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Proc. nº 793/93
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. C... propôs, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, uma
acção emergente de contrato individual de trabalho contra CNN - Companhia
Nacional de Navegação, E.P., em Liquidação, pedindo que esta fosse condenada a
reconhecer um crédito do autor, no montante de 748.900$00, e que tal crédito
fosse incluído no mapa a que se refere o artigo 8º, nº 2, do Decreto-Lei nº
138/85, de 3 de Maio, para ser graduado no lugar que lhe competisse.
2. Por decisão de 12 de Janeiro de 1993, julgou-se
verificada a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria,
absolvendo-se a ré da instância.
3. Desta decisão interpôs o autor recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão de 30 de Junho de 1993, foi negado
provimento ao recurso, decidindo-se que o tribunal competente para conhecer da
causa, em razão da matéria, era o Tribunal Cível de Lisboa.
Na respectiva fundamentação acolheu-se a solução do
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 271/92 (Diário da República, II, de 23 de
Novembro de 1992), que julgou 'inconstitucional - por violação da alínea q) do
nº 1 do artigo 168º da Constituição da República, na versão de 1982 - a norma do
nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, interpretada no
sentido de que os tribunais comuns de que aí se fala são os tribunais cíveis,
quando estejam em causa créditos oriundos de relações laborais', mas desse juízo
de inconstitucionalidade deduziu-se que a questão de competência em razão da
matéria se deveria dirimir segundo o disposto no artigo 43º, nº 4, do
Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, que se entendeu não ter sido revogado pela
Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais). Esse
preceito, integrado no regime de liquidação de empresas públicas, atribuía
competência para conhecer pretensões dos credores aos 'tribunais comuns', que se
entendeu serem os tribunais de competência genérica ou os tribunais cíveis, onde
estes existissem, de acordo com a organização judiciária.
4. Desta decisão foi interposto pelo Ministério Público
o presente recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
'1 - Decidiu-se no douto Acórdão proferido nos presentes autos, que o
tribunal competente em razão da matéria para a presente acção é o tribunal
cível, no caso o tribunal cível de Lisboa.
2 - Fundamenta-se tal decisão, por um lado, numa interpretação
naquele sentido da norma ao caso aplicável: o nº 1 do art. 8º do Decreto-Lei nº
138/85, de 3-5, e, por outro lado, como que subsidiariamente (fls. 114 vº, na
esteira do decidido no douto Acórdão do STJ de 13-1-93), na
inconstitucionalidade do referido preceito.
3 - Contudo, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 271/92, no DR,
II Série, de 23-11-92, p. 11033, julgou inconstitucional a referida norma quando
interpretada no sentido de que os 'tribunais comuns' de que aí se fala são os
'tribunais cíveis', quando estejam em causa créditos oriundos de relações
laborais, como é o caso.
4 - Portanto, o douto Acórdão proferido nestes autos, ou aplicou
norma com uma interpretação já anteriormente julgada inconstitucional pelo
Tribunal Constitucional, situação integrável no disposto na alínea g) do nº 1 do
art. 70º da Lei nº 28/82, de 15‑11, ou se terá recusado a aplicar a mesma norma
com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, situação referida na
alínea a) daquele mesmo artigo e Lei.
5 - Conforme preceitua o nº 3 do art. 72º da mesma Lei nº 28/82, em
ambas as situações é obrigatório, para o Ministério Público, o recurso para o
Tribunal Constitucional.
Termos em que, ao abrigo das disposições legais acima citadas em 4,
se requer seja admitido o recurso para o Tribunal Constitucional que
superiormente apreciará da conformidade constitucional ou não, do nº 1 do art.
8º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3-5, e da interpretação que de tal preceito é
feita no douto Acórdão recorrido.'
Neste Tribunal, o Magistrado do Ministério Público
apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões:
'1º - Os acórdãos nºs 271/92, 164/93 e 410/93, ao julgarem inconstitucional
a norma do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, quando
interpretada no sentido de que os tribunais comuns de que aí se fala são os
tribunais cíveis, quando estejam em causa créditos oriundos de relações
laborais, não decretaram a inconstitucionalidade 'in totum' de tal preceito
legal, mas apenas de certa e determinada interpretação do mesmo.
2º - Deverá, pois, tal norma ser interpretada e aplicada pela ordem
dos tribunais judiciais em conformidade com o sentido, constitucionalmente
conforme à Constituição da República Portuguesa, e implícito naquelas decisões,
de que os tribunais comuns aí referidos são os que se configuram como
competentes, atenta a matéria da causa e a repartição da competência entre os
tribunais de competência especializada existentes, face à Lei Orgânica dos
Tribunais Judiciais - ou seja, os tribunais do trabalho.
3º - Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso,
determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de
constitucionalidade da norma desaplicada, com o sentido atrás atribuído.'
Não foram apresentadas contra-alegações.
5. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
6. O recorrente não fixou rigorosamente o enquadra-mento
legal do presente recurso de constitucionalidade: indicou alternativamente a
alínea g) e a alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro.
Refira-se, desde já, que o presente recurso se enquadra
efectivamente na previsão dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e
70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
Vejamos.
A decisão recorrida teve em conta o juízo de
inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de
Maio, formulado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 271/92, a que veio a
ser conferida força obrigatória geral através do Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 151/94 (Diário da República, I-A, de 30 de Março de 1994). Aí
se decidiu:
'(...) declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma
do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, quando
inter-pretada no sentido de que os tribunais comuns a que se faz referência
nessa norma são os tribunais cíveis e estejam em causa créditos oriundos de
relações laborais, por violação do disposto na alínea q) do nº 1 do artigo 168º
da Constituição da República Portuguesa, na versão introduzida pela Lei
Consti-tucional nº 1/82, de 30 de Setembro.'
Esta declaração de inconstitucionalidade apenas se
referiu a uma certa interpretação da norma em apreço, pelo que tal norma não foi
inconstitucionalizada no seu todo, sendo de conceber outra interpretação
conforme à Constituição. Porém, a decisão recorrida fundamentou-se na aplicação
do nº 4 do artigo 43º do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, o que pressupõe a
desaplicação in toto do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85.
Isto significa que na decisão recorrida se estendeu o
juízo de inconstitucionalidade acerca de uma determinada interpretação do nº 1
do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85 a outra qualquer interpretação dessa
norma, concretamente àquela segundo a qual a expressão 'tribunais comuns'
mencionada nessa norma se refere, quando estejam em causa créditos laborais, aos
'tribunais do trabalho'. Ou seja, considerou-se, ainda que implicitamente, como
inconstitucional essa norma na sua globalidade.
Houve, assim, na decisão recorrida, uma recusa implícita
de aplicação de uma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade. O que
cabe na previsão da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional.
Não se pode, pois, afirmar que houve uma aplicação de
norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional
[hipótese prevista na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional], na medida em que a norma em que se fundamentou a decisão
recorrida não foi a do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, essa sim
inconstitucionalizada em certa dimensão pelo citado Acórdão nº 151/94, mas antes
a do nº 4 do artigo 43º do Decreto-Lei nº 260/76, que não foi objecto de
qualquer juízo de inconstitucionalidade.
Deve, portanto, considerar-se o presente recurso como
interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, adequadamente invocada pelo recorrente, pelo que nada obsta ao
conhecimento do mérito do recurso.
7. Uma vez que a decisão recorrida desaplicou, como se
viu, a norma do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85 na interpretação de
que os 'tribunais comuns' ali mencionados são os 'tribunais do trabalho',
constitui afinal objecto do presente recurso a questão da constitucionalidade da
aludida norma nessa interpretação.
8. Ora, resultava já da fundamentação do citado Acórdão
nº 151/94 (e dos que lhe serviram de fundamento: Acórdãos nºs 271/92, 164/93,
410/93 e 519/93, os dois primeiros publicados no Diário da República, II, de 23
de Novembro de 1992 e 10 de Abril de 1993, respectivamente) que era conforme à
Constituição a interpretação segundo a qual os 'tribunais comuns' mencionados no
nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, quando estivessem em causa créditos
oriundos de relações laborais, correspondiam aos 'tribunais do trabalho', os
quais foram, com a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais
Judiciais), integrados na ordem judiciária comum, como tribunais judiciais de
primeira instância de competência especializada.
9. Por sua vez, essa questão de constitucionalidade foi
objecto do recente Acórdão do Tribunal Constitucional nº 163/95, de 29 de Março
de 1995, ainda inédito, tirado em Plenário, nos termos do artigo 79º-A da Lei do
Tribunal Constitucional, que estabeleceu doutrina orientadora para a
jurisprudência do Tribunal. Aí se decidiu que a norma do nº 1 do artigo 8º do
Decreto-Lei nº 138/85 não é inconstitucional 'com o sentido de que a expressão
tribunais comuns constante de tal preceito deve, após a Lei nº 82/77, de 6 de
Dezembro, e quando estejam em causa créditos oriundos de relações laborais,
entender-se como correspondendo aos tribunais do trabalho'.
10. Há, assim, que aplicar ao caso sub judicio a solução
adoptada naquele Acórdão nº 163/95, para cujos fundamentos se remete.
Deve, pois, o artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85
ser interpretado e aplicado nos autos com o sentido, considerado conforme à
Constituição, de que os 'tribunais comuns' mencionados naquele preceito, após a
Lei nº 82/77 e quando estejam em causa créditos emergentes de relações laborais,
são os tribunais do trabalho e não os tribunais cíveis.
Esta interpretação da norma é vinculativa para o
tribunal recorrido, nos termos do nº 3 do artigo 80º da Lei do Tribunal
Constitucional.
III
Decisão
11. Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao
recurso e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, que deve ser
reformulado por forma a aplicar no julgamento do recurso a norma do artigo 8º,
nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, com o sentido de que a expressão
tribunais comuns constante de tal preceito deve, após a Lei nº 82/77, de 6 de
Dezembro, e quando estejam em causa créditos oriundos de relações laborais,
entender-se como correspondendo aos tribunais do trabalho.
Lisboa, 16 de Maio de 1995
Ass) Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa