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Proc. nº 344/93 Plenário Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. O Procurador-Geral da República veio, no uso da faculdade conferida pelo art. 281º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, requerer ao Tribunal Constitucional que apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da alínea mm) do art. 33º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (aprovado pela Lei nº 39/80, de 15 de Agosto, e revisto pela Lei nº
9/87, de 26 de Março) e, também, da alínea n) do art. 3º do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/A, de 5 de Janeiro.
Fundamentou o pedido do seguinte modo:
- A alínea mm) do art. 33º do Estatuto Político-Administrativo em causa considera a 'manutenção da ordem pública' como matéria de 'interesse específico' para a Região Autónoma dos Açores. A alínea n) do art. 3º do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/A, por seu turno, veio estabelecer que a competência legal no domínio da ordem pública é exercida pelo Secretário Regional das Finanças, Planeamento e Administração Pública.
- Estes dois preceitos acham-se estreitamente conexionados, estabelecendo o diploma regional a competência do órgão que tem de exercer a incumbência prevista na alínea mm) do art. 33º do Estatuto.
- A definição das prioridades e medidas a adoptar no âmbito da garantia da
'ordem pública' e da respectiva 'manutenção' ou asseguramento constitui tipicamente actividade de segurança interna, visando prevenir as actuações individuais susceptíveis de afectar os valores fundamentais por que se rege a convivência democrática, pondo eventualmente em causa a 'legalidade democrática'
- constituindo, pois, uma tarefa específica das 'forças de segurança' ou de
'política de segurança'.
- É ponto inquestionado no ordenamento jurídico-constitucional português que, em matéria de 'forças de segurança', rege o princípio da unidade de organização para todo o território nacional. O art. 272º, nº 4, da Constituição impede claramente que as forças policiais de segurança possam ser regionalizadas, como decorre do comentário de Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 957).
- Face a estes pressupostos, é manifesto que, com base na competência conferida pela norma impugnada do indicado diploma regional, nunca poderá o Secretário Regional, responsável pela Administração Pública:
a) Assumir tarefas reservadas pelas leis gerais da República aos órgãos de soberania, como sejam, a definição da política de segurança interna e coordenação da sua execução (os arts. 7º, 8º e 9º da Lei de Segurança Interna, Lei nº 20/87, de 12 de Junho, cometem tais tarefas à Assembleia da República, ao Governo e ao Primeiro-Ministro);
b) alterar ou, de qualquer forma, modificar o regime das forças de segurança, sujeito a reserva de lei, ou a respectiva organização, necessariamente única para todo o território nacional (art. 272º, nº 4, da Constituição);
c) Assumir ou exercer poderes directos sobre a polícia de segurança: como corolário da 'organização unitária' das forças de segurança, é evidente que fica excluída qualquer 'descentralização' ou 'regionalização' no exercício de poderes de direcção sobre as mesmas. Tal conclusão resulta plenamente confirmada na lei, designadamente em função do disposto no art. 2º do Estatuto da Polícia de Segurança Pública, aprovado pelo Decreto-Lei nº 157/85, de 9 de Maio.
- Embora as regiões autónomas exerçam poder executivo próprio, nos termos do art. 229º, nº 1, alínea g), da Constituição, tal não poderá, de forma alguma, implicar que o Governo se encontre impedido de exercer, em qualquer caso, a sua competência política e administrativa nas regiões autónomas, como foi decidido no acórdão nº 192/88 do Tribunal Constitucional, onde não se reconheceu uma reserva de exercício do poder executivo às regiões autónomas. Na estrutura constitucional vigente, tais poderes são exercidos, a nível regional, pelos Ministros da República (art. 232º, nº 3, da Constituição).
- Não se afigura concebível a atribuição de uma competência legal em sede de
'manutenção da ordem pública', visando a realização de um pretenso 'interesse específico' regional, sem que ao órgão dela incumbido possa ser atribuída qualquer parcela de competência em termos de definição da política de segurança interna e coordenação da sua execução, escolha do modelo organizatório das forças de segurança e exercício de qualquer poder directivo no que respeita à actividade de polícia de segurança', ou seja, a adequação dos preceitos legais questionados às normas e princípios constitucionais vigentes implica um total e absoluto 'esvaziamento' do conteúdo dos mesmos.
Conclui a entidade requerente o seu pedido, considerando que os dois preceitos impugnados são inconstitucionais, 'já que a atribuição de qualquer sentido útil à competência neles atribuída ao Secretário Regional das Finanças, Planeamento e Administração Pública - isto é, a manutenção da ordem pública, enquanto tarefa ditada pela prossecução de um específico interesse regional - colide frontalmente com o disposto no nº 4 do artigo 272º e no nº 3 do artigo 232º da Constituição' (a fls. 7 dos autos).
2. Notificados os órgãos autores dos diplomas onde se acham as normas impugnadas neste processo - nas pessoas dos respectivos presidentes - de harmonia com o disposto no art. 54º da Lei do Tribunal Constitucional, vieram os Presidentes da Assembleia da República e da Assembleia Legislativa Regional dos Açores apresentar respostas.
3. O Presidente da Assembleia da República limitou-se a oferecer o mérito dos autos e a enviar exemplares de diferentes números do Diário da Assembleia da República relativos à discussão e aprovação das Leis nºs 39/80, de 15 de Agosto, e 9/87, de 26 de Março.
4. O Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores sustentou que devia ser negado provimento ao requerimento do Procurador-Geral da República, considerando que nenhuma das normas impugnadas estava afectada de inconstitucionalidade. Para tal alegou o seguinte:
- No quadro da definição estatutária da autonomia regional, o Estatuto Político-Administrativo da Região, dentro do papel integrador que lhe é cometido constitucionalmente e na concretização do poder governamental atribuído constitucionalmente às Regiões Autónomas (art. 229º, nº 1, alínea g), da Lei Fundamental) e sem ultrapassar os limites constitucionais da definição do conceito de 'interesse específico', considerou como matéria de tal interesse a respeitante à 'manutenção da ordem pública'.
- Nesse contexto e sobretudo em face da ausência da definição, no próprio texto constitucional, do âmbito material do poder governamental emergente do poder executivo próprio (art. 229º, nº 1, alínea g), da Constituição) e da necessidade de delimitação do mesmo relativamente ao correspondente poder do Governo da República, o art. 3º, alínea n), do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/A, de 5 de Janeiro - diploma que aprovou normas sobre a estrutura do Governo Regional dos Açores - incluiu no âmbito de competência legal do Secretário Regional das Finanças, Planeamento e Administração Pública, a matéria relativa à 'ordem pública', nos termos da Constituição, com respeito dos princípios da unidade do Estado e da autonomia regional, e no quadro da solidariedade que caracteriza as próprias Autonomias e o especial tipo de relações entre os órgãos de Soberania e os órgãos de governo próprio dos Açores e da Madeira.
- O art. 229º, nº 1, alínea g), da Constituição, ao sugerir expressamente a existência de um Governo, com atribuições de condução de política e de órgão superior da administração regional, não definiu o âmbito material desse poder executivo próprio, nem o delimitou em relação ao do Governo da República, pelo que, na ausência de um critério constitucional estrito definidor do âmbito da autonomia administrativa regional, essa definição só pode ser efectuada nos Estatutos, como se verifica no caso presente [art. 33º, alínea mm), do Estatuto Político-Administrativo dos Açores].
- De harmonia com o defendido por alguns constitucionalistas portugueses, a autonomia executiva regional não tem de coincidir com a autonomia normativa, em especial a legislativa, podendo ser bastante mais ampla, pois não só não está sujeita a uma condição positiva estrita (o 'interesse específico'), como também são menos extensos os seus limites negativos. Nada obsta a que as regiões autónomas detenham funções e serviços em matérias sobre as quais exista uma reserva de competência normativa da República.
- As normas impugnadas no presente processo não colidem directamente com o disposto no art. 272º, nº 4, e 232º, nº 3, da Constituição, dado que, enquanto norma estatutária e norma orgânica complementar, se limitam, por um lado, a incluir no âmbito da autonomia regional a prossecução da manutenção da ordem pública e, por outro, a integrar materialmente essa atribuição na administração regional, sem nunca pôr em causa os princípios da reserva de lei e da unidade de organização, bem como as competências atribuídas ao Ministro da República pelas normas constitucionais citadas.
- De um ponto de vista de evolução histórico-legislativa, deve atender-se a que a Junta Regional dos Açores, criada pelo Decreto-Lei nº 458-B/75, de 22 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei nº 100/76, de 3 de Fevereiro, recebeu as funções dos governadores dos distritos autónomos, incluindo as competências policiais (art. 4º, nº 3, daquele diploma). Publicado o primeiro estatuto político-administrativo provisório dos Açores (Decreto-Lei nº 318-B/76, de 30 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 427-D/76, de 1 de Junho), transitaram para os novos órgãos regionais as competências da extinta Junta Regional (art. 64º, nº 2, desse Estatuto). É deste modo que se chega ao enquadramento da previsão da alínea mm) do art. 33º da versão de 1987 do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, o qual elenca a 'manutenção da ordem pública' como matéria de interesse específico: 'tratam-se apenas das competências de natureza policial que no Continente pertencem ao governador civil e que na Região cabem aos órgãos de governo próprio' (a fls. 17).
- Não existe, assim, qualquer colisão no que respeita às competências que continuam a ser exercidas pela administração central em matéria de segurança e ordem pública, designadamente pelas forças de segurança pública dependentes do Ministério da Administração Interna. Ficam, também, sempre salvaguardadas as competências do Ministro da República respeitantes à superintendência nas funções administrativas exercidas pelo Estado na Região e à coordenação destas com as exercidas pela própria Região, conforme previsto no nº 3 do art. 232º da Constituição. Na verdade, a competência dos governadores dos distritos autónomos, conferida pela legislação publicada durante a vigência da anterior Constituição, de superintendência 'nos serviços de polícia cívica, salva a competência legalmente conferida aos órgãos superiores desses serviços, dispondo da polícia de segurança para manter a ordem e tranquilidade públicas' (art. 99º, nº 1, do Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes), não transitou para os órgãos de governo regional.
- Desde a implantação da autonomia regional, decorrente da Constituição de 1976, tais faculdades têm sido pacificamente exercidas, 'através de um profícuo diálogo e cooperação entre o Governo Regional e o Comando próprio da Polícia de Segurança Pública e sem desrespeito pelos princípios constitucionais e legais que regem matéria tão sensível, envolvendo os direitos fundamentais dos cidadãos' (a fl. 18 dos autos).
- Quanto à norma regional também impugnada no requerimento do Procurador-Geral da República, trata-se de uma mera norma de determinação de competência, atribuindo a um membro do Governo Regional a competência deste Governo em matéria de ordem pública. Trata-se de uma repetição do anteriormente disposto no art. 5º, alínea g), do Decreto Legislativo Regional nº 36/88/A, de 28 de Novembro, que não viola qualquer das disposições constitucionais invocadas pela entidade requerente, tendo finalidade organizativa, não inovando na sua essência, nem interferindo no conteúdo da esfera jurídica dos cidadãos, pelo que não corresponde ao uso de qualquer virtualidade contida na alínea mm) do art.
33º do Estatuto, mas sim ao cumprimento do disposto no art. 42º, nº 2, do mesmo diploma.
5. Não se vêem quaisquer obstáculos que impeçam o conhecimento do objecto deste processo.
É o que passa a fazer-se.
II
6. Foi na Lei nº 39/80, de 5 de Agosto, diploma que aprovou o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que surgiu pela primeira vez a qualificação da actividade de 'manutenção da ordem pública' como matéria de 'interesse específico' para a Região.
De facto, o então art. 27º desse Estatuto dispôs que constituíam 'matérias de interesse específico para a Região, designadamente:
[...] mm) Manutenção da ordem pública'.
Como se verá adiante, a aprovação desta norma suscitou alguma controvérsia na Assembleia da República, na discussão da proposta de Estatuto.
No Estatuto Provisório da Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto-Lei nº 318-B/76, de 30 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 427-D/76, de 1 de Junho, não se fazia qualquer referência a matérias de interesse específico para a Região, estabelecendo-se antes as competências da Assembleia Regional (art. 22º) e do Governo Regional (art. 33º). Dessas competências não constava nenhuma atinente à matéria de manutenção da ordem pública. Ao Ministro da República competia a coordenação da actividade dos serviços centrais do Estado no tocante aos interesses da Região e a superintendência nas funções administrativas exercidas pelo Estado na Região, bem como a coordenação com as funções exercidas pela própria região autónoma
(alíneas f) e g) do art. 40º do mesmo Estatuto Provisório).
7. Antes de se procurar interpretar a referência
à manutenção da ordem pública na norma estatutária cuja constitucionalidade se acha impugnada, justifica-se uma breve referência à evolução histórica das propostas de concessão de uma ampla autonomia administrativa ao Arquipélago dos Açores, a partir do constitucionalismo monárquico, e aos diplomas sobre o estatuto administrativo que aí vigoraram até a revolução de 25 de Abril de 1974.
Remonta a 1892 a apresentação de um primeiro projecto de lei destinado a concretizar um regime político-administrativo de natureza autonómica para os Açores (projecto de lei elaborado pelo Deputado açoreano A, apresentado à Câmara de Deputados em 31 de Março de 1892, mas que não chegou a ser discutido). Nesse projecto, previa-se que competiria às juntas gerais dos distritos açoreanos ou às corporações que as substituíssem 'deliberar definitivamente sobre tudo o que não seja das atribuições dos poderes políticos do estado, que não possam ser delegadas, e sobre tudo o que não seja ofensivo dos direitos políticos e individuais dos cidadãos, bem como das leis que regulam o recrutamento e serviço militar, a emigração e o recenseamento eleitoral'
(corpo do art. 1º, transcrito in A Autonomia dos Açores na Legislação Portuguesa
- 1892/1947, obra organizada por José Guilherme Reis Leite, Horta, 1987, pág.
17). As juntas gerais teriam competência na matéria de organização, entre outros, dos serviços administrativos e judiciais, de saúde pública, de sanidade marítima e portos (art. 2º). No mesmo articulado eram consideradas instituições da unidade nacional 'a representação nacional, o exército e a armada, os tribunais de último recurso e a representação consular e diplomática' (art. 9º,
§ único). Nesse projecto amplamente autonomista, só se admitia o acesso aos tribunais de último recurso se se invocasse ofensa das leis gerais do país, considerando estas 'as leis vigentes que não forem contrárias às deliberações das juntas gerais dos distritos açoreanos, ou das corporações que as substituírem, tomadas no exercício das atribuições que esta lei lhes confere'.
Em diferentes projectos posteriores, comissões de promoção autonómica e outras instituições açoreanas bateram-se pela concessão de um elevado grau de autonomia ao Arquipélago, prevendo-se em alguns projectos a existência de corpos civis de polícia organizados pelas juntas distritais (é o caso do projecto elaborado pela comissão autonómica distrital de Angra do Heroísmo, em 1893, - art. 60º, nº 12º, transcrito na obra de Reis Leite já citada, pág. 60).
No Decreto de 2 de Março de 1895, de Hintze Ribeiro, estabeleceu-se, pela primeira vez, a aplicação aos distritos dos Açores, que por tal optassem, de um regime administrativo mais descentralizado, com juntas gerais compostas de procuradores eleitos directamente pelos concelhos. Essas juntas gerais tinham, entre outras atribuições, as de
'administrar os bens e interesses peculiares do distrito, promover e realizar todos os seus melhoramentos morais e materiais, que por disposição da lei não
[estivessem] especialmente incumbidos a outras corporações ou autoridades'
(art. 18º). Todavia, as matérias de manutenção da ordem pública cabiam aos representantes do Executivo nacional, os governadores civis (cabia, porém, às juntas gerais deliberar sobre 'construção, reparação e polícia dos portos de pequena cabotagem, e dos faróis, excepto os dos portos artificiais' - art. 23º, nº 20; bem como 'sobre regulamentos de polícia próprios das posturas municipais, mas que, ao seu parecer, convenha serem uniformes em todo o distrito, ouvidas previamente as câmaras municipais' - art. 23º, nº 31º). As soluções do Decreto ditatorial de Hintze Ribeiro foram confirmadas pelas Cortes em 1896, mas, em
1910, a Carta de Lei de 12 de Junho desse ano restringiu a extensão da autonomia anteriormente reconhecida, aumentando os poderes de tutela dos governadores civis. Previu-se nessa lei que existiriam Corpos de Polícia Civil nos distritos com organização especial, tendo 'comissários, cujos vencimentos, e bem assim os dos respectivos chefes, cabos e guardas serão estabelecidos pelo governo, ouvida a junta geral' [art. 1º alínea k)]. A legislação de 1895 foi parcialmente mantida em vigor pela legislação administrativa republicana (Lei nº 88, de 7 de Agosto de 1913, art. 87º).
Após a revolução de 28 de Maio de 1926, a tendência para a centralização administrativa acentuou-se (Decreto nº 15035, de
16 de Fevereiro de 1928, logo alterado pelo Decreto nº 15805, de 31 de Julho de
1928). A Constituição de 1933 previa que a divisão do território das ilhas adjacentes e respectiva administração seriam reguladas 'em lei especial' (art.
125º, § 2º). Tal lei especial só veio a ser publicada em 1938, aí se prevendo os distritos autónomos nas ilhas adjacentes (Lei nº 1967, de 30 de Abril de
1938). O Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes, aprovado pelo Decreto-Lei nº 30214, de 22 de Dezembro de 1939, (alterado pelo Decreto-Lei nº
36.453, de 4 de Agosto de 1947) adoptou um modelo fortemente centralizado, conferindo amplos poderes aos governadores desses distritos, representantes do Governo da República, 'a cujo cargo está a gestão dos interesses políticos e administrativos do Estado, a superintendência na polícia geral e a inspecção e fiscalização tutelar da administração distrital autónoma' (art. 50º), cabendo-lhes o poder de superintender 'nos serviços da Polícia Cívica, salva a competência legalmente conferida aos órgãos superiores desses serviços, dispondo da Polícia de Segurança Pública para manter a ordem e a tranquilidade pública
[...]' (art. 98º, nº 10). A par do governador do distrito autónomo, continuava a existir a junta geral, órgão da administração distrital autónoma (art. 4º). As juntas gerais podiam ter atribuições de polícia (art. 15º, 8º), pertencendo-lhe deliberar sobre a segurança e comodidade do trânsito nas estradas distritais, sobre a conveniência e condições das edificações junto às estradas distritais, sobre o estacionamento dos veículos nas estradas distritais, sobre a iluminação pública nas estradas distritais, sobre a organização da polícia rural, de acordo com as câmaras municipais (art. 25º ; o § único deste artigo admitia que as atribuições respeitantes às estradas distritais pudessem ser, por acordo, transferidas para as câmaras municipais, nos troços de estrada que atravessassem povoações).
8. Este regime fortemente centralizador manteve-se inalterado até à Revolução de 25 de Abril de 1974. A partir de então, criaram-se condições políticas para o acolhimento de um regime político-administrativo autonómico para os arquipélagos dos Açores e da Madeira.
Em 1975, foi publicado um diploma autonómico para a região dos Açores. No preâmbulo do mesmo, reconhecia-se que o desejo das populações açoreanas apontava para a autonomia, não representando a existência dos três distritos autónomos herdados do regime deposto uma solução verdadeiramente autonómica. Na verdade, e segundo o preâmbulo do Decreto-Lei nº
458-B/75, de 22 de Agosto, 'a especialidade da sua configuração geográfica e humana; a existência e funcionamento de órgãos de administração a nível distrital, descoordenados entre si e com serviços periféricos do Governo Central; a exiguidade dos seus recursos financeiros e a limitação imposta a essa mesma autonomia, levaram no decurso do tempo ao acentuar de graves desequilíbrios internos e a uma incapacidade de resposta imediata aos problemas que actualmente se pôem a nível da região'.
Em vez da subsistência de três distritos autónomos, com governadores civis distintos, o decreto-lei de 1975 deu corpo à criação de uma região dos Açores, aparentemente acolhendo uma proposta,análoga à apresentada em 1927, de criação de uma província autónoma dos Açores (veja-se Reis Leite, ob cit, págs. 197 e seguintes). O órgão político-administrativo da Região passava a ser a Junta Administrativa e de Desenvolvimento Regional, constituída pelo Governador Militar, que a ela presidiria, e por seis vogais especialmente qualificados no domínio económico, dos equipamentos colectivos, do trabalho e assuntos sociais, educação e cultura (art. 2º). A Junta Regional ficava dependente directamente do Primeiro-Ministro, sendo, na versão originária do diploma, os vogais daquela por ele nomeados, sob proposta do Governador Militar, e ouvidos os Ministros da Administração Interna e para o Planeamento e Coordenação. Em função do pendor de natureza transitória e relativamente centralizador,traduzido na composição do órgão e modo de escolha dos respectivos vogais, previa-se que a Junta Regional teria os poderes que o Governo delegasse na mesma Junta, e apontava-se para a transferência progressiva de funções da Administração Central para a Administração Regional (art. 7º, nº 2). Esta Junta Regional devia apresentar, num prazo de noventa dias, 'um projecto de diploma sobre o estatuto da autonomia e os órgãos da Administração da Região dos Açores'
(art. 15º). Até lá, as Juntas Gerais e os órgãos periféricos dos Ministérios instalados nos Açores ficavam na dependência directa da Junta Regional, não se fazendo qualquer alusão aos governadores civis dos distritos autónomos (os quais tinham, no domínio da Constituição de 1933, honras idênticas às de Ministro de Estado, 'encontrando-se numa posição intermédia entre os governadores civis do continente e os governadores das então designadas províncias ultramarinas' - Aires J. Ferreira Pinto, vocábulo 'Distrito', in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. IV, Lisboa, 1991, pág. 125). Só no ano seguinte, o Decreto-Lei nº 100/76, de 3 de Fevereiro, veio, através de uma alteração ao nº 3 do art. 4º do Decreto-Lei nº 458-B/75, esclarecer que as competências dos Governadores Civis dos distritos autónomos passavam a caber à Junta Regional, até à entrada em vigor do estatuto da autonomia. A partir deste diploma, ficou igualmente definido que as matérias de defesa e segurança ficavam reservadas à competência do Governo [art. 6º, nº 2, alínea a)].
9. A Constituição da República Portuguesa de 1976 procurou ir ao encontro dos tradicionais desejos de autonomia dos habitantes dos Açores e da Madeira.
A este propósito, escreveu Jorge Miranda:
'O Estado Português continua unitário (art. 6º, nº 1) [...], sem embargo de ser também descentralizado, capaz de distribuir funções e poderes de autoridade por centros de interesses ou comunidades diferenciadas existentes no seu seio. Descentralizado na tríplice dimensão do regime político-administrativo dos Açores e da Madeira, do poder local ou sistema de municípios com outras autarquias de grau superior e inferior e ainda de todas aquelas medidas que possam caber na «descentralização democrática da administração pública» segundo os arts. 6º, nº 1 e 268º, nº 2 [...]'. (A Constituição de 1976. Formação, Estrutura, Princípios fundamentais, Lisboa, 1978, págs. 437-438).
De harmonia com a nova Constituição, os Açores e a Madeira iriam passar a dispor de estatutos político-administrativos próprios, que traduziriam a disposição do Estado de atribuir poderes de natureza política e legislativa a órgãos das regiões, cujos titulares haveriam de ser escolhidos através da opção democrática dos eleitores residentes, deixando de ser designados pelo poder central. O Governo publicou os estatutos provisórios para as duas regiões autónomas logo a seguir à entrada em vigor da Constituição. O Estatuto Provisório da Região Autónoma dos Açores foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 318-B/76, de 30 de Abril, como atrás se referiu. Como órgãos regionais, estabeleceram-se a Assembleia Regional e o Governo Regional, já previstos na Constituição. Este estatuto vigoraria até à entrada em vigor do Estatuto definitivo da Região Autónoma dos Açores (art. 62º, reproduzindo a doutrina do art. 302º, nº 3, da versão originária da Constituição). O Poder Central era representado na Região pelo Ministro da República (cfr. art. 232º da Constituição).
O art. 64º, nº 2, do Estatuto provisório - norma aditada pelo Decreto-Lei nº 427-D/76, de 1 de Junho - estabeleceu que as
'competências, designadamente de carácter tributário, conferidas por lei às juntas gerais ou à Junta Regional dos Açores' eram atribuídas aos órgãos regionais (cfr. art. 4º, nº 3, do Decreto-Lei nº 458-B/75, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 100/76, atrás citado; vejam-se ainda os nºs 2 do art. 92º do Estatuto de 1980 e do art. 106º do Estatuto de 1987, que mantêm ipsis verbis a formulação do nº 2 do art. 64º do Estatuto Provisório atrás transcrito).
As primeira e segunda revisões constitucionais aprofundaram a autonomia dos Açores e da Madeira, clarificando sucessivamente aspectos essenciais à estruturação destas regiões autónomas. Valerá apenas examinar a seguir o texto da versão vigente da Constituição, resultante da segunda revisão constitucional, concluída em 1989.
10. Na versão em vigor da Constituição, o art.
227º, nº 2, estabelece que 'a autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade de todos os portugueses'. O nº 3 do mesmo artigo esclarece, por seu turno, que 'a autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição'.
As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira gozam constitucionalmente de uma determinada medida de autonomia política (e não meramente administrativa), detendo poderes de natureza legislativa [art. 229º, nº 1, alíneas a) e b)], regulamentar [art. 229º, nº 1, alínea d)], e exercem
'poder executivo próprio'. Os poderes das regiões autónomas devem ser, nos termos da Constituição, definidos nos respectivos estatutos político-administrativos (art. 228º). O critério fundamental para a atribuição desses poderes há-de ser a noção de interesse específico para a respectiva região ou interesse regional [cfr. arts. 115º, nº 3, e 229º, nº 1, alíneas a), b), c), i), s) e u)].
Gomes Canotilho e Vital Moreira interrogam-se sobre se os estatutos político-administrativos podem incluir outros poderes, além dos previstos no art. 229º da Constituição, escrevendo o seguinte:
'A resposta deve ser negativa, já que a Constituição o não prevê ( e ainda que o previsse, sempre essa possibilidade teria como limites, além do disposto no art.
227º -3, os poderes constitucionalmente atribuídos ao Estado). Em todo o caso, ao enunciar as atribuições das regiões autónomas, a Constituição fá-lo em alguns casos em termos de tal modo genéricos, que fica larga margem aos estatutos para configurar a autonomia regional (v.g., a extensão das atribuições legislativas,
âmbito de esfera da Administração regional). O que, de qualquer modo, é vedado é a criação de poderes não enquadráveis em competências constitucionalmente fixadas'. (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, revista, Coimbra, 1993, pág. 852).
Os mesmos constitucionalistas chamam a atenção para que, para além dos poderes contidos nas diferentes alíneas do art. 229º da Constituição, não existe um critério constitucional estrito que haja de ser observado na definição estatutária da autonomia administrativa regional (ob. cit, pág. 858).
11. Em 1980, a Assembleia da República editou o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, constante da Lei nº 39/80, de 5 de Agosto. A proposta deste estatuto foi elaborada pela Assembleia Regional dos Açores, nos termos constitucionais.
Na Proposta de Lei nº 300/I foi formulado um elenco de natureza exemplificativa de 'matérias de interesse específico' para a Região, aí se incluindo a 'manutenção da ordem pública' [art. 27º, alínea mm), da proposta, publicada no Diário da Assembleia da República, II Série, nº 37, de
26 de Março de 1980, pág. 434].
O debate parlamentar sobre este artigo foi elucidativo das diferentes posições expressas sobre a extensão da autonomia regional. Quer o Partido Socialista, quer o Partido Comunista Português apresentaram textos alternativos à proposta do órgão parlamentar regional.
A proposta do Partido Socialista era a seguinte:
'É vedado à Região Autónoma, independentemente da actuação do mecanismo da audiência prévia, quando for o caso disso, legislar sobre os sectores da defesa e segurança, da justiça, registos e notariado, da política externa, da política monetária, financeira, fiscal e cambial, da política nacional de transportes e comunicações, dos correios, telecomunicações e meteorologia, do Instituto Geográfico e Cadastral e quaisquer outros que como tais venham a ser definidos por lei.' (in Diário da Assembleia da República, I Série, nº 70, de 26 de Junho de 1980, pág. 3383; estas matérias correspondiam em parte à enumeração das matérias reservadas à competência do Governo da República nos arts. 6º, nº 2, dos diplomas de 1975 e 1976 de criação de Juntas Regionais nos Açores e Madeira
- cfr. Decreto-Lei nºs 458-B/75, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº
100/76, de 3 de Fevereiro, e Decreto-Lei nº 101/76, também de 3 de Fevereiro).
Através desta proposta, pretendia-se estabelecer uma verdadeira reserva legislativa em matérias de interesse nacional, isto é, não específico da Região, indo-se ao ponto de admitir a ampliação dessa reserva através de futuras leis não estatutárias. Tudo o que não se referisse a tais matérias seria da competência legislativa da respectiva assembleia regional.
Em contrapartida, o Partido Comunista apresentava a seguinte alternativa para o mesmo art. 27º:
'Constituem matérias de interesse específico para a Região as que sejam exclusivas da região, bem como as que, embora não exclusivas, assumam na região particularidades suficientes para lhes conferir natureza diferente.' (D.A.R., I Série, nº 70, pág. 3383).
Neste último caso, optava-se por uma definição de interesse específico claramente inspirada na jurisprudência da Comissão Constitucional (cfr., em especial, os Pareceres nºs 7/77, 20/77, 11/78, 23/78, e
21/80, publicados em Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 1º, págs. 113 e segs., 2º, págs 159 e segs., 5º págs. 57 e segs., 6º, págs 241 e segs. 13º, págs. 17 e segs., respectivamente; cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1ª ed., Coimbra, 1978, pág. 419).
Nesse debate, o Deputado B insurgiu-se contra o carácter exemplificativo da enumeração constante do art. 27º da proposta de lei, afirmando que, relativamente a alguns casos aí contemplados, a natureza do interesse específico seria 'manifestamente duvidosa'. Seriam, entre outras, as alíneas respeitantes 'ao contrôle e administração dos meios de pagamento internacionais em circulação na Região', à 'adaptação do sistema fiscal à realidade económica regional' ou 'a concessão de benefícios fiscais'. (D.A.R., IS, nº 70, de 26 de Junho de 1980, pág. 3379). Este parlamentar sustentava a solução alternativa apresentada pelo seu partido nos seguintes termos:
'...preferimos uma solução que nos parecia mais ampla em termos de autonomia, ou seja, uma definição por via negativa. Nós dizíamos o que não é específico, pois o que não é específico não pode ser regionalizado [...], isto é, matérias sobre as quais sempre houve consenso entre o Governo Central e o Governo Regional, no sentido de que sobre elas não se punham problemas de momento no âmbito da actual Constituição, pelo menos problemas de regionalização' (ibidem). À excepção de tais matérias, poderiam os órgãos de governo regional legislar sobre todas as outras, desde que fossem respeitados os limites constitucionais.
Por seu turno, o Deputado C defendia a proposta alternativa do Partido Comunista, sustentando que o único domínio relevante para a definição de matérias de interesse específico para a região autónoma seria o domínio dos poderes legislativos regionais, dele se excluindo o domínio de transferência de competências administrativas. E afirmava, de seguida:
'Mas se isto é assim, então, como entender o artigo 27º que agora nos é proposto quando diz que «constituem matérias de interesse específico» - e, como tal, candidatas a serem objecto de competência legislativa da Região - matérias como o estatuto dos residentes na Região [alínea a)], a demarcação territorial e a alteração das atribuições e da competência dos órgãos das autarquias locais
[alínea b)], expropriações ou requisição civil de bens [alínea v)], manutenção da ordem pública [alínea mm)], benefícios fiscais [alínea ll)], adaptação do sistema fiscal [alínea jj)], comunicação social [alínea aa)] e outras matérias, pois estou apenas a tirar algumas dispersas ao corrente do olhar?!
Estas matérias são inegavelmente, indiscu-tivelmente e obviamente da competência exclusiva e reservada da Assembleia da República, ao abrigo do artigo 167º da Constituição [note-se que a referência é feita à versão originária da Constituição], pelo que nunca poderiam ser - mesmo em certos casos concretos de interesse específico para a Região-objecto de legislação regional. Isto porque toda a gente sabe que o conceito de matéria de interesse específico não pode sobrepor-se a outro limite do poder legislativo regional que é a competência reservada da Assembleia da República' (mesmo Diário, nº 70, pág.
3380).
Igualmente o Deputado Jaime Gama, do Partido Socialista, considerava que as matérias descritas no art. 27º da proposta da assembleia açoreana poderiam revestir interesse específico regional, mas tal
'enunciado de matérias de interesse específico regional não pode ser automaticamente associado à competência legislativa exclusiva da Assembleia Regional ou dos órgãos de Governo Regional, visto que essas competências legislativas se exercem no quadro da Constituição e, como tal, têm de obedecer a reservas de competência que a própria Constituição estipula, designadamente, em relação a órgãos de soberania' (Diário cit., págs. 3380-3381).
Em contraposição aos pontos de vista referidos, enunciados pelos Deputados da oposição, o Deputado E considerava nesse debate que não era forçoso acatar a interpretação do preceito perfilhada pelo Deputado C. Face à interpretação deste último, também se lhe afigurava que o preceito seria contrário à Constituição. Preconizava, porém, que esse art. 27º pudesse, e devesse, ser 'interpretado não em função da competência legislativa dos órgãos de Governo próprio da Região, mas sim em função da cooperação dos órgãos de soberania com os órgãos regionais' (Diário cit., pág. 3381). Embora redigido de forma pouco feliz, este artigo referir-se-ia ao elenco de matérias sobre as quais as regiões tinham o direito de ser ouvidas, quando se preparasse legislação no seio dos órgãos de soberania. Também o Deputado D sustentava que, da conjugação do art. 26º, nº 1, alínea c), da proposta com o seu art. 27º, não resultaria qualquer inconstitucionalidade: '[o] facto de o Estatuto chamar a atenção para um determinado número de matérias que entende dever chamar de
«interesse específico para a Região» não quer dizer, de forma nenhuma, que vai expropriar a competência legislativa de outros Órgãos de Soberania' (Diário cit., pág. 3382).
Interpelado directamente pelo Deputado D, teve ocasião o Deputado C de admitir que '...talvez fosse possível interpretar conforme à Constituição este artigo [27º]', embora duvidasse de que tal viesse a ser a orientação acolhida pelos órgãos de controlo da constitucionalidade. E acrescentou o seguinte:
'Julgo que não seria difícil da minha parte «ver», por exemplo, que esta definição de matérias de interesse específico é relevante, por exemplo, para efeitos de direito de consulta dos órgãos de soberania, para efeitos de direito de participação, portanto, na definição política legislativa. Admito que se possa ver isso que cá não está, como evitar ver o que cá está de bom, e nomeadamente o que está o seguir ao artigo 26º, a seguir à referência às matérias de interesse específico contidas na alínea c), pois vem imediatamente esta definição de um conceito que, constitucionalmente e segundo o próprio Estatuto, só é relevante para efeitos legislativos.
Em todo o caso, não é que eu deseje que seja impossível esta leitura conforme a Constituição, só digo é que, da minha parte, me parece extremamente difícil, isto é, para não dizer praticamente excluída da leitura pertinente, já agora, das regras constitucionais em matéria de autonomia regional' (Diário cit., págs.
3382-3383).
A Assembleia da República rejeitou as propostas de alteração apresentadas pelo PS e pelo PCP, aprovando o texto do art. 27º da proposta de estatuto autonómico elaborada pela Assembleia Regional dos Açores.
Em declaração de voto apresentada pelo Deputado F, do Movimento Democrático Português/Centro Democrático Eleitoral, o mesmo manifestou receios quanto ao que poderia suceder 'aos direitos e liberdades de alguns cidadãos em termos de manutenção de ordem pública' (Diário cit., pág.
3384).
12. Na revisão operada pela Assembleia da República do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, a alínea mm) do art. 27º do Estatuto de 1980 não sofreu qualquer alteração, passando a constar do art. 33º da versão em vigor desse Estatuto [veja-se a Lei nº 9/87, de 26 de Março; na revisão de 1987, apenas foram introduzidas ligeiras alterações de redacção às alíneas b) e c) do artigo 27º referido].
13. Importa, antes de prosseguir, averiguar qual o sentido jurídico preciso da expressão 'manutenção da ordem pública', que aparece a partir de 1980 no texto do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
A Constituição vigente não utiliza o conceito de ordem pública. No art. 272º, nº 1, indicam-se as funções da polícia, sem se recorrer a tal conceito tradicional:
'A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.'
Anotando esta norma, afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira que 'a distinção aqui feita entre defesa da legalidade democrática e garantia da segurança interna mostra que a primeira não coincide com a função tradicional de defesa da «ordem pública», que abrangia a defesa da tranquilidade
(manutenção da ordem na rua, lugares públicos, etc.), da segurança (prevenção de acidentes, defesa contra catástrofes, prevenção de crimes) e da salubridade
(águas, alimentos, etc.)' (Constituição cit., pág. 955).
Tal como as Constituições italiana de 1947 e espanhola de 1978, também a Constituição portuguesa se absteve de acolher a noção de ordem pública, dada a força expansiva deste conceito, entendido num sentido ideal, na restrição de direitos fundamentais, tal como ficara demonstrado na prática política dos regimes autoritários precedentes (cfr. G. Corso, Ordine pubblico in Enciclopedia del Direito, vol. XXX, 1980, págs. 1061 e segs.). Em todo o caso e atendendo ao disposto no art. 16º da Constituição, importa referir que o art. 29º, nº 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem faz uma referência à satisfação das 'justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática' como credencial justificativa da limitação dos direitos e liberdades individuais (cfr. texto publicado no Diário da República, I Série, nº 57, de 9 de Março de 1978).
Sem curar de diferentes noções de ordem pública que aparecem em diversos ramos de direito (bastará recordar 'os princípios fundamentais da ordem pública internacional', previstos no art. 22º do Código Civil, em matéria de conflitos de leis, ou a referência a 'leis de interesse e ordem pública', tradicionalmente utilizada para designar normas imperativas delimitadoras da autonomia negocial no direito privado), deve confinar-se tal investigação ao domínio do direito administrativo, e, eventualmente, ao do direito penal quanto à utilização da expressão manutenção da ordem pública. Jorge Miranda, depois de definir a ordem pública, em direito público, como o
'conjunto das condições externas necessárias ao regular funcionamento das instituições e ao pleno exercício dos dir[eitos] individuais', mostrava que a teoria da ordem pública era tradicionalmente feita nos direitos administrativo e penal, isto em texto elaborado no quadro normativo existente na vigência da Constituição de 1993:
'A polícia, em especial a polícia de segurança, defende preventivamente a O.P.,
à luz de dois princípios: 1) a relevância pública das activi[dades] objecto de intervenção policial, não podendo ser afectada a esfera privada das pessoas; 2) a sujeição dessa intervenção,ainda quando discricionária, à lei, o Dec.-Lei nº
37447, de 13 de Junho de 1949, é o diploma básico da matéria em Portugal. Por seu turno, o Cód. Pen. [de 1886] prevê e pune como crimes contra a ordem e a tranquilidade pública (aa. 177º e ss.), entre outros, as reuniões criminosas, sedições e assuadas, a injúria e a violência contra a autoridade pública, resistência e desobediência, os crimes contra o exercício de dir[eitos] políticos e as associações de malfeitores.' ('Ordem Pública' - Direito Público, in Enciclopédia Verbo, XIV, 735)
A manutenção da ordem pública anda, assim, tradicionalmente ligada à ideia de polícia, em especial à instituição da polícia de segurança. No dizer de um autor oitocentista, Sousa Duarte, a Polícia era definida como o 'cuidado incessante da autoridade e seus agentes pela execução fiel das leis, pela manutenção da ordem, pela segurança da liberdade, de propriedade e da tranquilidade de todos os cidadãos' (transcrito em Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, II vol., 9ª ed., com a colaboração de Freitas do Amaral, Coimbra, reimpressão, 1980, pág. 1148; sublinhado acrescentado). Ainda segundo Marcello Caetano, 'a polícia de segurança é o ramo da actividade policial que visa a manutenção da ordem e tranquilidade públicas e vigia pela segurança das pessoas e da propriedade, prevenindo a criminalidade e perseguindo os criminosos' (ob. cit., vol. II, pág. 1176).
Na legislação ordinária posterior à Constituição de 1976, a noção de manutenção da ordem pública é reconduzida à noção de segurança interna e de polícia de segurança. Assim a Polícia de Segurança Pública é definida como 'uma força policial armada e uniformizada, obedecendo à hierarquia de comando em todos os níveis da estrutura organizativa, nos termos do presente diploma, e tem por funções defender a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos' (art. 1º, nº 1, da Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública, aprovada pelo Decreto-Lei nº 321/94, de 29 de Dezembro; anteriormente, no art. 1º, nº 1, do Estatuto da PSP, aprovado pelo Decreto-Lei nº 151/85, de 9 de Maio, aludia-se a essa polícia como uma força de segurança que visa 'assegurar a ordem e tranquilidade pública'). E o nº
2 do art. 2º dessa Lei Orgânica considera caber nas missões da PSP, entre outras, a garantia da 'manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas'
[alínea i)]. No caso da Guarda Nacional Republicana, o primeiro estatuto elaborado após 1976 define esta corporação como 'um corpo especial de tropas que faz parte das forças militares, votado à causa da segurança e manutenção da ordem pública, bem como à protecção e defesa das populações e da propriedade pública, privada e cooperativa' [art. 1º do Decreto-Lei nº 333/83, de 14 de Julho; na Lei Orgânica de 1993, a GNR é definida como 'uma força de segurança constituída por militares organizados num corpo especial de tropas', a quem designadamente compete, como 'missão geral', 'garantir, no âmbito da sua responsabilidade, a manutenção da ordem pública, assegurando o exercício dos direitos, liberdades e garantias' e 'manter e restabelecer a segurança dos cidadãos e da propriedade pública, privada e cooperativa, prevenindo ou reprimindo os actos ilícitos contra eles cometidos' - arts. 1º e 2º, alíneas a) e b), da referida Lei Orgânica, aprovada pelo Decreto-Lei nº 231/93, de 26 de Junho].
Acrescente-se, ainda, que, segundo a Lei Orgânica da PSP, esta Polícia depende do Ministro da Administração Interna, sendo a sua organização 'única para todo o território nacional' (art. 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 321/94). Prevendo a actuação da PSP nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, o nº 3 do mesmo art. 1º estabelece que as directivas emanadas dos respectivos Ministros da República, no uso das suas competências próprias, 'serão dadas ao comandante-geral, salvo em caso de urgência, em que poderão ser dadas directamente aos comandantes regionais' (refira-se ainda que a PSP exerce as suas missões 'em todo o território das regiões Autónomas dos Açores e da Madeira' - art. 17º, nº 2; sobre este ponto mas com referência ao Decreto-Lei nº 151/85, já revogado, veja-se Carlos Blanco de Morais, o Ministro da República - Digressão sobre as Figuras Comissarias do Estado em Regiões Autónomas, Lisboa, 1995, págs. 145 e segs.)
Enquadrando estas normas orgânicas definidoras das duas polícias de segurança com longa tradição entre nós, a Lei nº 20/87, de
12 de Junho, Lei da Segurança Interna, veio definir a noção de segurança interna como 'a actividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática' (art. 1º nº 1; o art. 4º, nº 1, estatui que a 'segurança interna desenvolve-se em todo o espaço sujeito a poderes de jurisdição do Estado Português', elencando o art. 14º as diversas forças e serviços de segurança). Acrescente-se que, nas reuniões do Conselho Superior de Segurança Interna, 'órgão interministerial de auscultação e consulta em matéria de segurança interna', participam 'os ministros da República e os presidentes de governo regional' quando aí sejam tratados 'assuntos de interesse para a respectiva região' (art. 11º, nº 2, da Lei nº 20/87).
Pode, assim, afirmar-se que a expressão
'manutenção da ordem pública' é utilizada na legislação ordinária para significar uma das atribuições ou missões de segurança interna, prosseguida pelas forças ou polícias de segurança, que se traduz na garantia da segurança e tranquilidade públicas, na protecção de pessoas e bens, na prevenção da criminalidade, na contribuição para o asseguramento do normal funcionamento das instituições democráticas e do regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e do respeito pela legalidade democrática.
Embora a actividade de polícia de segurança se reconduza à actividade policial geral ou actividade de polícia administrativa, a legislação ordinária exclui das actividades policiais que não sejam de segurança a manutenção da ordem e tranquilidade públicas (veja-se, por exemplo, a Lei nº
32/94, de 29 de Agosto, que disciplina as atribuições e competências dos serviços municipais de polícia e os limites da respectiva actuação - arts. 1º,
2º e 4º; veja-se também a Portaria nº 35/85 da Presidência do Governo Regional dos Açores, de 22 de Fevereiro de 1985, que aprova o Regulamento Policial desta Região Autónoma, na I Série, nº 19, de 4 de Junho de 1985, do respectivo jornal oficial regional).
14. Em matéria de polícia, a Constituição vigente regula essa actividade administrativa no Título IX da Parte III, título dedicado
à Administração Pública.
Já atrás se referiu a norma constitucional que estabelece as funções cometidas à polícia. O nº 2 do art. 272º prescreve que as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamento necessário, ao passo que o nº 3 do mesmo artigo estatui que a
'prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias' (cfr. sobre esta matéria J.M. Sérvulo Correia, Medidas de Polícia e Legalidade Administrativa, texto da alocução publicado in Polícia Portuguesa, ano LVII, II Série, nº 87, Maio-Junho de 1994, págs. 2-7).
Por último, o nº 4 do art. 272º contempla as forças de segurança, determinando:
'A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional' (veja-se igualmente o nº 2 do art.
2º da Lei nº 20/87).
Comentando este preceito constitucional, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:
'A Constituição distingue, dentre as forças de polícia, as chamadas forças de segurança (nº 4). Estas forças, também conhecidas por polícia de segurança, são apenas uma parte da polícia administrativa, cuja função é garantir a ordem jurídico-constitucional, através da segurança de pessoas e bens e de prevenção de crimes.
No preceito em análise definem-se duas regras distintas: (a) princípio da reserva de lei para a organização das forças de segurança;
b) princípio da unidade de organização das forças de segurança para todo o território, nacional. Consagrando o princípio da unidade de organização em todo o território a Constituição estatui a exclusiva competência dos órgãos de soberania (AR e Governo) quanto à sua criação, definição de tarefas e direcção orgânica, estando elas portanto fora do âmbito da autonomia regional, bem como da competência legislativa regional (art. 229º)' (Constituição cit., 3ª ed., pág. 957).
15. Em matéria de forças de segurança, a Constituição portuguesa impôs, assim, um sistema de organização nacional, diferentemente do que foi acolhido pela Constituição espanhola de 1978, onde se admite a coexistência de forças de segurança das comunidades autónomas com as polícias nacionais (arts. 104º, nº 2, e 149º, nº 29º). Em todo o caso, a Constituição espanhola considera a matéria de segurança pública uma matéria de competência exclusiva do Estado, só podendo as polícias de segurança das comunidades autónomas ser criadas nos respectivos estatutos e de harmonia com as disposições de uma lei orgânica [cfr. o texto da Lei Orgânica 2/1986, de 13 de Março, sobre 'Forças e Corpos de Segurança', transcrito em Constitucion Española
- 1978-1988, obra colectiva sob a direcção de Luis Aguiar de Luque e Ricardo Blanco Canales, vol. I, Madrid, 1988, págs. 851 e seguintes; Miguel J. Izu Belloso, Los Conceptos de Orden Público y Seguridad Ciudadana en la Constitucion de 1978, in Civitas - Revistas Española de Derecho Administrativo, nº 58, Abril-Junho de 1988, pág. 233 e seguintes; Alfonso J. V. Cebrián, Las Competencias Autonomicas en Materia de Polícia (Con especial referencia al caso de Galicia), in Revista de Administracion Publica, nº 113, 1987, págs. 137 e seguintes].
Já no que toca à Constituição italiana de 1947, a matéria de ordem e de segurança públicas não cabe nos poderes legislativos das regiões, previstos no seu art. 117º. Na verdade, às regiões são reconhecidos poderes legislativos apenas no que toca 'à polícia local urbana e rural', 'nos limites dos princípios fundamentais estabelecidos pelas leis do Estado, desde que as próprias normas não estejam em oposição com o interesse nacional e com os das outras Regiões'. O Tribunal Constitucional teve, assim, ocasião de afirmar que a Província de Bolzano não detinha competência para afastar, através de lei própria, 'as normas de fonte estadual que respeitam à ordem pública, completamente estranhas ao âmbito provincial (e regional)' (sentença de 19 de Fevereiro de 1976, in Giurisprudenza Costituzionale, ano XXI, 1976, I, pág. 95). Este entendimento foi acolhido pela doutrina, baseando-se na consideração de que
'a ordem pública e a segurança pública, sendo dirigidas à tutela dos bens fundamentais do indivíduo e da colectividade, constituem um campo reservado à legislação estadual por força da exigência fundamental de uma regulamentação uniforme no território nacional' (Gianfranco Bronzetti, Regione e Ordine Pubblico, in Le Regioni, 1-2/1987, pág. 35, referindo as opiniões de Gizzi e Spagna Musso). Segundo a doutrina prevalecente, a razão profunda da reserva estadual de competência reconduz-se às exigências do princípio de igualdade ou de uniformidade de tratamento de todas as pessoas no território nacional, sendo certo que as intervenções legislativas respeitantes à ordem e à segurança públicas acarretam necessariamente aspectos penais e processuais penais, os quais se acham excluídos da competência legislativa regional (arts. 25º e 108º da Constituição italiana). Em contrapartida, a legislação ordinária operou transferências significativas de competências em matéria de polícia administrativa para as regiões e outras autarquias locais (cfr. Bronzetti, art. cit., págs. 38 e segs.). Mas tais transferências foram feitas sem prejuízo das atribuições dos órgãos estaduais em matéria de segurança pública.
Os estatutos das regiões diferenciadas - os primeiros foram os da Sicília e Sardenha - previram a atribuição de competências quanto à manutenção da ordem pública aos presidentes regionais. Tais normas foram consideradas inconstitucionais pela doutrina (cfr. Bronzetti, art. cit., págs. 40 e segs.), mas o Tribunal Constitucional entendeu que se não verificava inconstitucionalidade, no caso do estatuto siciliano,na medida em que, ao receber competências em matéria de manutenção da ordem pública, o presidente regional, através da polícia estadual, deveria considerar-se titular de um órgão estadual descentralizado (sentença nº 131, de 13 de Julho de 1963, in Giurisprudenza Costituzionale, ano VIII, 1963, págs. 1459 e seguintes). O estatuto da Sardenha prevê a delegação pelo Governo da República a favor da região de 'funções de tutela da ordem pública, sendo as mesmas exercidas, no
âmbito de directivas fixadas pelo Governo, pelo presidente da Junta Regional, o qual poderá, para tal fim, solicitar a utilização das forças armadas' (cfr. G. Bronzetti, art. cit., págs. 42 e segs.).
Seja como for, pode concluir-se, no caso italiano, que as competências em matéria de segurança pública cabem ao Estado, embora possam ser delegadas ou atribuídas a órgãos descentralizados. Já as competências de polícia administrativa, fora do domínio de segurança pública, podem ser atribuídas por lei às regiões e a meras autarquias locais.
16. Voltando à matéria sub judicio, importa referir que, na doutrina, Jorge Miranda, referindo-se ao art. 33º do Estatuto dos Açores (versão de 1987), escreve que aí se encontra:
'... uma longa lista de matérias que abrange a política demográfica, os transportes entre ilhas, portos e aeroportos, pescas e agricultura, regime jurídico da terra, política de solos, ordenamento do território, equilíbrio ecológico, recursos hídricos, minerais e termais, energia de produção local, saúde e segurança social, trabalho, emprego e formação profissional, ensino, património cultural, museus, bibliotecas e arquivos, espectáculos, desporto, turismo e hotelaria.
À partida, qualquer matéria que possa subsumir-se neste preceito estatutário deve entender-se de interesse específico [...]; e os órgãos de fiscalização da constitucionalidade não têm de fazer quaisquer indagações em concreto sobre a procedência de tal interesse'. (Funcões, órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, policop. págs. 329-330; ver do mesmo autor, voc. 'Lei', in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, págs. 393 e segs.; e ainda J. L. Pereira Coutinho, voc. 'Lei Regional', no mesmo volume deste Dicionário, págs. 409 e segs.)
Mas o mesmo constitucionalista de Lisboa assinala em nota que '[a]lgumas das alíneas do art. 33º do estatuto afiguram-se, porém, de muito duvidosa constitucionalidade, mesmo após 1989: a alínea a) (estatuto dos residentes); a alínea b), 2ª parte (atribuições e competência dos órgãos das autarquias locais); a alínea aa) (comunicação social); a alínea mm) (manutenção da ordem pública)' (nota (1) da pág. 329 da obra Funções, Órgãos e Actos do Estado, sublinhado acrescentado).
Provavelmente com base nestas dúvidas de constitucionalidade, veio a ser rejeitada a inclusão de uma alínea a considerar como matéria de interesse específico regional a atinente à 'manutenção da ordem pública' no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho [tal alínea constava de proposta elaborada pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira - art. 34º, alínea mm), da proposta de lei aprovada pela Resolução nº 3/90/M, de 22 de Fevereiro, publicada no Diário da República, I Série, nº 85, de 11 de Abril de 1990, e também no Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 24, de 10 de Março de 1990, págs. 923 e segs.; a mesma alínea foi, porém, eliminada na versão do texto final aprovada e revista pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, in Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 10, de 22 de Novembro de 1990, pág. 170-(6)]. Daí que não fosse a questão objecto de discussão no plenário da Assembleia da República.
17. É altura de resolver a primeira questão de constitucionalidade que foi posta pelo Procurador-Geral da República.
Remontando aos trabalhos preparatórios da Lei nº
39/80, de 5 de Agosto, que aprovou o primeiro estatuto político-administrativo dos Açores (supra, II, nº 11), importa determinar qual o sentido normativo do art. 27º (corresponde ao actual art. 33º do estatuto revisto em 1987), ao elencar, a título exemplificativo, diferentes matérias de interesse específico regional.
Poderá esse preceito ser interpretado 'em conformidade com a Constituição', como foi preconizado pelos Deputados E e D?
Recorda-se que tal 'interpretação conforme' preconizava o entendimento de que, entre as diferentes matérias reputadas de interesse específico regional, havia algumas da competência legislativa dos
Órgãos de Soberania, razão por que, relativamente a elas, se havia de entender que o legislador apenas impunha o dever de audição dos órgãos regionais, por banda dos Órgãos de Soberania.
Importa referir que os arts. 26º e 27º do Estatuto de 1980 (e as considerações que se fizerem valem igualmente para os arts. 32º e 33º do Estatuto revisto de 1987) se acham numa relação de conexão de sentido indesmentível. O primeiro desses artigos estabelecia que competia à então denominada Assembleia Regional '[l]egislar, dentro dos limites constitucionais, sobre matérias de interesse específico para a Região que não estejam reservadas à competência própria dos Órgãos de Soberania' [alínea c) do nº 1, reproduzindo o disposto no art. 229º, alínea a), da Constituição, versão de 1982], definindo o nº 2 do mesmo artigo, 'para os efeitos da alínea c) do número anterior', as noções de leis gerais da República ('aquelas cuja razão de ser envolva a sua aplicação, sem reservas, a todo o território nacional' - cfr. art. 115º, nº 4, da Constituição, norma introduzida pela primeira revisão constitucional) e de matérias não reservadas à competência dos Órgãos de Soberania ('as que não estejam atribuídas à competência exclusiva de cada um deles, bem como as que lhes não sejam especialmente atribuídas pela Constituição'). Por seu turno, o art. 27º encerrava uma enumeração não taxativa das matérias de interesse específico para a Região, enunciação que seguramente haveria de valer para a aplicação da alínea c) do nº 1 do art. 26º do Estatuto de 1980 ou de idêntica alínea e número do art. 33º do Estatuto vigente.
Mas importa referir também que o dever de audição dos órgãos de governo regional por parte dos Órgãos de Soberania e o direito de pronúncia daqueles aparece regulado no título IV do estatuto de 1980 (arts. 58º a 62º, substituídos pelos arts. 72º a 76º do Estatuto de 1987). No art. 58º, nº
1, estabelecia-se que 'a pronúncia da Assembleia Regional sobre projectos e propostas de lei apresentados à Assembleia da República e relativos a questões da competência desta que respeitem à Região' incidiria 'sobre matérias de interesse específico como tais definidas no artigo 27º' e efectuar-se-ia no prazo máximo de trinta dias, se o Plenário estivesse em funcionamento, ou de sessenta dias, se o não estivesse (cfr. art. 72º, nº 1, do Estatuto revisto, remetendo para o art. 33º, nos mesmos termos). No mesmo título regulava-se ainda a celebração de protocolos de colaboração permanente sobre certas matérias de interesse comum ao Estado e à Região enunciados em diferentes alíneas(art. 60º, substituído pelo art. 74º do Estatuto revisto em 1987), elencando-se igualmente
, a título exemplificativo, 'matérias de direito internacional, geral ou comum, respeitando directamente à Região, para efeitos do artigo anterior' (art. 61º do Estatuto de 1980, artigo a que corresponde hoje o art. 75º do Estatuto revisto em 1987).
Ora, tendo em conta o que acaba de referir-se, não parece que a circunstância de as matérias elencadas no art. 33º da versão em vigor do Estatuto relevarem também para o exercício do direito de pronúncia da Região sobre a legislação da República respeitante a essa Região ou às Regiões Autónomas em geral (cfr. art. 231º, nº 2, da Constituição) seja susceptível de afastar qualquer juízo de inconstitucionalidade, através de uma interpretação conforme à Constituição, como a preconizada pelo Deputado E no debate parlamentar sobre a proposta de Estatuto de 1980, atrás referida.
De facto, o art. 33º, alínea mm), do Estatuto revisto aponta, em primeira linha, para a densificação do conceito de 'interesse específico', tal como se acha previsto no art. 229º, nº 1, alínea a), da Constituição (norma que se encontra vazada no art. 32º, nº 1, alínea c), do mesmo Estatuto). Trata-se da densificação de uma norma de atribuição da competência legislativa à Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Não se vê, por isso, como seja possível interpretar essa norma de forma restritiva - se não, de forma abrogante - em conformidade com a Constituição, em termos de a mesma valer apenas para efeitos do exercício do dever de audição dos órgãos regionais por parte dos órgãos de Soberania.
18. Este entendimento implicará, então, a inevitabilidade de um juízo de ilegitimidade constitucional sobre a norma da alínea mm) do art. 33º do Estatuto Político-Administrativo, na revisão de 1987?
Responde-se negativamente a tal questão.
Na verdade, importa chamar a atenção para o teor da norma constante dessa alínea. Trata-se de uma norma que integra, densificando, uma outra norma de competência legislativa (e uma norma de imposição do dever de audição dos órgãos regionais, por força da remissão nos termos descritos), com a natureza de uma cláusula geral, densificação que utiliza um conceito jurídico relativamente indeterminado ('manutenção da ordem pública'). Acresce que a referida norma de competência da alínea a) do nº 1 do art. 229º da Constituição confere um poder de legislar, às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, condicionado a que sejam observadas a Constituição e as leis gerais da República, a que se trate de uma matéria de interesse específico e a que tal matéria não esteja reservada à competência própria dos órgãos de Soberania (poderá falar-se, a propósito, de requisitos ou limites negativos, a par de um requisito positivo, o da existência de interesse específico).
19. G chama a atenção para esta técnica de atribuição de competências da Constituição portuguesa nos seguintes termos:
'A CRP adoptou, como técnica principal de atribuição de competências às regiões autónomas, o sistema de cláusula geral. Em vez de proceder à tipificação de situações em que é lícito os poderes regionais operarem, optou pela formulação de um critério valorativo: o interesse específico para a região em causa. Definir significará, nesse contexto, determinar ou concretizar situações que em abstracto possam conformar-se com a valoração ínsita na cláusula geral, i.e., situações que, pela sua natureza, sejam susceptíveis de se revestirem de interesse específico para uma determinada região [...]. Consequentemente, a enumeração dessas situações não é exaustiva nem dispensa uma valoração concreta.
Ela tem um carácter indiciário, ao significar o reconhecimento, por parte do Estado (uma vez que os estatutos político-administrativos são aprovados por actos legislativos do Estado), da hipotética especificidade regional de certas situações.
Daqui não se pode inferir que um DLR que verse matéria qualificada no respectivo estatuto seja automaticamente considerada como tratando matérias de interesse específico; ou que uma Lei ou um Decreto-Lei sobre uma dessas matérias não seja uma LGR. O interesse específico e as LGR têm de ser sempre apreciadas em concreto [...]' (Elementos para o Estudo das Relações entre as Actos Legislativos do Estado e das Regiões Autónomas no Quadro da Constituição vigente, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXXIII, nºs 1 e 2, Janeiro/Junho de 1991, pág. 181; vejam-se, igualmente, Maria Lúcia Amaral, Die autonomem Regionen - Azoren und Madeira nach der portugiesischen Verfassungsrechtsprechung, in Deustch-Lusitanische Rechtstage, Baden-Baden,
1993, págs. 117 e segs., texto republicado com desenvolvimento em Questões Regionais e Jurisprudência Constitucional, in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, sem data, págs. 511 e segs.; J.M. de Albuquerque Calheiros e Rui Medeiros, As Regiões Autónomas e a Aplicação das Directivas Comunitárias, in Direito e Justiça, VII, 1993, págs 486 e segs., autores que traçam uma panorâmica da doutrina portuguesa sobre a eventual existência de uma reserva legislativa regional).
20. Esta afirmação de que a enumeração estatutária de matérias de interesse específico é indiciária tem sido aceite repetidas vezes pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora utilizando uma formulação algo diversa - de facto, essa jurisprudência aponta para a necessidade de aferir sempre a matéria em causa pelos preceitos constitucionais relevantes, referindo-se mesmo ao carácter de presunção abstracta de cada uma das categorias da enumeração, ilidível caso a caso (cfr., nomeadamente, os acórdãos nºs 42/85, 57/85, 164/86, 326/86, 308/89 e 139/90, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional vols. 5º, págs. 181 e segs, mesmo volume págs. 71 e segs., 7º volume, págs. 219 e segs, 8º volume, págs. 63 e segs., 13º volume, tomo II, págs. 899 e segs., 16º vol. págs. 199 e segs., respectivamente. Sobre esta jurisprudência, vejam-se, além dos autores citados, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição cit., págs. 853 e segs.; J.L. Pereira Coutinho, Lei Regional cit. in Dicionário cit., V., págs. 404 e segs.
404 e segs, com apreciação crítica da jurisprudência do Tribunal Constitucional).
No citado acórdão nº 42/85, o Tribunal Constitucional teve ocasião de indicar como mero 'critério de orientação interpretativa' a formulação de que se poderiam tipicizar 'como de interesse específico das regiões aquelas matérias que lhes respeitam exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento por ali assumirem peculiar configuração'
(4.1.1.).
E, no acórdão nº 326/86, afirmou-se o seguinte:
'É também irrelevante que o Estatuto da Região Autónoma dos Açores (Lei nº
39/80, de 5 de Agosto) inclua, no seu artigo 27º, alínea m), a segurança social entre as matérias de interesse específico para a Região.
É irrelevante, porque - como já se escreveu no citado Acórdão nº
164/86 - daí não decorre que a legislação regional haja de ter-se por conforme à Constituição.
É que - acrescentou-se então - «desde logo e em primeiro lugar, o estatuto haverá sempre, ele próprio, de ser interpretado de modo a não entrar em conflito com a Constituição. Constituição que constitui também, como se viu, um limite à actuação dos órgãos legislativos regionais».
Uma medida legislativa regional não pode, assim, haver-se como detentora de credencial constitucional bastante tão-só porque ela versa sobre matéria que o respectivo estatuto considera como sendo de interesse específico para a região.'
Também no acórdão nº 220/92 (in Diário da República, I Série-A, nº 172, de 28 de Julho de 1992), houve ocasião de reafirmar este entendimento sedimentado da jurisprudência constitucional:
'O que deva entender-se por interesse específico regional merece-nos particular atenção mas não é de resposta fácil nem pacífica [...].
A Constituição furtou-se à sua conceituação ou a tipificar situações, optando por uma formulação vazia, a densificar a partir da ratio do regime político-administrativo por ela própria criado para as Regiões Autónomas e consubstanciada, de certo modo, no seu artigo 227º.
Assim, respeitando o valor intangível da integridade de soberania do Estado, a natureza unitária deste (cfr. o artigo 6º da CR)
e o quadro constitucional global, o interesse específico habilitador da produção legislativa regional passa não só pela singularidade da matéria em causa, indiciadora de uma exclusividade específica da Região, como o instituto da colonia da Madeira, mas também pela existência nessa Região, com especial intensidade, de uma especificidade que justifique o seu tratamento em termos distintos dos aplicáveis ao restante território nacional [...].
Recorre-se, por conseguinte, a um critério valorativo que não se basta com uma enumeração de situações, por extensa que seja, contida no respectivo Estatuto político-administrativo, nem significa que a sua concretização no elenco seja casuisticamente determinante.
Na verdade, constitui jurisprudência deste Tribunal não poder uma dada medida legislativa regional considerar-se constitucionalmente credenciada tão-só pelo facto de versar sobre matéria que o respectivo estatuto considere como sendo de interesse específico para a Região, pois é, ainda, necessário que essa matéria lhe respeite exclusivamente ou que nela exija tratamento especial por aí assumir peculiar configuração (cfr. por todos, os já citados Acórdãos nºs. 164/86 e 326/86).
O interesse específico tem sempre de ser apreciado em concreto, ao que corresponde a emissão de um juízo de valor' (nº 1.2).
E no acórdão nº 235/94 (in Diário da República, I Série-A, nº 101, de 2 de Maio de 1994) reafirmou-se que:
'... a mera inclusão de matéria regulada no Estatuto da Região constitui, segundo a jurisprudência do Tribunal, simples presunção abstracta, ilídivel, caso a caso, pela demonstração da inexistência de um interesse específico [...].
Uma medida legislativa regional não pode, assim, haver-se como detentora de credencial constitucional bastante tão-só pelo facto de versar matéria que o respectivo Estatuto considera como sendo de interesse específico para a Região. Necessário será ainda - e sempre - que esta matéria respeite exclusivamente a essa Região ou que nela exija um tratamento especial, por aí assumir especial configuração [...]'. (nº 8)
21. Diferentemente do comum das espécies jurisprudenciais referenciadas directa ou indirectamente, no caso sub judicio o Tribunal Constitucional não está a apreciar a constitucionalidade de normas emanadas dos órgãos regionais, no exercício de poderes legislativos fundados na existência de interesse específico da região em causa, mas antes a apreciar ex professo uma norma constante do respectivo Estatuto Político-Administrativo que define uma matéria considerada de interesse específico da Região.
Como é evidente, pode o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma estatutária, se esta violar a Constituição, não podendo ser interpretada em conformidade com a mesma Constituição (veja-se o passo atrás transcrito do acórdão nº 164/86; e o recente acórdão nº 637/95, publicado in Diário da República, I S-A, nº 296, de 26/12/95).
No caso sub judicio, porém, não é possível ao Tribunal Constitucional afirmar em termos absolutos que a manutenção da ordem pública nunca pode ser matéria de interesse específico regional, em termos de não poder ser emitida validamente legislação regional na matéria.
É seguro que seria inconstitucional um decreto legislativo regional que pretendesse criar, por exemplo, comandos regionais da Polícia de Segurança Pública, atento o disposto no art. 272º, nº 4, da Constituição. Como seguramente seriam inconstitucionais diplomas legislativos regionais que, a pretexto da manutenção da ordem pública, legislassem, em matéria de direitos, liberdades e garantias, atento o disposto no art. 168º, nº
1, alínea b), da Constituição. Nesses casos, a existir, porventura, interesse específico, funcionaria como impedimento o requisito negativo da reserva de competência própria dos órgãos de soberania (sobre o entendimento maioritário da jurisprudência do Tribunal quanto a esse requisito negativo, vejam-se por todos, Pedro Machete, estudo cit., págs. 191 e segs., e António Vitorino, Os Poderes Legislativos das Regiões Autónomas na Segunda Revisão Constitucional, in Legislação, Cadernos de Ciência de Legislação-INA, nº 3, 1992, págs. 30-31 e notas 12 e 13).
Não é, porém, possível afirmar categoricamente que algumas tarefas legislativas não possam ser exercidas pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores quando incidem sobre matérias de interesse específico que possam reconduzir-se ainda, de forma periférica, à noção de manutenção da ordem pública.
Como se trata de um conceito relativamente indeterminado (o de manutenção de ordem pública) seria, no mínimo, temerário fulminar a norma estatutária impugnada, com base na violação do nº 4 do art.
272º da Constituição, ou com base no disposto no art. 232º, nº 3, do mesmo diploma.
Daí o juízo de que a norma em causa não possa ser, num plano puramente abstracto, necessariamente desligada das interpretações e concretizações que o próprio legislador regional venha a operar, tida como inconstitucional.
III
22. Resta apreciar a questão de inconstitucionalidade da segunda norma impugnada pelo Procurador-Geral da República, norma constante de um diploma normativo regional.
Recorda-se que se trata da norma da alínea n) do art. 3º do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/A, de 5 de Janeiro.
Dispõe o art. 3º do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/A:
'O Secretário Regional das Finanças, Planeamento e Administração Pública exerce a sua competência legal nas seguintes matérias:
------------------------------------------------
n) Ordem Pública.'
Trata-se de um diploma legislativo regional que reestrutura a orgânica do Governo regional dos Açores, proveniente da respectiva Assembleia Legislativa Regional, visto que, diferentemente do que sucede com o Governo da República, os governos regionais carecem de competência legislativa, apenas lhes sendo permitido emitir normas regulamentares relativamente a diplomas legislativos regionais (art. 234º, nº 1, da Constituição). Importa referir que, no Decreto Legislativo Regional nº 36/88/A, de 28 de Novembro, cabia ao então Secretário Regional da Administração Interna exercer a sua competência legal em matéria de 'ordem pública e protecção civil' [art. 5º, alínea g)].
A norma impugnada prevê, assim, que certo membro do governo regional exerça 'a sua competência legal' em matéria de ordem pública.
Importa acentuar que esta norma pressupõe uma competência legal atribuída por outros diplomas com força de lei (cfr. art.
115º, nº 1, da Constituição), com a consequência de que, não existindo tais diplomas, este membro do governo regional não poderá exercer, obviamente, qualquer competência em matéria de 'ordem pública'. Não poderá, por isso, considerar-se que esta norma, em si mesma, dispõe de um grau de adequada densificação que a torne determinável em termos constitucionais, dado o seu carácter puramente remissivo.
Resulta do referido que a norma em causa é relativamente neutra, dado pressupor uma ou várias normas legais - presentes ou futuras - atributivas de competência.
Essa competência - a existir - não poderá ser de natureza legislativa, como se referiu, mas de mera natureza executiva, sendo certo que a Constituição prevê que as regiões autónomas exercem 'poder executivo próprio' [art. 229º, nº 1, alínea g); sobre esta alínea, veja-se o acórdão nº
192/88 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos, 12º volume, págs. 257 e seguintes].
Em matéria de segurança interna, a Lei nº 20/87, de 12 de Junho, prevê a participação dos presidentes de governo regional - a par dos ministros da República - nas reuniões de um órgão de 'auscultação e consulta em matéria de segurança interna', o Conselho Superior de Segurança Interna (art.
11º, nº 2), 'que tratem de assuntos de interesse para a respectiva região'.
23. Não se vê que esteja afectada de inconstitucionalidade a norma referida. A existir inconstitucionalidade, a mesma afectaria directamente as normas legais de atribuição de competência em matéria de ordem pública, para as quais remete a norma impugnada.
Pode conceber-se que, a haver audição da Região Autónoma dos Açores pelos órgãos de Soberania em matéria de política de segurança interna, seja o referido membro do governo quem deve elaborar os projectos de parecer na matéria, embora a competência para a aprovação do parecer caiba ao próprio governo regional [art. 4º, nº 2, alínea a), e nº 3, do Decreto Legislativo Regional nº 36/88/A].
Não se considera, por isso, que a norma seja inconstitucional, por não se vislumbrar um fundamento claro para tal conclusão. De novo se pode admitir que algumas competências em matéria de ordem pública, nomeadamente em matéria consultiva, possam ser atribuídas aos órgãos regionais, sem violação do disposto nos arts. 232º, nº 3, e 272º, nº 4, da Constituição.
IV
25. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da alínea mm) do artigo 33º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na versão da Lei nº 9/87, de 26 de Março, nem da alínea n) do artigo 3º do Decreto Legislativo Regional nº
1/93/A, de 5 de Janeiro.
Lisboa, 16 de Abril de 1996 Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Messias Bento Fernando Alves Correia Bravo Serra Vitor Nunes de Almeida Luis Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei vencido, pelas razões que passo, sumariamente, a enunciar:
1. Quanto à norma do artº 33º, al. mm) do Estatuto
Legislar sobre «manutenção da ordem pública» significa necessariamente, a meu ver, legislar sobre «direitos, liberdades e garantias», na medida em que a definição dos meios e formas em que se pode traduzir a referida manutenção da ordem pública - designadamente, a determinação legislativa das denominadas medidas de polícia - implica uma correlativa definição de limites ou de restrições ao exercício dos direitos, liberdades e garantias.
Assim sendo, nunca a matéria em causa pode ser tida como de interesse específico da Região, uma vez que constitucionalmente reservada à competência de um órgão de soberania: a Assembleia da República, por via do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição.
2. Quanto ao artº 3º, al. n), do Dec. Leg. Reg. 1/93/A
O exercício de poderes executivos em matéria de ordem pública, quando se atribua a este conceito de ordem pública o sentido que lhe é conferido pelo acórdão que obteve vencimento - sentido que também lhe atribuo -, implica necessariamente, a meu ver, a possibilidade de dispor de uma força de polícia própria ou, então, de recorrer a forças policiais alheias, com a faculdade de, no mínimo, lhes dar ordens ou instruções.
Ora, essa possibilidade encontra-se vedada pela nossa Lei Fundamental, que expressamente determina, no nº 4 do seu artigo 272º, que a organização de cada uma das forças de segurança é «única para todo o território nacional».
Consequentemente, votei que se declarasse a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de ambas as normas impugnadas. Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto do Exmº Cons. Luis Nunes de Almeida) José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que a matéria da manutenção da ordem pública é reservada pela Constituição à competência própria dos órgãos de soberania, pelo que mesmo que se admitisse com o acórdão que a manutenção da ordem pública pode ser, em alguns casos, matéria de interesse específico regional, sempre as normas das alíneas mm) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e n) do art.3º do Decreto Legislativo Regional nº1/93/A seriam organicamente inconstitucionais, por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 229 da Constituição. É o que procurarei demonstrar a seguir, retomando, em parte, considerações feitas por mim anteriormente (declaração de voto no Acórdão nº 220/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22, pp 31 (73 ss.)).
1. Nos termos do nº 1 do artigo 234º da Constituição, é da exclusiva competência da assembleia legislativa regional o exercício das atribuições referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 229º, nomeadamente «legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não sejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania». Por outro lado, o nº
3 do artigo 115º da Constituição dispõe que 'os decretos legislativos versam sobre matérias de interesse específico para as respectivas regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo, não podendo dispor contra as leis gerais da República, sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 229º'. Esta última ressalva foi introduzida na revisão de 1989 e refere-se à possibilidade, criada pela revisão, de a Assembleia da República autorizar legislação regional de conteúdo determinado (nº 2 do artigo 229º) sem o limite de lei geral da República. Visou harmonizar o nº 3 do artigo 115º com a nova alínea b) do nº 1 do artigo 229º. Não tem aplicação no caso em apreço.
Dos preceitos transcritos decorre imediatamente que a competência legislativa da assembleia legislativa regional para legislar através do decretos legislativos regionais tem um limite positivo, que é tratar-se de matéria de interesse específico para a região e dois outros limites negativos: primeiro, que tais matérias não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania com competência legislativa, isto é, à Assembleia da República e ao Governo; segundo, que o decreto legislativo respeite a Constituição e as leis gerais da República.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem justamente acentuado a relativa independência de cada um destes limites quanto aos outros. Em particular, como desde logo se deduz da oração relativa da alínea a) do artigo 229º e da conjuntiva do nº 3 do artigo 115º, que introduzem como restrição adicional ao interesse específico a inexistência de reserva de competência legislativa nacional, deve notar-se que 'onde esteja uma matéria reservada à competência própria dos órgãos de soberania, [...] não há interesse específico para as regiões que legitime o poder legislativo das regiões autónomas' (Acórdãos nºs. 160/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º-II, p.
900; 280/90, Diário da República, I Série-A, de 2-11-91, p. 5; 92/92, Diário da República, I Série-A, de 7-4-1992, p. 1650, e 212/92, de 4-6-1992, inédito). Compreende-se que assim seja, uma vez que a autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado e se exerce no quadro da Constituição (nº 3 do artigo 227º) e que Portugal é um Estado unitário (nº 1 do artigo 6º). Ora o carácter unitário do Estado manifesta-se na unidade e superioridade hierárquica da competência dos órgãos de soberania do Estado relativamente a todo o território. A Assembleia da República e o Governo podem, portanto, legislar sobre todas as matérias, salvo, para cada um destes órgãos, as reservadas ao outro (alínea d) do artigo 164º e alínea a) nº 1 do artigo
201º), pelo que não há matéria, mesmo que seja de interesse específico exclusivo de uma região, que se exima, ao menos concorrencialmente, da competência legislativa dos dois órgãos de soberania. Isto não impede, é claro, que a Constituição garanta zonas de intervenção regional na legislação geral da República, através da iniciativa estatutária e da legislativa (alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 209º) e de direitos de participação e de pronúncia (alínea q), r), s) e u) do artigo 229º).
Estas razões valem para todos os limites negativos à relevância do interesse específico para a atribuição de competência legislativa (inclusivamente os que não constam do artigo 229º, mas do artigo
230º, e que aqui não importam), mas têm maior relevo quanto às matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, em que não se admite
(alíneas a) e b) do artigo 229º) normação regional primária.
2. Ora deve entender-se que a legislação sobre manutenção da ordem pública está implícitamente reservada ao legislador nacional. Nas palavras do Acórdão nº 268/88, Acórdãos, 12, pp.441 (460),'de acordo com a práxis decisória do Tribunal Constitucional, as matérias reservadas
à competência legislativa própria dos órgãos de soberania não se circunscrevem
às que a CRP expressamente reserva à Assembleia da República (cf. em especial os artigos 164º, 167º e 168º da CRP) e ao Governo (cf. em particular o artigo 201 da CRP), abrangendo ainda as matérias em relação às quais a CRP, implicitamente embora, exige a intervenção do legislador nacional (Acórdãos nºs 82/86, 164/86 e
326/86, Diário da República, 1ª série, nºs 176, de 2 de Abril de 1986, 130, de 7 de Junho de 1986, e 290, de 18 de Dezembro de 1986)'.
A manutenção de ordem pública é nuclearmente conseguida através das actividades de prevenção de crimes, especialmente de crimes contra a ordem e tranquilidades pública, que incumbem segundo a Constituição (artigo 272º) à polícia, e especialmente às forças de segurança. O legislador de 1980, ao utilizar o conceito da ordem pública, tinha decerto em mente a prevenção dos crimes contra a ordem e tranquilidade públicas do Código Penal em vigor (Título III, com os seguintes capítulos : I - Reuniões criminosas, sedição e assuada; II - Injúrias e violências contra autoridades públicas, resistência e desobediência; III - Da tirada e fugida de presos e dos que não cumprem as suas condenações; IV - Dos que acolhem malfeitores; V - Dos crimes contra o exercício dos direitos políticos; VI - Das falsidades; VII - Da violação das leis sobre inumações e da violação dos túmulos e dos crimes contra a saúde pública; VIII - Das armas, caças e pescarias defesas; IX - Dos vadios e mendigos, e das associações de malfeitores; X - Dos jogos, lotarias, convenções ilícitas sobre fundos públicos e abusos em casas de empréstimos sobre penhores; XI - Do monopólio e do contrabando; XII - Das associações ilícitas; XII - Dos crimes dos empregados públicos no exercício de suas funções). Certo que nas matérias referidas a Constituição de 1976 entende não só prevenir crimes como contra-ordenações e cometeu essa prevenção não só às polícias, como às entidades aplicadoras do direito penal e de mera ordenação social, ao Provedor de Justiça, orgãos administrativos, etc. Mas a manutenção da ordem pública como bem colectivo multifacetado sempre foi função central das polícias e especialmente daquelas forças policiais que se dizem de segurança. Ora quanto a estas a Constituição estabeleceu explicitamente que 'a lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional' (artigo 272º nº4). Esta reserva de competência do legislador nacional deve considerar-se extensiva a toda a matéria da manutenção da ordem pública, dada a existência de reservas semelhantes em matéria de segurança interna e garantia dos direitos dos cidadãos (artºs 164º alíneas g),m), 167º, alínea e), 168º, alíneas b), c), d), r)).
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei vencida quanto à solução perfilhada no Acórdão relativamente às duas questões de constitucionalidade propostas: I
Assim, no que se refere à norma prevista na alínea mm) do artigo 33º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (aprovado pela Lei nº 39/80, de 15 de Agosto, e revisto pela Lei nº
9/87, de 26 de Março), entendo que se verifica inconstitucionalidade, em face dos artigos 229º, nº 1, alínea a), e 272º, nº 4, da Constituição, pelas seguintes razões:
1ª - Tal norma, para uma interpretação jurídica razoável, refere-se aos significados dominantes (ou tipicamente expressivos) do conceito de ordem pública em que sobressai a ordem pública como preservação de segurança interna, isto é, como o conjunto das condutas que a autoridade pública poderá realizar e das condutas que são exigíveis aos particulares para criar um clima de segurança em torno dos bens jurídicos e de respeito pelos direitos fundamentais.
2ª - Os significados laterais de ordem pública, em que não haveria possibilidade de interferência com o espaço jurídico de direitos fundamentais, não só são difíceis de apreender como também ultrapassam a intenção legislativa, que não pretende utilizar um tal conceito no seu sentido periférico, sobretudo quando conjugado com a palavra 'manutenção'.
3ª - Assim, adoptada a interpretação jurídica derivada do sentido comum das palavras, a norma do artigo 33º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores define como de interesse específico regional a manutenção da ordem pública, atribuindo, consequentemente, competência ao órgão legislativo regional para legislar sobre tal matéria. Ao fazê-lo, inclui no interesse específico regional uma área reservada à competência própria dos órgãos de soberania, nos termos dos artigos 272º, nº 4,
168º, nº1, alínea b), e 201º da Constituição.
4ª - Por outro lado, a ordem pública nunca poderá ser enquadrada no conceito constitucional de interesse específico das regiões, tal como ele vem sendo interpretado pela jurisprudência constitucional - isto é, pela coincidência de singularidade regional da matéria e de intensidade da especificidade justificativa do seu tratamento em termos distintos dos aplicáveis ao restante território nacional (cf. Acórdão nº 220/92, D.R., I Série-A, de 28 de Julho de 1992), não cabendo na norma constitucional do artigo
229º, nº 1, alínea a), da Constituição.
Em face disto, não considero a norma estatutária compatível com a Constituição. A sua indeterminação ou pouca densificação é, aliás, reveladora da fraca especificidade regional da matéria em causa e da inexistência de justificação para atribuir aos órgãos legislativos regionais competência naquele domínio.
II
Também me parece inconstitucional a norma constante da alínea n) do artigo 3º do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/A, de 5 de Janeiro.
As competências executivas previstas para o Secretário Regional de Finanças, Planeamento e Administração Pública, em matéria de ordem pública não se fundamentam nos poderes executivos próprios que a Constituição atribui às regiões autónomas [artigo 229º, nº 1, alínea g), da Constituição], os quais se justificam pela prossecução de específicos interesses regionais, que não se vislumbram no que respeita à manutenção da ordem pública
(tanto, positivamente, nas dimensões assinaladas de singularidade e intensa especificidade como ainda, negativamente, na dimensão da universalidade das relações Estado-cidadão, com que a manutenção da ordem pública interfere).
Por outro lado, a definição de políticas de segurança interna, dos modelos organizatórios das respectivas forças e do exercício de poderes directivos nessa área resulta unitária, para todo o território nacional, do artigo 272º, nº 4, da Constituição. Deste modo, a atribuição de competência executiva em matéria de ordem pública não é compatível com o sentido normativo típico de tal norma de competência.
A solução perfilhada pelo Acórdão, partindo do princípio de que a referida norma de competência será neutra, não ferindo directamente a Constituição, desconhece que a norma de competência cumpre, igualmente, uma função de autorização de normas especificadoras do conteúdo da competência legal, que só poderão ser contrárias à Constituição. As competências a que o Acórdão se refere, como exemplo de competência executiva concordante com a Constituição, no âmbito da participação do Governo Regional nas reuniões do Conselho de Segurança Interna, não exemplificam uma competência executiva, por se tratar de uma função meramente consultiva. Por outro lado, o sentido que é dado ao interesse regional, no contexto de tal função consultiva, não se pode converter numa verdadeira especificidade de política de segurança interna. Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto
1. Votei vencida. A norma do artigo 33º, alínea mm), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, inclui a
'a manutenção da ordem pública' entre as matérias de 'interesse específico para a Região'.
O único domínio constitucionalmente relevante para a definição das matérias de interesse específico é o da competência legislativa da Assembleia Legislativa Regional. Aferir da constitucionalidade daquela norma é, assim, aferir da legitimidade da Região para legislar naquela matéria.
A tese vencedora empreende uma compatibilização impossível entre o conceito de 'ordem pública' e o conceito de 'interesse específico regional'. Essa compatibilização é impossível porque a ordem pública se liga inextrincavelmente aos direitos fundamentais e ao seu discurso de universalidade.
Na metódica jurídico-constitucional de definição de uma coexistência de liberdades, a ordem pública está no 'contraponto' da força expansiva dos direitos fundamentais. Ela constitui-se como dialéctica delimitadora e limitadora dessa força expansiva. A ordem pública é mesmo uma das categorias que densifica sem controvérsia dogmática a directiva legitimadora das restrições de direitos que se contém no artigo 18º, nº 2, da Constituição:
'a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos'. A ordem pública tematiza, assim, os direitos fundamentais no momento mais dramático das vicissitudes desses direitos: o das restrições. E justamente neste lugar do artigo 18º, a Constituição apressa-se, para aquém do artigo 168º, nº 1, alínea b), a exigir leis de carácter geral e abstracto. Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem mostra que a ordem pública é indubitavelmente uma categoria 'cativa' do discurso dos direitos fundamentais
(cf. artigo 29º, nº 2).
E, na verdade, a ordem pública tem que ver com um processo de compatibilização de acções em conflito e faz por isso apelo aos princípios universais de justificação dos limites dessas acções. Ela liga-se à função essencial do Direito e, em particular, à função essencial do Direito Constitucional. Porque paradigmaticamente articulada com os princípios substantivos de uma moral universal legitimadora, a ordem pública opõe-se, por natureza, à dimensão 'particular' do interesse específico da Região.
Aqui não valem, pois, argumentos como os que se intentam na tese vencedora, de densificação da ideia de 'ordem pública' com arrimo no sentido que lhe atribuem os lugares comuns da legislação ordinária. A questão da 'ordem pública' é, em primeira linha, uma questão que se delineia nas próprias malhas da Constituição. O conceito de ordem pública é prenhe de valorações múltiplas que radicam nos princípios materiais constitucionalmente conformadores do Estado de direito, da liberdade e da proporcionalidade. Estes princípios prescindem mesmo do apoio em argumentos de 'unidade de organização das forças de Segurança'. Esses argumentos, que se derivam do artigo 272º da Constituição, entram aqui, quando muito, numa relação de complementaridade ou subsidiariedade.
Lógica e axiologicamente, a ordem pública, como problema do 'universal', opõe-se à ideia de interesse específico da Região, como problema do 'particular'. O domínio constitucional da ordem pública é do artigo
168º nº 1, alínea b), não o do artigo 229º, nº 1, alínea a), da Constituição.
A tese vencedora deixou para os dados da vida as concretizações da ideia de ordem pública que diz que cabem na legislação das Regiões. Demitiu-se, com isso, de uma densificação que ao próprio controlo de constitucionalidade cabia. E, por essa via, cinde o incindível: cria um núcleo e uma periferia para a ideia de ordem pública. Mas, na Constituição, essa ideia tem uma dimensão única, absoluta.
2. A segunda norma, do artigo 3º, alínea n), do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/A, de 5 de Janeiro, determina que o Secretário Regional das Finanças, Planeamento e Administração Pública exerce a sua competência legal em matéria de ordem pública.
Ao contrário do que se afirma no acórdão, não seria a natureza executiva da competência que aí está prevista a afastar qualquer hipótese de inconstitucionalidade. É que o 'poder executivo próprio' das Regiões tem os limites da Constituição e, pois, os limites que a Constituição estabelece para a produção das normas legais que fundam esse poder.
Ainda ao contrário do que se afirma no acórdão, tenho para mim que a eventual inconstitucionalidade da norma em análise, pela razão de ser uma norma remissiva, não se comunicaria necessariamente às normas para que remete. Tudo depende do nível hierárquico e do estatuto constitucional destas normas.
Admito que a validade jurídico-constitucional da norma do artigo 3º, alínea n), do Decreto Legislativo Regional nº1/93/A está estreitamente dependente de uma sua inequívoca rarefacção de conteúdo. Em nome de um princípio de 'conservação normativa', essa norma não deve considerar-se inconstitucional - não para lhe assinalar uma dimensão virtual de poder-dever de consulta, que não é essa a vocação natural da sua estrutura deôntica, mas para lhe reconhecer uma função de 'organização-racionalização' de competências na orgânica do Governo Regional, que seja aberta a um sistema legal sobre a ordem pública que verdadeiramente caiba na Constituição!
José Manuel Cardoso da Costa (com a seguinte declaração:
-quanto à norma da alínea mm)do artigo 33º do Estatuto, não creio que seja viável ou verosímil a ocorrência de situação ou hipóteses que, cabendo no conceito de 'manutenção de ordem pública' (tal como/e bem) entendido no acórdão, possam vir a revertir-se de 'interesse específico regional', em termos de ser possível legislar regionalmente sobre elas; - quanto
à norma da alínea n) do artigo 3º do Decreto Legislativo Regional, perfilho o teor da declaração de voto, a esse respeito, do Exmº Conselheiro Vice-Presidente).