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Processo nº 196/95
2ª secção Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A e seu marido, B, propuseram no Tribunal Cível da comarca de Lisboa acção possessória de prevenção contra o Estado, pedindo que este fosse condenado a abster-se de praticar qualquer acto lesivo ou impeditivo da sua posse relativamente aos prédios de que são proprietários (descritos na Conservatória do Registo Predial de Loures, sob os nºs ... e ..., respectivamente, a folhas ... do Livro B/59 e a folhas ... do Livro B/17) e lesivo ou impeditivo, bem assim, do seu direito de construir o prédio cuja construção fora autorizada pela Câmara Municipal de Loures.
Fundamentaram o pedido no facto de a Junta Autónoma de Estadas
(JAE), por anúncio publicado num jornal diário, em 3 de Fevereiro de 1989, ter avisado a Autora de que não devia dar início à construção, se o imóvel se situasse dentro da zona non aedificandi a que se refere a alínea d) do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 13/71, de 23 de Janeiro, se ficasse na zona de visibilidade de concordância da Avenida ... com a estrada nacional nº ... e se a pretensão se não pudesse considerar abrangida pelas disposições da alínea c) do nº 2 do artigo 8º citado; e avisado, bem assim, de que, se os trabalhos de construção do edifício em causa fossem iniciados, a JAE procederia a embargo administrativo.
A acção foi, porém, julgada improcedente.
Da respectiva sentença apelaram os AA. para a Relação de Lisboa, mas sem êxito.
Do acórdão da Relação de Lisboa recorreram de revista para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 2 de Março de 1995, negou provimento ao recurso.
Nas suas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, os AA. invocaram a inconstitucionalidade dos nºs 6 e 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
219/72, de 27 de Junho.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 2 de Março de
1995) que vem o presente recurso, interposto pelos AA. ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade dos mencionados nºs 6 e 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
219/72, de 27 de Junho.
Neste Tribunal, os recorrentes requereram a concessão de apoio judiciário, 'compreendendo a dispensa total de preparo e custas', mas tal pedido foi liminarmente indeferido pelo relator, sendo o respectivo despacho confirmado pelo acórdão nº 304/95 (folhas 306 a 309 dos autos).
Os recorrentes produziram alegações que concluiram do modo que segue: A) Sendo o 'jus aedificandi' inerente ao direito de propriedade, a chamada licença de construção extingue restrições ao exercício de um direito pré-existente, retomando a propriedade, por força da elasticidade que lhe é própria, a sua plenitude; B) Mesmo entendendo o 'jus aedificandi' como criação administrativa, dando-se como provado que os ora recorrentes possuiam uma licença de construção, não pode sustentar-se a manutenção de 'servidões administrativas', sem ofensa do direito de propriedade constitucionalmente garantido; C) Na interpretação feita pelo STJ de que as restrições impostas pelos artºs 3º e 8º do Decreto-Lei nº 13/71 permanecem após a emissão de licença de construção, os preceitos referidos são inconstitucionais por violação do disposto no artº
62º da Lei Fundamental;
D) O poder governamental de ordenar embargos de obras que possuem licença municipal corresponde a uma suspensão ou revogação da licença que não se harmoniza com o facto de a Constituição não conferir ao Governo qualquer tutela suspensiva ou revogatória em relação aos actos dos municípios; E) Mesmo que, o que se admite como hipótese de raciocínio, uma obra estivesse a ser efectuada sem licença, o embargo constituiria responsabilidade primária da autarquia. Admitir a intervenção do Governo, pela Junta Autónoma de Estradas, para suprir a omissão indevida, configuraria um caso nítido de tutela substitutiva igualmente não permitida pela Lei Fundamental; F) Termos pelos quais, contrariamente ao que entendeu e julgou o STJ, o nº 6 do artº 1º do Decreto-Lei nº 219/72 é inconstitucional por violador do disposto no artº 243º da Constituição da República; H) De idêntico modo, a intervenção administrativa declarando a nulidade dum acto autárquico, designadamente o licenciamento de obras particulares, é indiscutivelmente um acto de tutela, consubstanciando uma intervenção 'a posteriori' e implicando um controlo sobre a legalidade e o mérito da decisão municipal, que declara nula, assim pretendendo repor a legalidade; I) A caracterização de tal controlo como de tutela, nada tem a ver com o exercício de poderes próprios, muito embora o licenciamento de obras particulares seja essencial e de competência exclusiva das autarquias; J) E configura uma tutela que, sendo ao mesmo tempo, correctiva, e substitutiva, não é permitida pela Constituição; L) Pelo que contrariamente ao que entendeu e julgou o STJ, o nº 7 do artº 1º do Decreto-Lei nº 219/72 é inconstitucional por violação do disposto no artº 243º da Constituição e afectando a segurança jurídica e os direitos adquiridos põe em causa o próprio conceito de Estado de Direito Democrático. Nestes termos devem as normas constantes dos nºs 6 e 7 do artº 1º do Decreto-Lei nº 219/72 ser julgadas inconstitucionais, determinando-se que a sentença recorrida seja reformulada em consonância e ainda para que a interpretação dada aos artºs 3º e 8º do Decreto-Lei nº 13/71 seja substituída por interpretação conforme ao artº 62º da Constituição da República.
O Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício formulou as seguintes conclusões:
1º Tendo o Supremo Tribunal de Justiça julgado, no acórdão recorrido, caduca a licença de construção invocada pelos recorrentes como fundamento da sua pretensão, deve considerar-se precludida a questão dos efeitos da sua eventual nulidade, nos termos prescritos no nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho - sendo inútil a apreciação da pretensa inconstitucionalidade de tal norma, por nenhuma repercussão poder ter no sentido da decisão recorrida.
2º O nº 6 de tal preceito, ao conceder à Junta Autónoma de Estradas uma competência autónoma para fiscalização e eventual embargo de obras efectuadas ilegalmente em zonas de protecção das estradas nacionais, não constitui qualquer forma de tutela substitutiva relativamente às autarquias, sendo plenamente compatível com a autonomia local. Termos em que deverá ser julgado improcedente o recurso, no que a esta norma se refere.
Tendo o Ministério Público sustentado a inutilidade da 'abordagem da questão da conformidade constitucional da norma cujos pressupostos de aplicação, afinal, não concorrem no caso dos autos' [refere-se à norma do nº 7 do mencionado artigo 1º], foram mandados ouvir os recorrentes que concluiram assim a sua resposta: A) Considerando o S.T.J. no Acordão recorrido, a validade de licença até 6 Jan
90 e a entrada da acção em 7 Dez 89 e conjecturando a hipótese de inutilidade superveniente da lei (sic), não foi a caducidade da licença, nem poderia ser, fundamento da decisão recorrida; B) Assim sendo, não pode considerar-se precludida a questão de inconstitucionalidade do nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72 de 27 de Junho; C) A eventual inconstitucionalidade do nº 7 impede a sua aplicação a eventuais violações do artº 8º do Decreto-Lei nº 13/71, cuja constitucionalidade igualmente se não aceita; D) O nº 6 do artº 1º do Decreto-Lei nº 219/72 de 27 de Junho constitui forma de tutela que ultrapassa os precisos limites do disposto no nº 1 do artº 243º da Constituição pelo que deverá o recurso interposto seguir os seus termos.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso:
4.1. Liminarmente, dir-se-á que, fora do objecto do recurso, está a questão de constitucionalidade relativa aos artigos 3º e 8º do Decreto-Lei nº
13/71, de 23 de Janeiro.
É que, desde logo e decisivamente, essas normas não foram indicadas no respectivo requerimento de interposição.
Ora, o requerimento de interposição do recurso limita o seu objecto
às normas nele indicadas (cf. artigo 684º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o artigo 75º-A, nº 1, desta Lei), sem prejuízo, obviamente, de esse objecto, assim delimitado, poder vir a ser restringido nas conclusões da alegação (cf. citado artigo 684º, nº 3). O que, na alegação (recte, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso antes definido.
Objecto do recurso são, assim e tão-só, as normas dos nºs 6 e 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho.
4.2. O Procurador-Geral Adjunto sustenta nas suas alegações que, das indicadas normas - as dos nºs 6 e 7 do artigo 1º citado -, o Tribunal apenas deve apreciar sub specie constitutionis a norma do nº 6, e não também a do nº 7.
É que - disse -, a questão de constitucionalidade tendo por objecto esta última norma mostra-se claramente precludida. De facto - acrescentou -, o acórdão recorrido negou provimento ao recurso com fundamento em que os recorrentes não demonstraram que 'coincidem as zonas do prédio a que se reporta a ameaça de turbação da posse por acto da Junta Autónoma de Estradas e a licença de construção invocada como base da sua pretensão'; e com fundamento também em que 'a invocada licença já caducou'. Ou seja: o recurso sucumbiu - disse ainda -
'não porque o Supremo Tribunal de Justiça considerasse 'nula' a aludida licença, mas porque a julgou, pura e simplesmente 'caduca'.
Ora, sendo isto assim - concluiu -, é 'perfeitamente inútil a abordagem da questão da conformidade constitucional da norma cujos pressupostos de aplicação, afinal, não concorrem no caso dos autos' (sublinhou-se).
Os recorrentes responderam, dizendo que 'não pode considerar-se precludida a questão de inconstitucionalidade do nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho', uma vez que, 'considerando o STJ, no acórdão recorrido, a validade da licença até 6 Jan 90 e a entrada da acção em 7 Dez 89 e conjecturando a hipótese de inutilidade superveniente da lide, não foi a caducidade da licença, nem poderia ser, fundamento da decisão recorrida'.
A razão está com o Ministério Público, como se verá, de seguida.
Como se diz no acórdão recorrido, 'em verdade, os recorrentes deixaram de provar, como deviam (art. 342º do C.Civil), um pressuposto essencial da acção, qual seja o acto do Estado - JAE - que determinou o justo receio de perturbação ou esbulho da sua posse; sem se saber qual fosse esse concreto facto fica-se sem elementos para aquilatar da existência do justo receio - que deve ser fundado e sério - a que se refere o art. 1276º C.Civil'. Daí que - lê-se no mesmo aresto - 'logo por aqui a acção estaria condenada ao insucesso'.
Acresce que o acórdão recorrido deu como assente que 'a licença em apreço já está caduca uma vez que só era válida por um ano - concretamente até
6/1/90'.
Ora, este juízo é um dado de que o Tribunal tem agora que partir.
É manifesto, pois, que o improvimento do recurso não assentou na nulidade da licença - situação que é a prevista no nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho, que dispõe: 'consideram-se nulos e de nenhum efeito os licenciamentos efectuados por quaisquer entidades contra o disposto nos artigos 6º, 7º, 8º, 9º e 10º do Decreto-Lei nº 13/71'. Tal improvimento fundou-se, de um lado, no facto de os recorrentes não terem provado, como lhes cumpria, que havia coincidência entre as zonas do prédio
'mencionadas no Aviso da Junta Autónoma de Estradas' e a 'zona da licença'. E, de outro, na circunstância de essa licença já nem sequer subsistir, pois que, sendo válida por um ano, havia caducado em 6 de Janeiro de 1990.
O nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho, não foi, pois, aplicado no acórdão recorrido. E era necessário que o tivesse sido para que pudesse conhecer-se da questão da sua constitucionalidade [cf. alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional].
É certo que no acórdão se fala no Decreto-Lei nº 219/72, depois de se ter admitido a hipótese de os recorrentes pretenderem construir 'sem licença ou com uma licença inválida'. E mais: nele, analisa-se mesmo a questão da constitucionalidade do mencionado nº 7 do artigo 1º daquele Decreto-Lei nº
219/72, para se concluir que tal norma não viola o artigo 243º da Constituição.
Simplesmente, se a referência ao Decreto-Lei nº 219/72 puder ser havida como referência ao mencionado nº 7 do artigo 1º, há-de convir-se que, no contexto do acórdão, essa referência não passa de um obiter dictum.
É do mesmo modo um obiter dictum o julgamento feito no acórdão considerando o referido nº 7 conforme à Constituição: não convocando o caso a aplicação deste normativo (não estava em causa uma licença nula, sim uma licença caduca), era de todo irrelevante que ele fosse ou não inconstitucional.
O juízo de não inconstitucionalidade de tal norma não foi, assim, uma ratio decidendi, pelo que não é susceptível de abrir a via do recurso de constitucionalidade.
Não vai, por isso, conhecer-se da questão da constitucionalidade do nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho.
4.3. Fluindo o improvimento do recurso dos fundamentos atrás apontados, poderia ser-se tentado a pensar que o julgamento da constitucionalidade da norma do nº 6 do mencionado artigo 1º é também um mero obiter dictum.
Sem razão, porém.
O recurso ficou, de facto, 'condenado ao insucesso', como se diz no acórdão recorrido, pelo facto de os recorrentes não terem provado, devendo fazê-lo, que existe coincidência entre as zonas do prédio em que é vedada a construção e aquelas a que se reportaria a licença que, entretanto, caducou (ou seja, entre as zonas em que qualquer construção ficaria sujeita a embargo da Junta Autónoma de Estradas e a 'zona da licença').
A ameaça de embargo que, no caso de aquela prova ter sido feita, constituiria o justo receio de perturbação ou esbulho da posse, só a pôde, porém, fazer a Junta Autónoma de Estradas, lançando mão do nº 6 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho.
Este normativo foi, pois, aplicado pelo acórdão recorrido, quando nele se decidiu que 'os recorrentes deixaram de provar, como deviam [...], um pressuposto essencial da acção, qual seja o acto do Estado - JAE - que determinou o justo receio de perturbação ou esbulho da posse'.
Há, assim, que passar ao conhecimento da questão de constitucionalidade que tem por objecto o nº 6 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
219/72, de 27 de Junho.
5. A questão da constitucionalidade do nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho:
5.1. Dispõe tal normativo:
6. A Junta Autónoma de Estradas pode usar do direito de embargo relativamente a obras efectuadas com violação dos preceitos do referido Decreto-Lei nº 13/71 e fazer intimações ou proceder a demolições, substituindo-se ao proprietário, a expensas dele, no caso de este não dar cumprimento ao que lhe foi exigido, sendo os seus funcionários equiparados aos agentes de autoridade, de harmonia com o artigo 149º do Estatuto das Estradas Nacionais.
No Decreto-Lei nº 13/71, de 23 de Janeiro, referido no nº 6 acabado de transcrever, relativamente às estradas nacionais, dispõe-se que a Junta Autónoma de Estradas tem jurisdição sobre a zona da estrada - que compreende o terreno por ela ocupado (faixa de rodagem, bermas, valetas, passeios, banquetas ou taludes), as pontes e viadutos nela incorporados e os terrenos adquiridos para alargamento da sua plataforma (faixa de rodagem e bermas) ou para acessórios da mesma (parques de estacionamento e miradouros) - e sobre a zona de protecção da mesma, que é constituída pelos terrenos limítrofes sobre que incidem servidões non aedificandi, onde é proibido construir, e pelos terrenos que integram a chamada faixa de respeito, em que as permissões de construção se acham condicionadas à aprovação pela mesma Junta (cf. artigos 1º a 3º). (Cf., também o Decreto-Lei nº 13/94, de 15 de Janeiro, que veio estabelecer faixas non aedificandi junto às estradas nacionais constantes do Plano Rodoviário Nacional, aprovado pelo Decreto-Lei nº 380/85, de 26 de Setembro).
No artigo 8º, nº 1, alínea d), do mencionado Decreto-Lei nº 13/71, de 23 de Janeiro (mencionado no aviso da Junta Autónoma de Estradas), dispõe-se que 'é proibida a construção, estabelecimento, implantação ou produção de [...] edifícios a menos de 20m, 15m, 12m ou 10m do limite da plataforma da estrada, consoante esta for, respectivamente, internacional, de 1ª, de 2ª ou de 3ª classe, ou dentro da zona de visibilidade'. E, na alínea c) do nº 2 do mesmo artigo 8º (também referida no dito aviso), prescreve-se que tal proibição de construção não abrange 'as edificações ao longo de estradas, nos troços que constituam ruas de aglomerados populacionais com, pelo menos, 150m de comprimento, mediante licença da câmara municipal respectiva, após parecer favorável da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização'.
O nº 3 do mencionado artigo 8º define a zona de visibilidade dentro da qual é proibido construir como sendo 'a zona de visibilidade no interior das concordâncias das ligações ou cruzamentos de estradas nacionais entre si ou com vias públicas ou municipais'. E acrescenta que essa zona de visibilidade 'é limitada por uma linha que se obtém' do modo que, aí, se indica [cf. as respectivas alíneas a) a d)].
O artigo 9º do mesmo Decreto-Lei nº 13/71 preceitua que, nas faixas de terreno oneradas com servidão non aedificandi, em certos casos, podem ser autorizadas obras de ampliação ou modificação de edifícios já existentes, 'para efeito de dotá-los de anexos, tais como instalações sanitárias e garagens, quando se não preveja a necessidade de os demolir em futuro próximo para melhoria das condições de trânsito'.
São requisitos desta autorização de construção que, da execução das obras, não resultem inconvenientes para a visibilidade; que não se trate de obras de reconstrução geral; que não se trate de obras que determinem o aumento de extensão, ao longo da estrada, dos edifícios (e vedações) existentes, salvo quando esse aumento, a autorizar por uma só vez , não exceder 6m; e que os proprietários se obriguem a não exigir indemnização, no caso de futura expropriação, pelo aumento do valor que dessas obras resultar para a parte do prédio (ou vedação) abrangida na faixa referida [cf. alíneas a) a d) do nº 1 do citado artigo 9º].
Quanto aos imóveis onerados com a servidão non aedificandi imposta pelo artigo 8º, nº 1, alínea d), do Decreto-Lei nº 13/71, de 23 de Janeiro, a Junta Autónoma de Estradas pode, pois, intimar os respectivos proprietários para que não levantem edificações nas zonas abrangidas pela proibição de edificar, sob pena de embargo (ou de demolição).
É o que resulta do nº 6 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho, atrás transcrito e aqui sub iudicio.
5.2. Pergunta-se, então: o nº 6 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
219/72, de 27 de Junho, violará, como pretende o recorrente, o disposto no artigo 243º da Constituição da República Portuguesa? Ou será, antes (como sustenta o Ministério Público), perfeitamente compatível com a Lei Fundamental - recte, com a autonomia local que nela se reconhece às autarquias locais?
É o que vai ver-se, de seguida.
A Constituição da República, no seu artigo 6º, nº 1 - depois de caracterizar o Estado como unitário - acrescenta que ele 'respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública'.
Este princípio da autonomia das autarquias locais - que as leis de revisão constitucional terão de respeitar [cf. artigo 288º, alínea n)] - é, depois, desenvolvido no título VIII da Lei Fundamental, subordinado à rubrica
'poder local'.
A autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de
órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (cf. artigo 237º, nº 2, da Constituição). Constituem, assim, verdadeira administração autónoma. E mais: são 'estruturas do poder político'.
É certo que é a lei que há-de regular 'as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos' (cf. artigo 239º da Constituição). Mas, ao desimcumbir-se dessa tarefa, o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios
(privativos) das respectivas comunidades locais.
A este propósito, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada , 3ª edição, Coimbra, 1993, página 887), depois de acentuarem que a Constituição não define as matérias de competência autárquica, acrescentam: Todavia a lei não goza de total liberdade de conformação. A garantia institucional da autonomia local estabelece limites e requisitos. Primeiro, a lei não pode deixar de definir às autarquias um mínimo razoável de atribuições. Depois, essas atribuições não podem ser umas quaisquer, devendo referir-se aos interesses próprios das respectivas comunidades locais [...].
[Cf. também J. BAPTISTA MACHADO (Participação e Descentralização. Democratização e Neutralidade da Constituição de 1976, Coimbra, 1982, página 17) e J. CASALTA NABAIS (A Autonomia Local, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra,
1993, sp. páginas 161, 162, 171 e 175)].
Uma das matéria que se inscreve na esfera autárquica é a relativa ao urbanismo, pois que é a administração municipal quem, pela concessão ou recusa de licenças, executa os planos de urbanização (cf. artigo 1º do Decreto-Lei nº
445/91, de 20 de Novembro). Tal matéria não deixa, porém, de assumir também natureza nacional, pois que, nalguns dos seus aspectos, ela diz respeito à comunidade nacional do seu todo. Por isso é que o artigo 65º, nº 4, da Constituição prescreve que 'o Estado e as autarquias locais [...] procederão às expropriações dos solos urbanos que se mostrem necessários e definirão o respectivo direito de utilização'. [Cf. também o artigo 66º, nº 2, alínea b)].
Este Tribunal, no seu acórdão nº 432/93 (Diário da República, II série, de 18 de Agosto de 1993) - depois de acentuar que 'o espaço incomprimível' da autonomia local é o dos 'assuntos próprios do círculo local', os quais se identificam com 'aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratadas de modo autónomo e com responsabilidade própria' - precisou que 'isso não significa que as autarquias locais não possam ou não devam ser chamadas a uma actuação concorrente com a do Estado na realização [de] tarefas' relativas à matéria do urbanismo. E acrescentou: A determinação contida no artigo 65º, nº 4, demonstra precisamente a legitimidade dessa actuação concorrente das autarquias na realização das tarefas constitucionais. Mas aqui já não está presente aquela ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios que tem que ver com a essencialidade da autonomia (sublinhado acrescentado).
O mesmo aresto acrescentou que as matérias de ordenamento do território e planeamento urbanístico, 'porque respeitam ao interesse geral da comunidade constituída em Estado' (e, portanto, 'transcendem o universo dos interesses específicos das comunidades locais'), não são privativas das autarquias. E precisou: Para mais, este domínio da promoção habitacional, urbanismo e gestão do ambiente
é mesmo um domínio aberto à intervenção concorrente das autarquias e do Estado.
[Cf., no mesmo sentido, também o acórdão nº 674/95 (por publicar)]. [Cf. também FERNANDO ALVES CORREIA (O plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra,
1989, página 165)].
5.3. Como as autarquias locais integram a administração autónoma, existe entre elas e o Estado uma pura relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse - o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais. (Cf. J. BAPTISTA MACHADO, Ob. e loc. cit.; J.J. GOMES. CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., página 897; e J. CASALTA NABAIS, ob. cit., página 171).
Por isso, ao Estado cabe apenas exercer, relativamente às autarquias locais, uma função de controlo da legalidade das respectivas decisões administrativas - ou seja, uma pura função de tutela de legalidade: 'a tutela administrativa sobre as autarquias locais - preceitua o nº 1 do artigo 243º da Constituição - consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos
órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei'.
É uma tutela de legalidade, que não uma tutela de mérito. A sua finalidade é verificar o cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, e não controlar a conveniência ou inconveniência da decisão administrativa, a sua oportunidade ou inoportunidade, a sua correcção ou incorrecção [cf. DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1986, p. 692 e
695)].
Objecto da tutela de legalidade não é, pois, o valor da decisão administrativa, a sua utilidade, o seu merecimento, avaliados em vista do fim que se propôs [cf. ROGÉRIO EHRHARDT SOARES (Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955, páginas 207 e seguintes). É uma simples tutela externa
(por contraposição à tutela interna que é exercida sobre os institutos públicos)
- uma tutela não directiva -, pois que (diz J. BAPTISTA MACHADO, ob. cit., página 17) 'o titular do respectivo poder intervém na defesa de um interesse diferente e sem legitimidade para definir o interesse que a este se contrapõe. Intervém, portanto, em plano diverso daquele em que actua a autonomia da vontade do ente tutelado, pelo que age de um modo por assim dizer extrínseco, limitando e coordenando com o interesse geral as manifestações daquela autonomia, mas sem pôr em causa o essencial dela'. É uma tutela que, por isso mesmo, 'só reflexamente afectará a autonomia do ente tutelado, pois opera extrinsecamente, pela definição de limites ao 'reconhecimento' das manifestações da dita autonomia' (cf. J. BAPTISTA MACHADO, ob. cit., página 18).
A autoridade tutelar - diz J. CASALTA NABAIS (loc. cit., páginas 171 e 172 - 'tem de cingir-se a reconhecer ou não, dentro de certos limites estabelecidos na lei, as decisões dos entes dotados de autonomia.
'A tutela será aqui apenas uma 'faculté d'empêcher', 'un frein' admissível para obstar a que as decisões das autarquias extravasem das suas atribuições e invadam as atribuições da administração estadual ou as atribuições de outras autarquias ou administrações autónomas'.
É uma tutela de legalidade, 'de tipo meramente verificativo' - diz DIOGO FREITAS DO AMARAL (Direito do Urbanismo. Sumários, Lisboa, 1993, página
61), não comportando qualquer forma de tutela substitutiva, correctiva, homologatória ou orientadora [cf. também J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
(ob. cit., página 897) e ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA, Poderes de Intervenção do Estado em Matéria Urbanismo - Autonomia Local - Tutela, in Scientia Iuridica, tomo XLI (1992), páginas 171 e seguintes].
5.4. Pois bem: no entender do recorrente, 'mesmo que [...] uma obra estivesse a ser efectuada sem licença, o embargo constituiria responsabilidade primária da autarquia. Admitir a intervenção do Governo, pela Junta Autónoma de Estradas, para suprir a omissão indevida, configuraria um caso nítido de tutela substitutiva [...] não permitida pela lei fundamental' (cf., identicamente, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito do Urbanismo. Sumários, cit., páginas 60 e 61. Cf. também ANTÓNIO CÂNDIDeO DE OLIVEIRA, loc. cit.)
Diferente é o entendimento do Procurador-Geral Adjunto, para quem 'a realização pela Junta Autónoma de Estradas do embargo administrativo das obras levadas a efeito ilegalmente nas zonas de protecção às estradas nacionais não representa o exercício de uma 'tutela substitutiva' a uma pretensa competência exclusiva dos órgãos autárquicos, mas o exercício de uma competência própria por aquele instituto público, eventualmente concorrente com a das autarquias e perfeitamente respeitadora da autonomia local, constitucionalmente consagrada'
[cf., identicamente, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de Novembro de 1990 (Scientia Iuridica cit., páginas 145 e seguintes; e Parecer da Procuradoria Geral da República nº 53/87, de 22 de Outubro de 1978 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 377, páginas 131 e seguintes) tirado a propósito do artigo 2º do Decreto-Lei nº 40.388, de 21 de Novembro de 1955).
5.5. Também neste ponto a razão está com o Ministério Público.
A Junta Autónoma de Estradas é um instituto público (cf., sobre este conceito, o acórdão nº 678/95, publicado no Diário da República, I série-A, de 5 de Janeiro de 1996), sob cuja jurisdição se encontram as estradas nacionais (cf. o Plano Rodoviário Nacional, aprovado pelo Decreto-Lei nº 380/85, de 26 de Setembro). A ela - recorda-se - comete o nº 6 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
219/72, de 27 de Junho, aqui sub iudicio, o poder de embargar as obras que se fizerem com violação dos preceitos do já citado Decreto-Lei nº 13/71, de 23 de Janeiro, nomeadamente as que se executarem 'a menos de 20m, 15m, 12m ou 10m do limite da plataforma da estrada, consoante esta for, respectivamente, internacional, de 1ª, 2ª ou 3ª classe, ou dentro da zona de visibilidade' [cf. o artigo 8º, nº 1, alínea d), do mesmo Decreto-Lei nº 13/71].
Trata-se de um poder que é essencial para que a Junta Autónoma de Estradas possa defender eficazmente os interesses de carácter geral (nacional) que, no domínio do urbanismo, se entrecruzam, com interesses de cariz tipicamente local (pense-se na necessidade de defender paisagens, de assegurar um correcto ordenamento do território, de defender património artístico ou arqueológico, de assegurar a visibilidade do trânsito, etc.).
Estando em causa uma matéria na qual, a par de interesses próprios
(privativos) das comunidades locais, confluem interesses da comunidade nacional, indispensável é, de facto, proceder a uma justa ponderação de todos eles, a fim de se conseguir a sua harmonização - o que reclama que o poder de decisão, em vez de se entregar por inteiro às autarquias locais, atribuindo-se ao Estado um mero poder de controlo da legalidade, seja compartilhado pelo ente público, que
é a Junta Autónoma de Estradas, a quem cabe realizar os fins do Estado na matéria.
Os poderes do Estado neste domínio - repete-se - não podem, pois, ficar-se por simples poderes de controlo da legalidade das decisões administrativas autárquicas, como é próprio de uma tutela de legalidade.
Quando estão em causa interesses privativos das comunidades locais, só esse poder de controlo da legalidade o Estado pode exercer, como resulta claro do que dispõe o artigo 243º da Constituição da República - poder que, de resto, é suficiente. Mas, tratando-se de matéria, como é a do urbanismo, em que, a par desses interesses, outros há que transcendem o universo especificamente autárquico, situando-se no domínio próprio dos interesse nacionais, tem ela que abrir-se à intervenção concorrente do Estado e das autarquias.
O poder, que o nº 6 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho, atribui à Junta Autónoma de Estradas, de embargar obras proibidas nas zonas non aedificandi das estradas nacionais, não traduz, pois, o exercício de poderes próprios de uma tutela substitutiva ou de uma tutela de outro tipo, que o artigo 243º da Constituição não consinta. Ele é, antes, um poder próprio de autotutela - um poder daquela entidade, que a lei lhe confere para que possa realizar os fins que (como deflui do artigo 65º, nº 4, da Constituição, atrás transcrito, conjugado com a alínea e) do artigo 9º da mesma Lei Fundamental, que define como tarefa fundamental do Estado 'defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território') ao Estado cabe prosseguir nessa matéria e que este põe a cargo daquela Junta.
6. Conclusão: O artigo 1º, nº 6, do Decreto-Lei nº 219/72, de 27 de Junho, não viola, pois, o princípio constitucional da autonomia das autarquias locais, tal como a Constituição a configura no seu título VIII, e, especificamente, nos artigos 237º, nº 2, 239º e 243º, nº 1, da Constituição da República.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 6 de Março de 1996 Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luis Nunes de Almeida
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