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Proc. nº 361/95 ACÓRDÃO Nº 962/96 Plenário Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - 1 - O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional vem requerer, nos termos do artigo 281º, nº 3, da Constituição, e do artigo 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº
387-B/87, de 29 de Dezembro, e do artigo 1º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº
391/88, de 26 de Outubro, na parte em que vedam a concessão de apoio judiciário, na forma de patrocínio judiciário, aos estrangeiros e apátridas que, havendo impetrado asilo político em Portugal, pretendam impugnar contenciosamente a decisão administrativa que o denegou.
Explicitando que por essa dimensão das normas, entre si conjugadas, se abrangem os estrangeiros e apátridas que não detêm autorização de residência válida em Portugal ou aqui não residem há pelo menos um ano, o Procurador-Geral Adjunto conclui lembrando que as mesmas normas, naquela dimensão, foram já julgadas inconstitucionais por violação dos artigos 13º, nº 1, 15º, nºs. 1 e 2,
20º, nº 1 e 268º, nº 4 da Constituição da República, entre outros, nos acórdãos nºs. 338/95, 339/95 [D.R., II Série, de 1-8-1995] e 340/95 [D.R., II Série, de
2-11-1995], de que junta cópia.
2 - O Primeiro-Ministro, notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, ofereceu o merecimento dos autos.
II - As normas e a fundamentação
As normas que aqui se constituem em objecto do pedido são, pois, as do artigo 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, sobre o acesso ao direito e aos tribunais, e do artigo 1º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº
391/88, de 26 de Outubro, que regulamenta o sistema de apoio judiciário e o seu regime financeiro.
A norma do artigo 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, dispõe assim:
'Artigo 7º
1 - ...
2 - Os estrangeiros e os apátridas que residam habitualmente em Portugal gozam do direito a protecção jurídica'.
E as normas do artigo 1º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 391/88:
'Artigo 1º
1 - Para efeito de protecção jurídica, a residência habitual de estrangeiros ou apátridas titulares de autorização de residência válida, a que se refere o nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, implica a sua permanência regular e continuada em Portugal, por período não inferior a um ano, salvo regime especial decorrente de tratado ou convenção internacional que Portugal deva observar.
2 - O estrangeiro a quem for concedido asilo ou que goze de estatuto de refugiado pode usufruir de protecção jurídica a partir da data da concessão do direito de asilo ou do reconhecimento do estatuto de refugiado'.
Destas normas e da sua relação de sentido resulta que a protecção jurídica, na forma de apoio judiciário, aos estrangeiros e apátridas que havendo pedido asilo em Portugal pretendem impugnar contenciosamente o acto da Administração que o denegou, não está universalmente garantida. E não está, porque ali se estabelecem duas condições de acesso - a de detenção de autorização de residência válida e a de permanência regular e continuada em Portugal por período não inferior a um ano 'salvo regime especial decorrente de tratado ou convenção internacional que Portugal deva observar', que, em si mesmas, consubstanciam uma restrição da incidência subjectiva daquela garantia. Os estrangeiros e apátridas que não preenchem aquelas condições, não têm acesso ao apoio judiciário na impugnação contenciosa do acto que lhes denegou asilo político.
Esta solução é inconstitucional, desde logo, porque por ela se desconstrói a efectividade do direito de asilo, garantido aos estrangeiros e apátridas, nos termos do artigo 33º, nº 6, da Constituição. A desejabilidade constitucional de realização do direito de asilo, que se radica nos valores da dignidade do homem, na ideia de uma República de 'indivíduos' e não apenas de
'cidadãos' e na protecção reflexa da democracia e da liberdade, seria claramente inconseguida aí onde à proclamação do direito apenas correspondesse o poder de impetrar o asilo junto da Administração sem garantia de controlo judicial.
A efectividade do direito de asilo exige, assim, decisivamente, o acesso ao apoio judiciário: exige-o em todos os casos de insuficiência económica, em ordem à concretização do direito ao tribunal.
Para mais, este direito é garantido a 'todos' pela Constituição. Os mandados da norma do artigo 20º, de asseguramento do acesso ao direito e aos tribunais, constituem mesmo a estrutura central da ordem constitucional democrática, que é ordem aberta à dimensão internacional dos direitos do homem.
Da centralidade no sistema constitucional da norma do artigo 20º, enquanto momento de defesa e enquanto momento de pretensão a uma actuação positiva do Estado, ou seja, do significado da tutela judicial como direito à garantia dos direitos, resulta que o acesso ao tribunal integra o núcleo irredutível do princípio da equiparação de tratamento entre nacionais e estrangeiros e apátridas, estabelecido no artigo 15º, nº 1, da Constituição.
Esse princípio de equiparação, se bem que susceptível de excepções a ditar pelo legislador (artigo 15º, nº 2), não pode ser limitado ao ponto de desvirtuar o estatuto dos estrangeiros constitucionalmente fixado (artigo 15º).
Esse estatuto assenta na dignidade do homem, como sujeito moral e sujeito de direitos, como 'cidadão do mundo'. Daí que seja a própria semântica do artigo 15º da Constituição a ditar os limites heterónomos da actuação legislativa (cf., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág.
135).
O direito à tutela judicial fixa, indubitavelmente, um desses limites.
Na situação em apreço, fixa-o tanto mais quanto se sabe que por detrás dessa tutela é verdadeiramente o direito de asilo que está em causa. E justamente a propósito deste direito, lembra Jorge Miranda que a sua garantia é um dos momentos inelimináveis do princípio da equiparação: 'Como cláusula geral, o nº 1 do artigo 15º aplica-se aí onde não sejam decretadas expressamente exclusões de direitos dos estrangeiros e estas não podem ser tais (ou tantas) que invertam o princípio (...). Designadamente no que concerne aos refugiados, não poderia a lei recusar-lhes tal soma de direitos que vulnerasse o próprio sentido da concessão do asilo' (Manual de Direito Constitucional, tomo III, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1994, pág. 142).
As normas do artigo 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, e do artigo 1º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 391/88, contrariam, assim, a dimensão universalista dos direitos do homem que está na ordem constitucional portuguesa. Afrontam as normas conjugadas dos artigos 33º, nº 6, 20º, nº 1, 268º, nº 4 e
15º, nº 1, da Constituição da República.
Foi também assim que concluiram os acórdãos nºs. 338/95, 339/95
[D.R., II Série, de 1-8-1995] e 340/95 [D.R., II Série, de 2-11-1995].
IV - Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, e do artigo 1º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 391/88, de 26 de Outubro, na parte em que vedam o apoio judiciário, na forma de patrocínio judiciário, aos estrangeiros e apátridas que pretendem impugnar contenciosamente o acto administrativo que lhes denegou asilo, por violação das normas conjugadas dos artigos 33º, nº 6, 20º, nº 1,
268º, nº 4 e 15º, nº 1, da Constituição da República.
Lisboa, 11 de Julho de 1996
Maria da Assunção Esteves Bravo Serra Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Luís Nunes de Almeida Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa