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Processo nº 2/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. e mulher B. vieram reclamar para este Tribunal Constitucional do despacho do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da comarca de Faro, de 16 de Outubro de 1995, que não lhes admitiu o recurso por eles interposto para o Tribunal Constitucional, 'por ser manifestamente infundado'.
Na sua reclamação concluem os reclamantes que:
'a) Os reclamantes arguiram a inconstitucionalidade - por violação do artº 13º da C.R. Portuguesa - da interpretação dos artºs 3º e 517º do C.P. Civil.
b) O Tribunal aplicou norma cuja inconstitucionalidade, havia sido suscitada pelos reclamantes durante o processo.
c) O Tribunal a não admitir o recurso apresentado pelos reclamantes de fls. 157 e segs., violou os artºs 13º, 207º e 280º da C.R.P. e artº 70º da LTC'.
2. No seu visto, o Ministério Público entende, no essencial, que a 'presente reclamação configura-se como claramente improcedente, já que se não mostra suscitada, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de integrar objecto idóneo do recurso em sede de fiscalização concreta: importa, na verdade, salientar que no próprio requerimento através do qual pretendiam interpor o rejeitado recurso de constitucionalidade, os recorrentes limitam-se a imputar directamente a pretensa inconstitucionalidade cometida à própria decisão judicial, em si mesma considerada'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir.
Colhe-se dos elementos constantes dos autos, e com interesse para a decisão, o seguinte:
3.1. Contra os reclamantes foi intentada no citado Tribunal de Faro uma acção sumária sob o nº 175/94-2º Juízo e nela foi proferido o despacho saneador-sentença e datado de 6 de Outubro de 1994, julgando a acção
'procedente por provada' e, em consequência, os réus condenados a pagar à autora determinadas quantias em dinheiro, referentes a letras sacadas pela autora e a despesas de devolução.
3.2. Com data posterior à sentença, o Mmº Juiz decidiu mandar 'restituir à parte' um articulado e os documentos que o acompanharam, apresentados pelos réus e ora reclamantes, por entender estar decidida já a acção e assim 'esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa'.
3.3. Desse despacho vieram reclamar os réus, 'ao abrigo do nº 3 do artº 668º do C.P.C.', requerendo, no final, 'a nulidade da sentença nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 668º do C.P.C.', e juntando de novo o articulado que lhes fora devolvido (no requerimento invocam eles que esse articulado 'deu entrada na secretaria em 27 de Setembro de 1994, data anterior
à data do despacho saneador-sentença', e que, por isso, o julgador 'devia ter levado em consideração o referido articulado quando se pronunciasse para efeitos de decisão', citando, a tal propósito, os artigos 517º e 526º do Código de Processo Civil e transcrevendo um passo de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em que se cita o princípio do contraditório e que este 'é uma emanação do princípio da igualdade das partes e, este até tem uma raiz consagrada constitucionalmente (art. 13º da CRP)').
3.4. Sobre essa reclamação recaiu o despacho do Mmº Juiz, de 31 de Outubro de 1994, que, no que aqui importa, considerou assistir 'a razão ao Réu, quando à anterioriade temporal do mesmo requerimento, relativamente à prolacção do despacho saneador', mas já 'assim não sucede, quando afirma que o despacho saneador sentença deveria ter levado em consideração o mencionado articulado'.
Dai ter-se concluído 'pela inexistência da nulidade arguida' e 'inexistirem as causas de nulidade da sentença arguidas pelo R.', acabando por se indeferir o requerido.
3.5. Vieram então os reclamantes, 'nos termos da alínea b) do nº 1 do artº 70º da LC, interpor recurso para o Tribunal Constitucional', por não se conformarem 'com o douto despacho de fls. 67 a 73', ou seja, o citado despacho saneador-sentença de 6 de Outubro de 1994 (cfr. ponto 3.1.), fazendo no respectivo requerimento a 'história processual que serve de fundamento' e concluindo como segue:
'Dúvida alguma subsiste que o Meritº. Juiz, a proferir o despacho saneador, sem levar em consideração o articulado dos Réus, entregue atempadamente na secretaria do Tribunal conforme reconhece no seu despacho de fls. 92 e 93, articulado que põe em crise a força probatória dos documentos apresentados pela Autora, violou os artºs 3º e 517º do C. P. Civil e artº 13º da Constituição da República Portuguesa. Como decidiu o Ac. da Relação de Lisboa de 8/ /11/90, CJ Vol.V , ano 90, pág.
110, o princípio do contraditório é, em verdade, essencial no plano jurídico cultural Português, implicando a possibilidade normal de resposta a um requerimento (v.g. artº 3º nº 2 do C.P.C.; Professor Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 379) tal princípio, - e continuamos a citar - a nosso ver, é uma emanação do princípio da igualdade das partes e, este até tem uma raiz consagrada constitucionalmente - artº 13º da Constituição da República Portuguesa. (sobre o princípio do contraditório, vide Ac. TC,
4/11/87, B.M.J. 371º 160 e Ac. RP de 26/5/83, CJ. Vol. III, pág. 249). Ora, nada nos diz, que a decisão a proferir pelo Meritº. Juiz, não fosse outra e, favorável aos Réus, caso tivesse tomado conhecimento do articulado por estes apresentado atempadamente, e que punha em crise a força probatória dos documentos apresentados pela Autora. Assim sendo e, sem mais delongas, fácil é de concluir, que o despacho recorrido, violou o artº 13º da C. R. Portuguesa, dado que o Tribunal, aplicou norma inconstitucional, expressa na alínea b), nº 1º do artº 280º da Constituição da República Portuguesa e arguida pelos Réus, no articulado datado de 20/10/94 a fls. 78 e segs'.
3.6 Tal recurso não foi admitido pelo Mmº Juiz a quo, no despacho ora reclamado, com invocação do nº 2, parte final, do artigo 76º, da Lei nº 28/82, e na base das seguintes considerações:
'Verifica-se que o tribunal não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade (ao contrário do que se esperaria em face da remissão, no requerimento de recurso, para a al. b) do nº 1 do artº 70º da Lei 28/82, de 15/11), nem aplicou norma cuja desconformidade constitucional tenha sido arguida no processo. A conclusão que se impõe é que o fundamento invocado para recorrer para o Tribunal Constitucional é manifestamente infundado. Ora o fundamento em que os réus alicerçam o recurso é bem outro: o de a decisão recorrida não ter tomado em consideração o articulado deduzido pelos réus, assim se violando (no seu entender o artº 13º da Const. Rep. Portuguesa).
Sucede que as decisões judiciais não podem ser objecto de fiscalização da constitucionalidade, salvo tratando-se de decisões judiciais de carácter genérico, como os assentos (neste sentido e unânime a jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que se dá como exemplo o Acórdão daquele Tribunal nº 260/90, de 3 de Outubro, Bol. Min. Justiça nº 400, pág. 141 e seguintes e abundante jurisprudência aí citada; cfr. ainda J.J. Canotilho e V. Moreira,
'Const. Rep. Portuguesa anotada, vol. 2ª ed. 2º vol. pág.). O Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da conformidade de certas normas em relação a outras que tenham força jurídica superior, mormente da Const. Rep. Portuguesa. Assim, se se admite, em tese, que a violação invocada poderia fundar um recurso no âmbito dos tribunais judiciais, já é forçoso concluir que o recurso de fls.
159 a 162 para o Tribunal Constitucional com aquele motivo carece manifestamente de fundamento'.
4. É patente que os reclamantes identificam claramente como decisão recorrida para este Tribunal Constitucional o despacho saneador-sentença que os condenou na acção sumária intentado contra eles e fundamentam o recurso de constitucionalidade na alínea b), do nº 1, do artigo
70º, da citada Lei nº 28/82 (recurso de decisões que 'apliquem norma, cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo').
Se isto é assim, também é patente que os reclamantes não suscitaram nenhuma questão de inconstitucionalidade antes de proferida aquela decisão, o mesmo é dizer que não cumpriram 'o ónus de adoptarem uma estratégia processual adequada à criação da possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional' (na linguagem do acórdão nº 584/96, para cujos fundamentos se remete, no que toca à leitura do sistema de controlo concreto das normas e, em particular, do enunciado do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82). E nem a dita decisão recorrida aprecia ou conhece qualquer questão de constitucionalidade de normas jurídicas.
Mas, melhor sorte não logra a pretensão dos reclamantes ainda que, por bondade, se admita que eles se reportam ao despacho do Mmº Juiz, de 31 de Outubro de 1994, que indeferiu o que eles requereram após o despacho saneador-sentença (cfr. pontos 3.3. e 3.4.), pois também nesse requerimento não suscitaram adequadamente nenhuma questão de inconstitucionalidade de normas jurídicas, nomeadamente os artigos indicados do Código de Processo Civil.
Limitaram-se eles aí a 'reclamar do despacho datado de 13 de Outubro de 1994', ao abrigo do nº 3 do artigo 668º do Código de Processo Civil, sustentando, no essencial, que 'o juiz não conheceu a questão suscitada em articulado próprio apresentado pelo R., tempestivamente anterior ao despacho saneador-sentença' e citando os artigos 517º e 526º daquele Código, mas sem arguirem, a tal propósito, nenhuma questão de inconstitucionalidade. A censura é feita, pois, ao despacho e não às normas, na óptica da sua conformidade com a Constituição, e tanto é assim que no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade os reclamantes concluem que 'o Mmº Juiz, a proferir o despacho saneador, sem levar em consideração o articulado dos Réus (...), violou os artºs 3º e 517º do C.P.Civil e artº 13º da Constituição da República Portuguesa'.
Tanto basta para concluir que não pode ser atendida a reclamação, porque não se verifica um pressuposto do presente recurso de constitucionalidade, o da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo, qualquer que seja a via utilizada pelos reclamantes.
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se reclamação e condenam-se os reclamantes nas custas, com a taxa de justiça fixada em CINCO unidades de conta. lx, 26.6.96
Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida