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Processo nº 687/95
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
1 - No tribunal de círculo de Santa Maria da Feira, por acórdão de 24 de Novembro de 1994, foi o arguido A. condenado como autor material de um crime da homicídio por negligência, previsto e punido no artigo
136º, nº 2, do Código Penal, na pena de doze meses de prisão e de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido no artigo 219º, nº 2, do mesmo código, na pena de oito meses de prisão e 66 dias de multa, à taxa diária de 500$00, o que perfaz o montante de 33.000$00, ou, em alternativa, em 44 dias de prisão.
Operado o respectivo cúmulo jurídico, foi imposta ao arguido, além do mais, a pena unitária de quinze meses de prisão e 66 dias de multa o que perfaz o montante de 33.000$00, ou, em alternativa, em 44 dias de prisão.
Desta decisão interpôs o arguido recurso, que por despacho de
4 de Janeiro de 1995, com base no disposto nos artigos 292º do Código de Processo Civil, foi julgado deserto em virtude de não se mostrar paga a taxa de justiça devida pela sua interposição.
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2 - Reagindo contra este despacho levou o arguido recurso ao Tribunal da Relação do Porto, suscitando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do artigo 192º, primeira parte, do Código das Custas Judiciais, na interpretação que ali lhe fora concedida.
Por acórdão de 10 de Maio de 1995, foi-lhe negado provimento, confirmando-se a decisão impugnada.
Para tanto, no que à questão de constitucionalidade respeita, aduziu-se a fundamentação seguinte:
'Na verdade a justiça não é gratuita, a menos que aquele que a ela pretende recorrer não disponha de meios suficientes para tal, caso em que deverá solicitar o apoio judiciário, aplicável em qualquer tipo de processo (ver Decreto-Lei 387/B/87).
O processo penal tem regras próprias, visando a salvaguarda dos interesses em causa no direito criminal e que, como referimos, são diferentes dos contemplados no direito civil e os prazos ali prescritos aplicam-se a todos os que interpõem recursos.
O recorrente não beneficia do apoio judiciário e tinha que cumprir com o estipulado na lei, pagando atempadamente a taxa de justiça devida pela interposição do recurso. Como não o fez, sujeitou-se às consequências legais, como sucederia a qualquer outro cidadão em iguais circunstâncias.
O pagamento da taxa de justiça devido pela interposição do recurso só deverá ser dispensado, face ao artigo 20, nº 2, da C.R.P., se o recorrente houver obtido o benefício do apoio judiciário (acórdãos do S.T.J. de 13 de Julho de 1979 e de 17 de Fevereiro de 1983, B.M.J. 289-215 e 324-481).
Temos pois como seguro que nenhuma norma constitucional foi violada'.
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3 - Sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, trouxe então o arguido os autos em recurso a este Tribunal, fechando as alegações entretanto oferecidas com o seguinte quadro de conclusões:
'1ª. A taxa de justiça, em geral, e a prevista no artº 192º do CCJ, em especial, visa a realização de superiores interesses do Estado, constitucionalmente protegidos, nomeadamente a realização da justiça e do direito, que o princípio da equidade postula seja custeada pela comunidade e pelo cidadão utente.
2ª. Por outro lado, a todos é assegurado o acesso à tutela judicial efectiva, a cujo núcleo essencial pertence o direito de recurso.
3ª. O não pagamento pelo Recte, da taxa de justiça prevista no artº
192º do CCJ dentro do prazo fixado, constitui uma violação de um preceito de natureza tributária;
4ª. A sanção aplicável à violação desse preceito (artº 192º CCJ) deverá ter natureza estritamente pecuniária à semelhança do cominado para as hipóteses da lei processual civil paralelas, vg. 145º do CPC, e processo penal, ora em vigor (artº 107º - 5 do CPP), critério aliás, que o próprio CCJ já manda seguir em situações de grande analogia, vg. nos seus artºs 110º e 187º - 1 a) e
3;
5ª. O arguido em processo penal quando violador dos preceitos tributários judiciais não deve ser tratado mais severamente que os sujeitos processuais civis;
6ª. A perda de direito de recurso decidida pelas instâncias, decorrente da taxa de justiça no prazo fixado no artº 192º do CCJ na interpretação dada pelo douto Acórdão recorrido, constitui uma sanção que não é razoável nem proporcionada à defesa dos interesses que a referida norma tributária especialmente visa proteger;
7ª. O artº 192º do CCJ assim interpretado e aplicado à violação do arguido aqui Recte, é inconstitucional por ofender os artºs 20º - 1, 13º - 1 e
18º - 2 da Constituição da República Portuguesa;
8ª. Assim sendo, ao caso deverá ser aplicada a sanção da perda de recurso pª no artº 192º depois e só depois da aplicação do disposto nos artºs
110º ou 187º - 1 a) e 3) do CCJ ou do artº 145º - 6 do CPCivil;
9ª. Em consequência, deve o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto ser revogado, admitindo-se a interposição do recurso deduzida pelo arguido, aqui Recte., com as sanções pecuniárias cominadas num dos artºs indicados na anterior conclusão, PROPORCIONADAS à gravidade da falta'.
Em contralegação o senhor Procurador-Geral Adjunto sustentou o provimento do recurso, sintetizando assim a linha argumentativa ali desenvolvida:
'1º A norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais, quando interpretada no sentido de que a omissão do pagamento no prazo de 7 dias da taxa de justiça devida pela interposição de recurso determina, como irremediável efeito preclusivo, a deserção fiscal deste, sem que ao arguido-recorrente seja facultada a possibilidade de, em prazo adicional, (e em termos análogos aos estatuídos nos artigos 110º, nºs 1 e 2 e 178º, nº 3, do Código das Custas Judiciais) satisfazer a importância em dívida, acrescida da sanção tributária correspondente à mora, implica restrição excessiva e desproporcionada, violadora dos nºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, afectando o conteúdo essencial do direito ao recurso das decisões penais condenatórias, emergente do preceituado nos artigos 20º e 32º, nº 1, da Lei Fundamental.
2º - Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, no sentido atrás propugnado.'
Os autos seguiram os vistos de legais, cabendo agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - A norma do artigo 192º do Código das Custas Judiciais na sua actual redacção, isto é, após o seu nº 2 ter sido revogado pelo Decreto-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro, dispõe do modo seguinte:
Artigo 192º
(Pagamento da taxa devida inicialmente)
A taxa que seja condição do seguimento de recurso ou incidente ou da prática de qualquer acto deve ser paga no prazo de sete dias, a contar da apresentação do requerimento na secretaria ou da formulação no processo, independentemente de despacho e sob pena de o pedido ser considerado sem efeito. O recurso que tenha por efeito manter a liberdade do réu é recebido independentemente do pagamento da taxa pela interposição, que será paga nos sete dias subsequentes à admissão do recurso.
Este Tribunal teve já ensejo de apreciar a legitimidade constitucional deste preceito, firmando a tal propósito uma jurisprudência uniforme no sentido de que apenas deverá ser considerado inconstitucional quando, 'por ineficiência de meios económicos, impeça o acesso aos tribunais, no caso concreto, o seguimento da via de recurso aberta por lei'. (cfr. os Acórdãos nºs 160/90 e 409/94, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 11 de Setembro de 1990 e 5 de Setembro de 1994). Refira-se, aliás, que este entendimento decisório tem precedente na orientação que já havia sido firmado na Comissão Constitucional (cfr. Pareceres nº 8/87 e 9/92, Pareceres da Comissão Constitucional, respectivamente, 5º vol., pp. 3 e ss e 19º vol., pp. 29 e ss e Acórdão nº 478, Boletim do Ministério da Justiça, nº 327, pp. 431 e ss)
Simplesmente, na situação em apreço, aquela norma, tanto nas alegações do recorrente como do Ministério Público, é avaliada à luz de um outro enquadramento, qual seja, o do irremediável e automático efeito preclusivo resultante de deserção fiscal, poder implicar colisão com o conteúdo essencial do direito de defesa e, concomitantemente, do direito de recurso das decisões penais condenatórias.
Será efectivamente assim?
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2 - Sustenta o senhor Procurador-Geral Adjunto em abono da posição perfilhada na contralegação que 'a decisão recorrida não aplicou, no caso dos autos, o regime decorrente do artigo 110º, nºs 1 e 2, do Código da Custas Judiciais - e expressamente consagrado, no que toca aos recursos penais interpostos nos tribunais superiores, no nº 3 do artigo 187º do Código das Custas Judiciais'.
É que, acrescenta, 'se estivessemos perante a omissão de tempestivo pagamento de um preparo inicial em recurso cível, seria o recorrente notificado por via postal para, no prazo adicional de sete dias 'efectuar o preparo a que faltou acrescido da taxa de justiça de igual montante' (artigo
110º, nº 1 do Código das Custas Judiciais): a deserção fiscal decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 110º do Código das Custas Judiciais e no artigo
292º, nº 1, do Código de Processo Civil aparece, deste modo, condicionada, em processo civil, à prévia advertência ao recorrente para efectuar o preparo em falta, acrescido da sanção tributária aí prevista'.
Ora, prossegue, 'no que se refere aos recursos penais interpostos de decisões proferidas em 1ª instância, a interpretação que o acórdão recorrido fez das normas constantes dos artigos 190º, alínea b) e 192º do Código das Custas Judiciais, conduziu a que não haja aplicado o regime constante dos citados artigos 110º nºs 1 e 2, e 187º, nº 3, do Código das Custas Judiciais - tornando, consequentemente, de todo em todo irremediável a omissão cometida no processo, sem que ao arguido fosse facultada a possibilidade de, numa segunda oportunidade, realizar o pagamento da importância em mora'.
E no desenvolvimento desta linha argumentativa entendeu-se que o regime de deserção fiscal resultante daquela norma, na interpretação ensaiada pelo acórdão recorrido, representa uma limitação excessiva e desproporcionada ao direito fundamental do arguido de recorrer da decisão condenatória, incompatível com o disposto no artigo 18º, nºs 2 e 3 da Constituição.
Todavia, como aliás foi devidamente assinalado no acórdão do Tribunal Constitucional nº 575/96, ainda inédito, que decidiu sobre uma questão inteiramente similar aquela que agora se sindica, o artigo 187º do Código das Custas Judiciais, quando se refere à taxa de justiça a pagar nos recursos, reporta-se apenas ao regime de pagamento das taxas devidas pela distribuição do recurso no tribunal superior, e não à taxa devida, no tribunal recorrido, pela interposição do recurso, caso a que se refere o artigo 192º. São pois, duas situações distintas, sendo que só a do artigo 187º corresponde à prevista no artigo 116º para os recursos cíveis, pelo que se justifica plenamente a existência de tratamentos diferenciados. (cfr. também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Junho de 1988, Boletim do Ministério da Justiça, nº 378, pp. 639 e ss)
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3 - Mas, para lá desta específica diferenciação havida por constitucionalmente consentida, fora já de um qualquer paralelismo estabelecido com o regime estipulado em processo civil, mas antes pela lógica e princípios intrínsecos ao processo penal, maxime aos ditames decorrentes do artigo 32º da Constituição, não será que a norma posta em crise se apresenta como excessiva enquanto limitativa do princípio que assegura todas as garantias de defesa ao arguido?
O já citado Acórdão nº 575/96, respondeu afirmativamente a esta interrogativa em termos que a seguir se deixam reproduzidos.
'Ora, ao ditar irremediavelmente a imediata deserção do recurso, pelo simples não cumprimento do ónus de pagamento da taxa - aliás, de diminuto valor - em determinado prazo, sem que ocorra qualquer formalidade de aviso ou comunicação ao arguido sobre as consequências desse não pagamento, a norma em apreço procede a uma intolerável limitação do direito ao recurso e, consequentemente, ao direito de defesa em processo penal.
Na realidade, o modo como muitas vezes se processa, na prática, no
âmbito do processo penal, o sistema de acesso ao direito, que ainda opera aí com muitas deficiências, aliado às evidentes dificuldades que, frequentemente, os arguidos manifestam quanto ao entendimento das decisões que os afectam, bem como
às respectivas consequências jurídicas, evidencia a necessidade de se proceder, em casos como o que se aprecia nestes autos, à prévia advertência ao arguido das cominações jurídicas decorrentes da prática ou não-prática de certos actos, designadamente quando se reportem a consequências jurídicas muito graves e de carácter irreversível, como acontece com a deserção fiscal.
Nem se vê que possa existir qualquer outro interesse constitucionalmente relevante que possa justificar uma tão acentuada compressão do direito ao recurso da decisão penal condenatória, certo como é que o único interesse aqui expresso é o interesse económico do Estado, in casu de expressão manifestamente diminuta, sem relevância semelhante ou equivalente à da plena e efectiva defesa do arguido.
Assim, só através de uma comunicação com um mínimo de solenidade feita ao arguido se poderiam considerar asseguradas as condições essenciais exigíveis ao exercício de todas as garantias de defesa, fazendo-se, então, corresponder a sua não actuação após tal aviso a uma intenção de não recorrer ou
à perda do direito ao recurso.'
Acolhe-se por inteiro esta retórica argumentativa e, sem necessidade de outras considerações, conclui-se no sentido de o artigo 192º do Código das Custas Judicais, se apresentar, nesta perspectiva, como violador dos artigos 32º, nº 1 e 18º, nº 2 e 3, da Constituição.
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III - A decisão
Nestes termos decide-se:
a) Julgar inconstitucional - por violação do preceituado nas disposições combinadas dos artigos 18º, nºs 2 e 3, e 32º, nº 1, da Constituição
- a norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais, na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal a quo, no prazo de sete dias, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso de sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao arguido-recorrente;
b) Conceder, em consequência, provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, o qual deve ser reformado em conformidade com o antecedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 10 de Julho de 1996
Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa (Com declaração idêntica à aposta no Acórdão nº 575/96)