurso de constitucionalidade não abrange tais normas, que nem sequer são questionadas, nessa interpretação, pelo recorrente, quanto à respectiva constitucionalidade.
Conclui-se, pois, que as normas impugnadas não foram aplicadas pelo tribunal a quo no acórdão recorrido, pelo que se não verifica um dos pressupostos do recurso de constitucionaliade fixados na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, aliás em conformidade com o estabelecido na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da CRP.
7 - Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Agosto de 1996 Luís Nunes de Almeida Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca José Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa