Imprimir acórdão
Processo Penal, a
abertura de instrução, suscitando a inconstitucionalidade do mencionado
Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, e bem assim a da Lei nº 12/83, de 24 de
Agosto: a daquele, por ter sido promulgado e referendado depois de decorridos os
120 dias concedidos na Lei nº 12/83 e, ainda, por ter excedido a autorização
legislativa; a da Lei nº 12/83, por ser indeterminado o respectivo sentido.
O juiz, por despacho de 20 de Dezembro de 1993,
pronunciou os arguidos pelos crimes constantes da acusação, pois que, entre o
mais, entendeu não se verificarem as inconstitucionalidades arguidas, uma vez
que - disse: o Decreto‑Lei nº 28/84 foi aprovado em Conselho de Ministros e
recebido na Presidência da República para promulgação antes de expirado o prazo
concedido ao Governo para legislar, e isso é quanto basta para que a autorização
legislativa tenha sido atempadamente utilizada; ao que acresce que, ao
responsabilizar criminalmente as pessoas colectivas, o Governo não excedeu os
limites da autorização, sabido como é que a eficácia na prevenção e na repressão
da criminalidade económica passa por tal responsabilização. Quanto à Lei nº
12/83, definiu ela com suficiente 'clareza e nitidez' o 'objecto, o sentido e a
extensão das modificações que vão produzir-se na ordem jurídica', pois,
conquanto a autorização se refira 'à matéria das 'infracções antieconómicas e
contra a saúde pública'' e esses conceitos sejam, 'naturalmente, genéricos e
amplos', os seus 'contornos são definíveis e concretizáveis com o recurso a
outras disciplinas'.
2. É deste despacho de pronúncia (de 20 de Dezembro de
1993) que vem o presente recurso, interposto pelos arguidos ao abrigo da alínea
b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da
constitucionalidade da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto (em especial, do corpo e
alínea a) do artigo 1º e alínea a) do artigo 4º) e do Decreto-Lei nº 28/84, de
20 de Janeiro (em especial, dos artigos 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, 36º e 37º).
Neste Tribunal, os arguidos concluíram assim as suas
alegações:
1ª - O Decreto-Lei nº 28/84 foi publicado ao abrigo da Lei de Autorização
Legislativa nº 12/83.
2ª - Lei que foi aprovada pela Assembleia da República em 13/7/83, promulgada em
8/8/83, referendada em 9/8/83 e foi publicada no DR I série nº 194, de 24 de
Agosto.
3ª - Por sua vez, o citado Decreto-Lei foi aprovado em Conselho de Ministros com
data de 6 de Dezembro de 1983, foi promulgado, referendado, publicado e entrou
em vigor respectivamente em 9, 11 e 20 de Janeiro e 1 de Março de 1984.
4ª - Sendo que a lei de autorização concedia ao Governo o prazo de 120 dias para
introduzir a nova disciplina normativa na ordem jurídica.
5ª - Prazo que se iniciou em 14/7/83 e terminou em 10/11/83.
6ª - Donde resulta que a autorização legislativa caducou antes de ter sido
utilizada pelo Governo, seja porque
a) - As autorizações legislativas só se consideram utilizadas com a entrada
em vigor do Decreto-Lei delegado ou pelo menos com a publicação deste no Diário
da República ou, quando ainda assim se não entenda, mas sem prescindir, com a
sua promulgação e referenda, cuja falta, aliás, é geradora de inexistência
jurídica.
b) - De qualquer modo, nem mesmo a aprovação em Conselho de Ministros teve
lugar dentro do prazo de 120 dias, já que o seu termo inicial deve contar-se da
data da aprovação da autorização pelo Parlamento.
7ª - Quer porque não foi aprovado pelo Governo dentro do prazo de 120 dias
contados da data da aprovação pela Assembleia da República pela Lei nº 12/83,
quer porque (mesmo quando se entenda dever aquele prazo contar-se do dia
imediato ao da publicação da Lei nº 12/83 no Diário da República) tanto a sua
entrada em vigor, como a sua publicação, como até a sua promulgação e referenda,
ocorreram posteriormente,
- O Decreto-Lei nº 28/84 na sua generalidade e especificamente os
seus artigos 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, 36º e 37º envolvem inconstitucionalidade
orgânica por violação do disposto no artº 168º. nº 2, da CRP.
Mas não só, pois que,
8ª - O Governo extravasou dos limites normativos fixados na autorização
legislativa, mormente na parte em que definiu novos tipos de ilicitude, fixou
novas penas e estendeu aqueles e estas às pessoas colectivas, sociedades e meras
associações de facto.
9ª - Na medida em que excedeu o âmbito da autorização concedida pela Assembleia
da República, o Decreto-Lei nº 28/84 é organicamente inconstitucional por violar
o disposto no artº 168º, nº 1, al. c) da CRP.
10ª - Por último, ao delegar no Governo a competência para simplesmente '...
alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais (...) definindo
novas penas ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de
referência, a dosimetria do Código Penal...' e em ordem a obter '...maior
celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções...' -
cfr. corpo e al. a) do artº 1º e al. a) do artº 4º - a Lei de Autorização nº
12/83 não define suficientemente (nem sequer minimamente) o sentido e a extensão
da autorização, configurando-se, pelo contrário, como um 'cheque em branco' pois
permite ao Governo criar 'ad libitum' novos tipos de ilícitos e novas penas.
11ª - Pelo que a Lei nº 12/83 enferma de inconstitucionalidade material e viola
o disposto no artº 168º, nº 2, da CRP.
Pelo exposto, e pelo muito que vossas excelências doutamente suprirão, deve ser
declarada a inconstitucionalidade orgânica e material do Dec.-Lei nº 28/84 'in
totum' ou pelo menos a dos seus artigos 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, 36º e 37º, com
consequente inaplicabilidade das respectivas normas aos recorrentes.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal
concluiu as suas alegações como segue:
1º - Os artigos 36º, nºs 1, alínea a) e c), 2, 3 e 5, alínea a), 37º, nºs 1 e 3,
3º, nº 1 e 7º, nºs 1 e 4, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, ao
definirem crimes e fixarem penas, e ao estabelecerem a responsabilidade criminal
das pessoas colectivas, versam matéria da exclusiva competência legislativa da
Assembleia da República (artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição), tendo o
Governo legislado ao abrigo da autorização legislativa constante dos artigos 1º,
corpo e alínea a), 4º, alínea a), e 5º da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto.
2º - Para que uma autorização legislativa seja validamente utilizada basta que,
antes de expirar o prazo da sua duração, o Governo haja aprovado, em Conselho de
Ministros, o correspondente Decreto-Lei, sendo irrelevante que este só venha a
ser promulgado, referendado e publicado para além daquele termo, e iniciando-se
a contagem do prazo da autorização apenas com a publicação da lei de
autorização.
3º - Assim, o Decreto-Lei nº 28/84, aprovado em Conselho de Ministros em 6 de
Dezembro de 1983, foi-o antes de expirado o prazo de autorizzação legislativa,
não sendo, por isso, inconstitucionais as normas já referidas.
4º - A Lei nº 12/83, na parte já mencionada, define com suficiente clareza o
objecto, a extensão e o sentido da autorização, cumprindo, assim, os requisitos
exigidos pelo artigo 168º, nº 2, da Constituição.
5º - Ao definir novos crimes e ao estender a responsabilidade criminal às
pessoas colectivas e equiparadas o Governo manteve-se sempre dentro dos limites
fixados pela lei de autorização legislativa, não tendo legislado a descoberto de
autorização, pelo que as normas objecto do recurso não são organicamente
inconstitucionais por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea c), da
Constituição.
6º - Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão
recorrida.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se são ou não
inconstitucionais:
(a). o corpo do artigo 1º e a alínea a) desse mesmo
artigo 1º e, bem assim, a alínea a) do artigo 4º, ambos da Lei nº 12/83, de 24
de Agosto;
(b). os artigos 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4,36º, nºs 1,
alíneas a) e c), 2, 3 e 5, alínea a), e 37º, nºs 1 e 3, todos do Decreto-Lei nº
28/84, de 20 de Janeiro.
II. Fundamentos:
4. A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto: sentido e extensão.
4.1. A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, pela qual a
Assembleia da República concedeu autorização ao Governo para este legislar em
matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública, na parte que aqui
importa, reza assim:
Artigo 1º. É concedida autorização legislativa ao Governo para alterar os
regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais,
definindo novas penas, ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como
ponto de referência, a dosimetria do Código Penal, nas seguintes áreas:
a). Em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública;
[...].
Artigo 4º. O sentido das autorizações constantes dos artigos anteriores é:
a). Quanto às infracções antieconómicas e contra a saúde pública, a obtenção de
maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções,
nomeadamente actualizando o regime em vigor;
[...].
Artigo 5º. A presente autorização legislativa caduca se não for utilizada dentro
do prazo de 120 dias.
Artigo 6º. A presente Lei entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.
A inconstitucionalidade que os recorrentes assacam ao
artigo 1º e sua alínea a) e à alínea a) do artigo 4º, acabados de transcrever,
radica no facto de, em seu entender, tais normativos não definirem o sentido e a
extensão da autorização concedida para legislar sobre infracções antieconómicas
e contra a saúde pública.
Será assim?
Entende-se que não, pelas razões que, a seguir, se
indicam.
4.2. Dispõe-se no nº 2 do artigo 168º da Constituição:
2 - As leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a
extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada.
Daqui decorre que as leis de autorização legislativa
devem indicar a matéria sobre que o Governo fica autorizado a legislar (é o seu
objecto), a amplitude com que o poderá fazer (é o seu alcance) e, bem assim, os
princípios-base, as directrizes ou orientações que hão-de presidir à elaboração
do decreto-lei a editar (é o sentido da autorização).
Quanto ao que deva entender-se pelo sentido da
autorização legislativa, escreve ANTÓNIO VITORINO (As Autorizações Legislativas
na Constituição Portuguesa, policopiado, Lisboa, 1985, p. 240):
[...] se o sentido não tem que exprimir-se em abundantes princípios ou critérios
directivos (que levados às últimas consequências até poderiam condicionar
totalmente em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá,
pelo menos ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa operar
com clareza como parâmetro de aferição dos actos delegados e consequentemente da
observância por parte do legislador delegado do essencial dos ditames do
legislador delegante.
De sua parte, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º volume, 2ª edição, Coimbra,
1985, p. 204) precisam:
Não é obrigatório, naturalmente, que a autorização contenha um projecto do
futuro decreto-lei, mas ela não pode ser um cheque em branco.
JORGE MIRANDA (Funções, Órgãos e Actos do Estado,
Lisboa, 1990, policopiado, p. 471) diz:
A lei de autorização tem de definir o sentido da autorização, ou seja, o
objectivo e o critério da disciplina a estabelecer, a condensação dos princípios
ou a orientação fundamental a seguir pelo Governo.
Essencial é, pois, que na autorização legislativa possam
colher-se os princípios rectores que hão-de servir ao Governo de critério ou de
linhas de orientação na produção da respectiva disciplina jurídica, mas basta
que constem da lei de autorização os princípios, as directrizes ou as
orientações gerais que habilitem o Governo a emitir a legislação autorizada e
que, uma vez produzida essa legislação (autorizada) permitam às instâncias de
controlo da constitucionalidade verificar se ela respeita o modelo que a
Assembleia da República esboçou.
É que, como se pôs em destaque no Acórdão nº 107/88,
publicado no Diário da República, I série, de 21 de Junho de 1988, o sentido da
autorização legislativa é 'essencial para a determinação das linhas gerais das
alterações a introduzir numa dada matéria legislativa'.
O decreto-lei a produzir pelo Governo, na parte em que
versar matéria que se inscreva na reserva parlamentar, tem que conformar-se com
o sentido da autorização legislativa (cf. nos mesmos termos, o Acórdão nº
311/93, publicado no Diário da República, II série, de 22 de Julho de 1993).
4.3. Autorizar o Governo, em matéria de infracções
antieconómicas e contra a saúde pública, a 'alterar o regime em vigor,
tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas, ou
modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de referência, a
dosimetria do Código Penal', 'nomeadamente actualizando o regime em vigor', tudo
com vista à 'obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão
deste tipo de infracções', não é pormenorizar muito o sentido e o alcance da
autorização.
Mas, para decidir a questão de constitucionalidade há,
no entanto, e primeiro que tudo, que não esquecer que, na época, era prática
parlamentar as leis de autorização legislativa ficarem-se por uma definição
mínima, como se pode ver das outras cinco autorizações constantes da Lei nº
12/83, da Lei nº 8/83, de 11 de Agosto (autorização em matéria de tráfico de
diamantes), da Lei nº 27/83, de 8 de Setembro (autorização para definir em geral
ilícitos criminais), da Lei nº 28/83, de 8 de Setembro (autorização sobre
suspensão temporária do contrato de trabalho), da Lei nº 29/83, de 8 de Setembro
(autorização para rever a orgânica dos tribunais administrativos e fiscais), da
Lei nº 30/83, de 8 de Setembro (autorização para alterar os estatutos das
empresas públicas) e, em data anterior (anterior mesmo à revisão constitucional
de 1982 - num tempo, portanto, em que as autorizações legislativas não tinham
que indicar o sentido), da Lei nº 24/82, de 23 de Agosto (autorização para
aprovação de um novo Código Penal e para a adopção de disposições adequadas de
direito criminal, de processo criminal e de organização judiciária).
Depois, há também que ter presente que, tratando-se, na
autorização legislativa aqui sub iudicio - não, propriamente, de conferir
poderes ao Governo para produzir, ex novo, todo um corpo normativo -, sim de o
autorizar a 'alterar o regime em vigor', actualizando-o e criando novos tipos de
ilícitos (crimes e contravenções), para o que, no tocante às penas, devia tomar
'como ponto de referência' 'a dosimetria do Código Penal', o que a Assembleia
fez foi fornecer-lhe um primeiro modelo de referência para as infracções que não
representassem a criação de novos tipos de ilícito - modelo de referência que
era (para além do Código Penal) o Decreto‑Lei nº 41.204, de 24 de Julho de 1957
(alterado, entretanto, entre outros, pelos Decretos-Leis nºs 43.860, de 16 de
Agosto de 1961, 308/71, de 16 de Julho, 340/73, de 6 de Julho, 476/74, de 24 de
Setembro, e 341/76, de 12 de Maio), que continha o regime das infracções contra
a saúde pública e contra a economia.
Sendo isto assim, a Lei nº 12/83, de 24 de Agosto -
recte, o seu artigo 1º e respectiva alínea a) e a alínea a) do seu artigo 4º -,
não sendo, propriamente, um modelo de perfeição ou completude, no que respeita à
definição do sentido e da extensão da autorização para legislar 'em matéria de
infracções antieconómicas e contra a saúde pública', contém ainda um conteúdo
mínimo: sabe-se qual a matéria sobre que o Governo ficou autorizado a legislar,
e este ficou a saber que se tratava de rever o regime em vigor (actualizando-o e
criando novos tipos de crimes e contravenções), com vista a cumprir o objectivo
de obter 'maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão' deste tipo de
criminalidade, e de criar novas penas e modificar as actuais, mas sempre tomando
como modelo de referência a dosimetria do Código Penal - e tudo, em termos de os
tribunais poderem verificar se o sentido da autorização foi ou não respeitado
(cf. os Acórdãos nºs 107/88 e 473/89, 70/92 e 194/92, Diário da República, I
série, de 21 de Abril de 1988, II série, de 26 de Setembro de 1989, de 18 de
Agosto de 1992 e de 25 de Agosto de 1992).
4.4. Que a lei de autorização legislativa aqui sob exame
cumpre o mínimo constitucionalmente exigido em matéria de definição do sentido e
da extensão (não se tratando, assim, de um cheque em branco), foi coisa que,
após debate parlamentar, a própria Assembleia teve por adquirido.
O articulado da Lei nº 12/83 é, sem alteração, o da
Proposta de Lei nº 20/III, publicado no Diário da Assembleia da República, II
série, nº 18, de 8 de Julho de 1983, páginas 563, em cuja exposição de motivos
se escreveu:
O aumento dos delitos anti-económicos e contra a saúde pública exige que se
proceda a uma rápida revisão dos tipos e penas em matéria de criminalidade dos
domínios económico, financeiro e de defesa da saúde pública e do consumidor, de
modo a adequá-los a novas modalidades de delinquência e à gravidade das
infracções praticadas. Só uma reacção pronta, proporcionada e eficaz terá também
os efeitos de prevenção geral que a solidariedade social e a protecção da
sociedade exigem.
A ASDI, em recurso interposto, sustentou, justamente,
que, no tocante às infracções antieconómicas e contra a saúde pública, a
Proposta de Lei era algo vaga e imprecisa, tendo alguns deputados afirmado não
ter sido cumprido o nº 2 do artigo 168º da Constituição (cf. Diário da
Assembleia da República, I série, nº 21, de 14 de Julho de 1983).
Depois de o Ministro da Justiça ter prestado
esclarecimentos, foi a vez de intervir o deputado ANTÓNIO VITORINO, que afirmou:
O recurso de impugnação de inconstitucionalidade interposto pelo agrupamento
parlamentar ASDI suscita‑me dois tipos de questões.
Um diz respeito ao sentido das alterações a introduzir e o outro diz respeito à
conexão das matérias sobre que versa o pedido de autorização legislativa.
No que concerne ao primeiro tipo de questões, ao sentido das alterações, o
Senhor Ministro adiantou alguns esclarecimentos que me parecem importantes e
úteis. Exprimiu que era intenção genérica do Governo agravar as sanções de
determinados ilícitos, e reconheço, logo à partida, que é difícil, quando se
trata de agravar sanções, fornecer num pedido de autorização legislativa
critérios gerais que permitam aquilatar das diferenças de dosimetria das sanções
que vão ser introduzidas. Tarefa difícil e insana. Provavelmente nunca nenhum
governo conseguirá apresentar a esta Câmara um critério geral de dosimetria de
alteração das penas e das sanções (Diário cit., página 884).
O deputado COSTA ANDRADE, por sua parte, afirmou, a
propósito:
É que esta proposta de lei tem o quantum de sentido mais do que suficiente para
satisfazer as exigências do artigo 168º e eu digo-lhe porquê: é que esta
proposta de lei vem dizer que vai criminalizar ou descriminalizar, porventura,
em determinadas matérias.
[...] Criminalizar não é uma coisa muito vaga. É o grau máximo de
responsabilidade que confronta um Estado com um cidadão. O crime é a chamada à
responsabilidade de um cidadão perante o Estado.
Portanto, parece-me que dizer que se vai criminalizar é o máximo de precisão e
de sentido [...].
De resto, no artigo 4º da presente proposta de lei [...] não deixa de ser
referido esse sentido. Essa referência é suficiente porque são tipificados, ou
são indicados, os valores, os bens jurídicos, os interesses que o legislador se
propõe tutelar com a criminalização destas condutas (Diário cit., página 890).
O deputado MAGALHÃES MOTA - depois de dizer que as leis
de autorização deviam ter um sentido (isto é, estabelecer uma directiva,
apontando finalidades a prosseguir e marcando objectivos) - considerou
esclarecidas as dúvidas e, em nome da ASDI, retirou a impugnação da proposta de
lei.
A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, [recte, o seu artigo 1º
e respectiva alínea a) e alínea a) do artigo 4º], não viola, pois, o artigo
168º, nº 2, da Constituição (versão de 1982).
5. O Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro:
5.1. Edição no prazo de validade da autorização
legislativa:
Este Decreto-Lei nº 28/84 foi, como se disse, editado ao
abrigo da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei nº 12/83, de 24
de Agosto, como, de resto, tinha que ser, pois que versa matéria que, por dizer
respeito à 'definição de crimes e de penas', se inscreve na reserva relativa da
Assembleia da República (cf. artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição).
Esta autorização concedida ao Governo, para ser
validamente utilizada (validamente, em termos constitucionais), tinha que o ser
dentro do prazo de 120 dias a contar da data da sua entrada em vigor, que
ocorreu em 25 de Agosto de 1984 (cf. artigos 5º e 6º) - ou seja, até 23 de
Dezembro de 1983.
Assim sendo e tendo o Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de
Janeiro, sido aprovado em Conselho de Ministros, em 6 de Dezembro de 1983, foi a
referida autorização legislativa utilizada em tempo.
É que, 'para que se considere respeitado o prazo da
autorização legislativa' - escreveu-se no acórdão nº 150/92 (Diário da
República, II série, de 28 de Julho de 1992) e repetiu-se nos acórdãos nºs
386/93 e 651/93 (Diário da República, II série, de 2 de Outubro de 1993 e de 31
de Março de 1994, respectivamente) - 'basta que ocorra dentro desse prazo a
aprovação em Conselho de Ministros do decreto-lei emitido no uso dessa
autorização'.
A publicação do decreto-lei autorizado não é, assim,
elemento da sua validade.
Embora a falta de promulgação e da referenda importem
ineficácia jurídica (cf. artigos 140º e 143º, nº 2, da Constituição), quando
esteja em causa verificar se o Governo, ao editar um decreto-lei no uso de uma
autorização legislativa, o fez dentro do prazo de validade da autorização, o
momento do iter legislativo relevante para o efeito é - repete-se - o da
aprovação do decreto-lei em Conselho de Ministros.
Por isso, tal como se concluiu no citado acórdão nº
651/93 quanto ao artigo 37º, nºs 1 e 3, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de
Janeiro - para cuja fundamentação, na parte respectiva, e para maiores
desenvolvimentos, aqui se remete - também agora se conclui que os artigos 3º, nº
1, 7º, nºs 1 e 4, 36º, nºs 1, alíneas a) e c), 2, 3 e 5, alínea a), e 37º, do
citado Decreto‑Lei nº 28/84, não padecem de inconstitucionalidade que radique na
falta de competência legislativa do Governo para os editar, pois que o
respectivo diploma foi aprovado em Conselho de Ministros antes de caducar a
autorização legislativa correspondente.
5.2. Respeito pelo objecto, sentido e extensão da
autorização legislativa.
Os recorrentes entendem, no entanto, que o Governo, ao
definir novos crimes nos artigos 36º e 37º e ao estender, nos artigos 3º e 7º, a
responsabilidade criminal às pessoas colectivas e equiparadas, 'extravasou os
limites normativos fixados na autorização legislativa' ('excedeu o âmbito' da
mesma).
Sem razão, porém.
Dispõem as normas ora sub iudico, que são as dos artigos
3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, 36º, nº 1, alíneas a) e c), 2,3 e 5, alínea a), e 37º,
nºs 1 e 3, todos do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, o seguinte:
Artigo 3º (Responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas)
1. As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são
responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas
pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
Artigo 7º (Penas aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas)
1. Pelos crimes previstos neste diploma são aplicáveis às pessoas colectivas e
equiparadas as seguintes penas principais:
a). Admoestação;
b). Multa;
c). Dissolução.
2 e 3. [...]
4. Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1.000$00 e 1.000.000$00,
que o tribunal fixará em função da situação económica e financeira da pessoa
colectiva ou equiparada e dos seus encargos.
5. e 6. [...].
Artigo 36º (Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção)
1. Quem obtiver subsídio ou subvenção:
a). Fornecendo às autoridades ou entidades competentes informações inexactas ou
incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a
concessão do subsídio ou subvenção;
b). [...].
c). Utilizando documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de
factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexactas
ou incompletas;
Será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
2. Nos casos particularmente graves, a pena será de prisão de 2 a 8 anos.
3. Se os factos previstos neste artigo forem praticados no nome e no interesse
de uma pessoa colectiva ou sociedade, exclusiva ou predominantemente
constituídas para a sua prática, o tribunal, além da pena pecuniária, ordenará a
dissolução.
4. [...]
5. Para os efeitos do disposto no nº 2, consideram-se particularmente graves os
caso em que o agente:
a). Obtém para si ou para terceiros uma subvenção ou subsídio de montante
consideravelmente elevado ou utiliza documentos falsos;
b) e c). [...]
6. a 8. [...]
Artigo 37º (Desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado)
1. Quem utilizar prestações obtidas a título de subvenção ou subsídio para fins
diferentes daqueles a que legalmente se destinam será punido com prisão até 2
anos ou multa não inferior a 100dias.
2. [...]
3. A pena será de prisão de 6 meses a 6 anos e multa até 200 dias quando os
valores ou danos causados forem consideravelmente elevados.
4. e 5. [...].
5.2.1. Nos artigos 36º e 37º, que acabam de
transcrever-se nas partes que estão em causa nestes autos, prevêem-se, de facto,
ex novo, o crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção (artigo 36º) e o
crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado (artigo 37º)
A novidade de tais tipos de ilícito é, de resto,
sublinhada no preâmbulo do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, ao
escrever-se:
Entre os novos tipos de crimes incluídos neste diploma destacam-se a fraude na
obtenção de subsídios ou subvenção, o desvio ilícito dos mesmos e a fraude na
obtenção de créditos, conhecidos de outras legislações, como a da República
Federal da Alemanha, os quais, pela gravidade dos seus efeitos e pela
necessidade de proteger o interesse da correcta aplicação de dinheiros públicos
nas actividades produtivas, não poderiam continuar a ser ignorados pela nossa
ordem jurídica.
O Governo, ao prever estes novos tipos de crimes, mais
não fez, porém, do que utilizar - e utilizar correctamente - a autorização que a
Assembleia da República lhe concedera, justamente para 'tipifica[r] novos
ilícitos penais [...], definindo novas penas ou modificando as actuais, tomando
para o efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal' (cf.
artigo 1º da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, atrás transcrito). Fazendo-o,
correspondeu ao fim, que a Assembleia lhe assinalou, de buscar uma 'maior
eficácia [...] na prevenção e repressão deste tipo de infracções' [cf. artigo
4º, alínea a), da mesma lei], não se vendo, de resto, melhor maneira de dar
resposta à necessidade que se fazia sentir na comunidade de proteger o interesse
público da 'correcta aplicação de dinheiros públicos nas actividades produtivas'
do que criar aqueles novos tipos de crimes.
O Governo, ao definir estes novos tipos legais de
crimes, não excedeu (nem desrespeitou) o objecto, o sentido ou o âmbito da
autorização; antes, os cumpriu. E, por isso, não violou ele o artigo 168º, nº 1,
alínea c), da Constituição, que reserva à Assembleia da República - que, no
entanto, pode autorizar o Governo a legislar - a produção de normas sobre
'definição de crimes, penas [...]'.
5.2.2. De igual modo, não existe qualquer excesso no uso
da autorização legislativa, quando o Governo previu a possibilidade de as
pessoas colectivas (e equiparadas) poderem ser responsabilizadas criminalmente
pelas apontadas infracções, como fez nos artigos 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, 36º,
nº 3, atrás transcritos. E, assim, também por aí não violou a citada alínea c)
do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República.
De facto, para prever a responsabilidade criminal das
pessoas colectivas (e equiparadas), não se tornava necessário que a lei de
autorização legislativa o dissesse expressamente: autorizar o Governo a 'alterar
os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais' no domínio das
infracções contra a economia e contra a saúde pública, é permitir-lhe que
criminalize condutas que violem os respectivos valores ou bens jurídicos,
responsabilizando quem puder ser responsabilizado, seja pessoa física ou moral.
Aquela autorização legislativa conglobava, assim, a
possibilidade (melhor ainda: uma injunção política) de o Governo prever a
responsabilidade criminal das pessoas colectivas (e equiparadas).
É que, como adiante melhor se verá, a Constituição não
proíbe que, neste específico domínio das infracções contra a economia e a saúde,
a lei consagre tal responsabilidade criminal.
Ora, não havendo probição constitucional de consagrar um
tal tipo de responsabilidade criminal, estranho seria que o legislador o não
tivesse feito.
Na verdade - como sublinha FIGUEIREDO DIAS -, 'as mais
graves e frequentes ofensas aos valores protegidos pelo direito penal
secundário', no qual se incluem os crimes antieconómicos, provêm hoje, 'em
muitos âmbitos, não de pessoas individuais, mas colectivas'. Por isso, manter a
'irresponsabilidade directa destas significaria sempre um seu inexplicável
tratamento privilegiado perante aquelas' (cf. 'Para uma dogmática do direito
penal secundário', in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, página
74) ou, dizendo com ANDRÉ VITU citado por MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA (A
Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas - Novas Perspectivas, in Ciclo de
Estudos de Direito Económico, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra, 1985,
páginas 185 e seguintes): 'os entes colectivos devem ser penalmente perseguidos,
porque a sua responsabilidade permite repartir melhor as sanções repressivas e
atingir não apenas os indivíduos que actuam física e intencionalmente, mas
também os guarda-ventos, atrás dos quais se abrigam e nos quais depositam os
meios materiais propícios à sua acção. A responsabilidade penal tende a não ser
somente uma questão de indivíduos, de seres humanos que executam actos materiais
voluntários, mas também sanção de uma actividade colectiva tanto mais temível
quanto implica o risco de ser mais poderosa e mais anónima' (sublinhado
acrescentado).
Aliás, já no domínio do Decreto-Lei nº 41.204, de 24 de
Julho de 1957 - que foi revogado pelo Decreto-Lei nº 28/84 -, o artigo 3º
prescrevia que 'as sociedades civis e comerciais são solidariamente responsáveis
pelas multas e indemnizações em que forem condenados os seus representantes ou
empregados, contanto que estes tenham agido nessa qualidade ou no interesse da
sociedade, salvo a prova de que procederam contra ordem da administração'. Ou
seja: embora se não previsse, autonomamente, a responsabilidade penal das
pessoas colectivas, verificados que fossem certos pressupostos, elas eram
responsabilizadas, solidariamente com os seus representantes ou agentes, pelo
pagamento das multas e indemnizações em que estes fossem condenados pela prática
de infracções contra a economia ou contra a saúde.
Além disso, a responsabilidade criminal das pessoas
colectivas, já antes do Decreto-Lei nº 28/84, tinha sido introduzida no nosso
direito: admitida pelo artigo 11º do Código Penal, foi o que sucedeu com o
artigo 7º do Decreto-Lei nº 630/76, de 28 de Julho (relativo a ilícitos no
domínio das operações cambiais) e com o artigo 21º do Decreto‑Lei nº 187/83, de
13 de Maio (relativo a infracções fiscais aduaneiras). E, após a publicação do
Decreto-Lei nº 28/84, continuou ela a ser consagrada noutros diplomas legais,
sem que, alguma vez, a Assembleia da República sentisse necessidade de
especificar que a autorização que concedia ao Governo para legislar sobre a
'definição de crimes, penas...' incluía a faculdade de prever a responsabilidade
criminal das pessoas colectivas: é o que sucedeu, por exemplo, com a Lei nº
9/86, de 30 de Abril (ao abrigo da qual foi editado o Decreto‑Lei nº 424/86, de
27 de Dezembro: cf. os seus artigos 32º e 33º), com a Lei nº 7/89, de 21 de
Abril (ao abrigo da qual foi editado o Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de
Outubro: cf. artigo 7º) e com a Lei nº 89/89, de 11 de Setembro (ao abrigo da
qual foi editado o Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro: cf. artigo 7º).
5.2.3. Já se disse que não há norma ou princípio
constitucional que impeça o legislador de, neste domínio das infracções contra a
economia e contra a saúde, prever a responsabilidade criminal das pessoas
colectivas (e equiparadas).
O Direito Penal moderno está, é certo, construído sobre
o princípio da culpa, como, aliás, não podia deixar de ser nos quadros de um
Estado de Direito, todo ele assente na dignidade da pessoa humana.
Ora, quando se fala em culpa, tem-se em vista o homem
individual (o homem considerado em si mesmo), pois que só ele, enquanto ser
livre, dotado de inteligência e vontade próprias, pode cometer infracções
penais, ser 'centro ético-social de imputação jurídico-penal' (a expressão é de
FIGUEIREDO DIAS).
A doutrina e a jurisprudência nacionais entendiam, por
isso, maioritariamente, que societas delinquere non potest, só aceitando a
responsabilidade das pessoas colectivas a título excepcional.
Assim, EDUARDO CORREIA (Direito Criminal, I, Coimbra,
1963, página 32) escrevia:
Igualmente se deve respeitar, em regra, o princípio da individualização da
responsabilidade, negando-se imputabilidade penal às pessoas colectivas, com o
que não queremos dizer que não seja possível aplicar-lhes certas medidas
administrativas, como v.g. a dissolução, quando a sua actividade, em dado
momento, se tornou prejudicial à sociedade.
E, mais adiante, a páginas 234, acrescentava o mesmo
autor:
Assim, por um lado, só o comportamento humano, a negação de valores pelo homem
pode considerar-se uma acção no sentido descrito. [...] O comportamento de que
se parte é o comportamento humano e, em princípio - ao contrário do que acontece
em todos os outros ramos do direito, nomeadamente no civil -, só o dos
indivíduos e não o das colectividades: 'societas delinquere non potest'. Pelo
que a irresponsabilidade criminal das pessoas colectivas deriva assim logo da
sua incapacidade de acção e não apenas, como querem alguns, da sua incapacidade
de culpa.
Mais recentemente, MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA (Direito
Penal Português, I, Verbo, 1981, página 261) escreveu:
O facto voluntário é actividade privativa dos homens; qualquer homem pode
praticar factos voluntários.
Não existe capacidade penal das pessoas colectivas; só os órgãos individualmente
considerados de pessoas colectivas podem ter responsabilidade penal. Societas
delinquere non potest.
(No mesmo sentido, também JOÃO DE CASTRO E SOUSA, As pessoas colectivas em face
do direito criminal e do chamado 'direito de mera ordenação social', Coimbra,
1972, página 163 e seguintes).
Quanto à jurisprudência, veja-se, por todos, o acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Abril de 1976 (Boletim do Ministério da
Justiça, nº 256, páginas 55) e a respectiva anotação; e, no mesmo Boletim, nº
275, página 276, o sumário do acórdão da Relação do Porto, de 17 de Janeiro de
1978.
Todo este tema teve, no entanto, que ser repensado,
fundamentalmente, face aos elevados danos materiais e morais provocados pela
criminalidade económica (em resultado, designadamente, de certas formas de
super-industrialização e da multinacionalidade de muitas empresas), aliados à
circunstância de a 'transferência da responsabilidade, que verdadeiramente caiba
à pessoa colectiva qua tale, para o nome individual de quem actue como seu órgão
ou representante' conduzir muitas vezes - 'sobretudo nos delitos económicos das
grandes empresas, v.g. multinacionais com diversificadas esferas da
administração, donde deriva uma acentuada repartição de tarefas e de
competência' - 'à completa impunidade, por se tornar impossível a comprovação do
nexo causal entre a actuação de uma ou mais pessoas individuais e a agressão do
bem jurídico produzida ao nível da pessoa colectiva' (cf. FIGUEIREDO DIAS, Para
uma dogmática do direito penal secundário, Revista cit., página 74).
EDUARDO CORREIA, em escrito mais recente ('Notas
críticas à penalização de actividades económicas' in Revista de Legislação e
Jurisprudência, ano 116º, páginas 361 e seguintes), pôde, por isso, afirmar:
A possibilidade da responsabilidade colectiva das sociedades, de que hoje tanto
se fala, constituirá, eventualmente, um caminho para alargar as reacções contra
delitos antieconómicos.
Aliás, EDUARDO CORREIA afirmara já, no decurso dos
trabalhos preparatórios do Código Penal de 1982, justamente a propósito do
artigo 8º do Projecto (correspondente ao artigo 11º do Código) o seguinte:
Em homenagem a razões particulares e, em todo o caso, excepcionais, pode
admitir-se que haja lugar à aplicação de certas reacções a sociedades ou outras
pessoas colectivas, reacções que podem ter a natureza de penas ou de medidas
de segurança (cf. Actas das
Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte geral, página 110).
O mesmo Autor, num outro escrito [cf. Introdução ao
Direito Penal Económico, Revista de Direito e Economia, ano III, nº 1 (1977),
páginas 3 e seguintes] - depois de referir que 'nos sistemas continentais tem
sido, desde longa data, consagrado o princípio societas delinquere non potest,
sem que tal exclua a possível responsabilidade de quem age como titular dos
órgãos de qualquer sociedade, pessoa colectiva ou como representante de outrem,
ainda que lhe faltem pessoalmente certos requisitos previstos na lei ou o
princípio da apreensão das vantagens, recompensas e proveitos do crime de que,
mesmo quando pessoa colectiva beneficie' - acrescenta:
Por outro lado, reconhece-se, hoje - importa lembrá‑lo -, a responsabilidade por
infracções de mera ordenação social de pessoas jurídicas. Há também quem
proponha a criação de um direito penal, constituído pela violação de deveres de
fiscalização.
Para além disso, importa considerar a possibilidade de aplicação de medidas de
segurança a pessoas colectivas.
Ainda na doutrina nacional - para além de FIGUEIREDO
DIAS (Para uma dogmática do direito penal secundário, já citado, e, juntamente,
com COSTA ANDRADE, Problemática geral das infracções antieconómicas, in Boletim
do Ministério da Justiça, nº 262, páginas 5 e seguintes) e de MANUEL ANTÓNIO
LOPES ROCHA (A Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, já citada) -
também JOSÉ FRANCISCO FARIA E COSTA (O Perigo em Direito Penal - Contributo para
a sua compreensão e fundamentação dogmáticas, Coimbra, 1992) e ALBERTO ESTEVES
REMÉDIO (Sobre a responsabilidade criminal das pessoas colectivas, in Revista do
Ministério Público, ano 14º, nº 53, páginas 68 e seguintes) - aceitam hoje, sem
discussão, a responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
FARIA E COSTA escreve, a propósito, na página 451:
Foi dentro deste traçado dogmático que o diploma penal relativo às infracções
contra a economia veio consagrar - aliás, no seguimento da mais moderna doutrina
e legislação que o direito comparado nos concede - o princípio da
responsabilidade penal das pessoas colectivas como um dos axiomas centrais desta
específica área da normatividade penal.
Em suma: temos a vigorar no direito penal comum o princípio orientador de que a
responsabilidade penal deve, tanto quanto possível, restringir-se ao domínio da
comunicabilidade do ser-pessoa (física), enquanto que vigora, no direito penal
económico, o princípio‑regra de que as pessoas colectivas são também penalmente
responsáveis. Dito de forma sincopada: em termos analíticos, a excepção
permitida pelo direito penal comum transforma-se em regra nesta particular área
do direito penal secundário (direito penal económico).
[Também de FARIA E COSTA, cf. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos
seus órgãos ...,in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 4/92, páginas 537
e seguintes).
O legislador, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 28/84,
de 20 de Janeiro, deu, de resto, conta da novidade que representou a
'consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas colectivas e
sociedades, a que algumas recomendações de instâncias internacionais como o
Conselho da Europa, se referem com insistência'. E acrescentou:
Tratando-se de um tema polémico em termos de dogmática jurídico-penal, nem por
isso devem ignorar‑se as realidades práticas, pois se reconhece por toda a parte
que é no domínio da criminalidade económica que mais se tem defendido o abandono
do velho princípio societas delinquere non potest.
Em todo o caso, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas é
consagrado com prudência: exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do
agente-pessoa singular e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em
representação ou em nome deste e no interesse colectivo.
E tal responsabilidade tem-se por excluída quando o agente tiver actuado contra
ordens expressas das pessoas colectivas.
Até à consagração da responsabilidade penal das
pessoas colectivas, que - repete-se - se fez sob a pressão da necessidade de dar
combate eficaz à criminalidade económica (white collar criminality) - houve, no
entanto, que vencer imensos obstáculos de ordem teórica.
Se alguns dos argumentos, que se esgrimiam a favor da
irresponsabilidade criminal das pessoas colectivas, eram pouco consistentes,
outros pareciam quase impossíveis de ultrapassar.
Assim, o argumento relativo à incapacidade da pessoa colectiva para se
arrepender, intimidar, emendar ou para ser reeducada, não resistia à
consideração de que as penas não têm só finalidades de intimidação e de emenda.
Do mesmo modo, o argumento de que as pessoas colectivas não podem ser metidas na
cadeia, apenas chama a atenção para o facto de que - como assinala EDUARDO
CORREIA (Notas críticas ... cit.) - 'neste quadro', têm que prever-se
'particulares sanções económicas, como, por exemplo, interdições, sanções
pecuniárias, injunções, publicidade, apreensões de bens, etc.'. Também o
argumento tirado do princípio da pessoalidade das penas , segundo o qual a
condenação da pessoa colectiva seria injusta, por ir atingir membros inocentes
do grupo (v.g. accionistas da sociedade que não participaram na infracção ou,
mesmo, administradores que votaram contra deliberação que esteve na sua origem)
se não mostra probante: basta lembrar que quem participa numa sociedade e
confere a outrem poderes de administração contrai laços de solidariedade, que o
comprometem a aceitar consequências desse tipo.
Mais valioso é o argumento de que não há
responsabilidade sem culpa.
É que, o ente colectivo, enquanto tal, é incapaz de
culpa, para além de (para certa doutrina) ser também, incapaz de acção.
Para ultrapassar esta dificuldade, a doutrina fez
apelo a ideias como as que vão implicadas no princípio do alter ego (a
responsabilidade criminal da pessoa colectiva decorre do facto de se deverem
considerar como seus os actos da pessoa física que actua em sua representação e
no seu interesse) ou no adágio respondeat superior (a responsabilidade da pessoa
colectiva, em vez de ser directa e pessoal, seria uma responsabilidade delegada,
já que o autor da infracção não passava de um agente subordinado seu, de um seu
braço).
Estas justificações eram claramente insuficientes. E
isso forçou a busca de novas razões para legitimar a consagração da
responsabilidade criminal das pessoas colectivas, que se tornava cada vez mais
urgente e que, um pouco por toda a parte, as legislações iam acolhendo, com
maior ou menor amplitude (cf. sobre isto, o já citado estudo de LOPES ROCHA).
Entre nós FIGUEIREDO DIAS (Para uma dogmática do
direito penal secundário cit.), a páginas 73 e 74, do ano 117º da Revista de
Legislação e Jurisprudência - depois de chamar a atenção para que a tese que
considera que as pessoas colectivas não podem ser agentes dos tipos-de-ilícito
de direito penal secundário 'só pode louvar-se numa ontologificação e
autonomização inadmissíveis do conceito de acção, a esquecer que a este conceito
podem ser feitas pelo tipo-de-ilícito exigências normativas que o conformem como
uma certa unidade de sentido social' - acrescenta:
E tão-pouco me parece impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias
possíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz. Certo que, na acção como
na culpa, tem-se em vista um 'ser-livre' como centro ético-social de imputação
jurídico-penal e aquele é o do homem individual. Mas não deve esquecer‑se que as
organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem individual, 'obras
da liberdade' ou 'realizações do ser-livre'; pelo que parece aceitável que em
certos domínios especiais e bem delimitados - de acordo com o que poderá
chamar‑se, seguindo MAX MÜLLER, o princípio da identidade da liberdade - ao
homem individual possam substituir-se como centros ético-sociais de imputação
jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as pessoas
colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o ser-livre se
exprime.
O mesmo autor, depois de frisar ser evidente que 'se
torna necessário usar aqui de um pensamento analógico, relativamente aos
princípios do direito penal clássico - onde a máxima da responsabilidade
individual deve continuar a valer sem limitações' - e de acentuar que, fazer
apelo a um pensamento anológico, não é lançar mão de ficções, acrescenta:
Fica assim aberto, do ponto de vista dogmático, o indispensável caminho para se
admitir uma responsabilidade no direito penal secundário, ao lado da eventual
responsabilidade das pessoas individuais que agem como seus órgãos ou
representantes.
Se esta é ou não uma fundamentação teórica
satisfatória para a responsabilidade criminal das pessoas colectivas é o que,
aqui, não tem que decidir-se. Nesta sede, o que importa considerar é que, sendo
o Estado de Direito material um Estado de justiça (um Estado que está empenhado,
em função de considerações axiológicas materiais de justiça, na promoção das
condições económicas, sociais e culturais para o livre desenvolvimento da
personalidade do homem, designadamente, na sua actuação social), deve ele dar
combate (se necessário for, pelo recurso a sanções penais) às violações mais
graves dos respectivos bens jurídicos. E, sendo tais violações cometidas, as
mais das vezes, por pessoas colectivas, e não por pessoas individuais, as
exigências de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de Direito não podem
deixar de legitimar, sub specie constitutionis, normas, como as que aqui estão
sub iudicio, que consagram a responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
[Sobre o tema dos delitos antieconómicos, cf. ainda MANUEL DA COSTA ANDRADE, A
Nova Lei dos Crimes Contra a Economia (Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro) à
Luz do Conceito de 'Bem Jurídico', in Ciclo de Estudos de Direito Económico
cit., páginas 71 e seguintes].
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a
decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 8 de Junho de 1995
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Bravo Serra
Guilherme da Fonseca
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa