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Proc. nº 100/94
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Judicial da comarca de Elvas, por sentença de 26 de Fevereiro de 1992, A foi julgado e condenado como autor de um crime de contrabando de circulação qualificado, previsto e punido pelos artigos
22º, nº 1, e 23º, alíneas c), d) e f) do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro, além do mais, na pena de um ano de prisão e 170 dias de multa à taxa diária de 8.500$00
(o que totaliza a multa de 1.445.000$00, ou em alternativa, 113 dias de prisão).
Na fundamentação da sentença teve-se como provada, no que aqui importa reter, a seguinte factualidade:
'No dia 4 de Novembro de 1989, pelas 22 horas e 30 minutos, o arguido conduzia o seu veículo de matrícula nº .. -.. -.., na Estrada Nacional nº 4, no sentido Caia-Elvas.
Ao chegar ao local denominado Fonte Branca, freguesia de Caia e S. Pedro, nesta comarca, foi o mesmo interceptado por elementos da Guarda Fiscal, que lhe passaram revista ao veículo.
No decurso da mesma, veio a ser detectada, escondida debaixo dos bancos e na mala do referido veículo, atrás do pneu suplente, a mercadoria [...] que constava de 860 relógios avaliados em 1.432.800$00 [...], valor no mercado interno e que constituia a única carga do veículo.
Tal mercadoria não se encontrava acompanhada da documentação legalmente exigida e, tratando-se na sua totalidade de relógios, estes não estavam contrastados.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que não podia transportar os relógios sem serem previamente marcados na competente contrastaria e que não podiam circular sem os documentos legalmente exigidos'.
Relativamente aos factos não provados, consignou-se na sentença o seguinte:
'Não se provou onde é que os relógios apreendidos foram fabricados e que fossem originários do território português - factos, entretanto, alegados pela defesa'.
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2 - Desta sentença interpôs o arguido, recurso para o Tribunal da Relação de Évora, suscitando na respectiva motivação a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 22º do Regime das Infracções Fiscais Aduaneiras, por violação do artigo 32º, nº 2 da Constituição.
E nas conclusões ali formuladas, na parte respeitante
à matéria de constitucionalidade, escreveu-se assim:
1º - Fez-se errada aplicação do artigo 22º, nº 1 do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras pois
2º - Se presumiu que o mesmo era aplicável a mercadorias nacionais e estrangeiras, quando de facto só se aplica às segundas, como resulta do seu cotejo com o nº 2 do mesmo artigo.
3º - Nem pode exigir-se que o arguido prove o carácter nacional das mercadorias, como o exige esse nº 2 pois
4º - Lançando sobre ele o ónus de tal prova, esse número é inconstitucional nessa parte, por violação do artigo 32º, nº 2 da Constituição que veda as presunções prévias de culpa'.
Por acórdão de 27 de Outubro de 1992, o Tribunal da Relação negou provimento ao recurso.
Como neste acórdão não se considerou explicitamente, quer no relatório, quer na decisão, a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, foi por este arguida a sua nulidade por omissão de pronúncia requerendo-se a sua sanação, vindo tal requerimento a ser indeferido pelo acórdão do mesmo Tribunal, de 11 de Janeiro de 1994.
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3 - Contra aquele acórdão interpôs então o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, socorrendo-se para tanto, depois de lhe ser feita a notificação a que se reporta o artigo 75º-A, nº 5 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, da norma do artigo 70º, nº 1, alínea b) desta mesma lei e indicando como normas cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciadas 'a do nº 2 do artigo 22º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, combinada com a do nº 1 do mesmo artigo'.
Nas alegações depois oferecidas concluiu-se deste modo:
1 - A origem das mercadorias - serem provenientes de outro território aduaneiro - constitui um elemento do tipo do crime de contrabando de circulação p.p. no artigo 22º do Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro.
2 - Mesmo que assim se não entenda, e se considere tal circunstância como uma mera condição de punibilidade, ainda assim o ónus da sua prova incumbe à acusação e não ao arguido.
3 - O artigo 22º, nº 2 do já citado diploma legal estabelece uma presunção de culpa do arguido ao dispôr que este será culpado a menos que prove a proveniência nacional das mercadorias transportadas.
4 - Tal disposição viola o artigo 32º, nº 2 da Constituição que consagra o princípio da presunção da inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto contestou a argumentação desenvolvida pelo recorrente, concluindo assim a sua contralegação:
1º - O crime de contrabando de circulação previsto e punido no artigo 22º, nº 1, do Regime das Infracções Fiscais Aduaneiras (aprovado pelo Decreto-Lei nº
376-A/89, de 25 de Outubro) é um crime de perigo abstracto, não constituindo elemento integrador deste tipo legal, a origem da mercadoria.
2º - Mesmo na interpretação segundo a qual no artigo 22º (nºs 1 e 2 analisados conjuntamente) se estabelece a presunção de origem não nacional da mercadoria detida em circulação sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigidos, ou sem a aplicação de outros sinais legalmente prescritos, aquela norma não viola o princípio da presunção de inocência (artigo 32º, nº 2 da Constituição).
3º - Deve, assim, negar-se provimento ao recurso.
Passados os vistos de lei, cabe apreciar e decidir.
E decidir, concretamente, se as normas dos nºs 1 e 2 do artigo 22º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, na sua interpretação conjugada, segundo a qual se presumem não nacionais as mercadorias que forem colocadas ou detidas em circulação no interior do território aduaneiro, sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos, atentam contra qualquer disposição ou princípio constitucional, maxime, o princípio da presunção da inocência a que se reporta o artigo 32º, nº 2, da Constituição.
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II - A fundamentação
1 - O Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro, no âmbito das Infracções Fiscais Aduaneiras em Especial (Parte II), trata dos Crimes Fiscais Aduaneiros (Capítulo I) nos artigos 21º a 34º, dispondo no artigo 22º, sobre o crime de contrabando de circulação, nos seguintes termos:
Artigo 22º
(Contrabando de circulação)
1 - Quem, por qualquer meio, colocar ou detiver em circulação no interior do território aduaneiro mercadorias em violação de leis aduaneiras relativas à circulação interna ou comunitária de mercadorias sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos será punido com prisão de três meses a dois anos e multa até 200 dias.
2 - Fazendo-se prova de que a mercadoria é originária do território aduaneiro ou já se encontrava nacionalizada, fica afastada a possibilidade de punição com base no disposto no número anterior, sem prejuízo da aplicação da sanção contra-ordenacional que ao caso couber.
3 - A tentativa é punível.
Para a apreensão do exacto sentido e alcance deste preceito importa ter presente o que se prescreve no artigo 39º do mesmo diploma, cuja formulação, na parte a reter, e na versão em vigor aquando da prática dos factos a que se reportam os autos, era a seguinte:
Artigo 39º
(Circulação irregular de mercadorias)
1 - A quem colocar ou detiver em circulação no território aduaneiro mercadorias nacionais ou nacionalizadas, cuja circulação não seja livre, sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos será aplicável a coima de 10.000$ a 1.000.000$.
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Verifica-se assim, por um lado, que se consagrou o tipo legal de crime de contrabando de circulação, autonomizando-se a sua previsão relativamente ao crime de importação e de exportação de contrabando
(a que se reporta o artigo 21º) e adoptando-se para tal efeito o nomen que há muito vinha sendo utilizado pela doutrina e pela jurisprudência para caracterizar a circulação de mercadorias que, não sendo livre, se efectuasse sem o processamento dos documentos legalmente exigíveis (cfr. Regulamento das Alfândegas, aprovado pelo Decreto nº 31730, de 15 de Dezembro de 1941 e Portaria nº 9/80, de 5 de Janeiro).
Por outro lado, enquanto na contra-ordenação a que se reporta o artigo 39º, se prevê e pune quem colocar ou detiver em circulação no interior do território aduaneiro 'mercadorias nacionais ou nacionalizadas' já na definição dos elementos essenciais do crime de contrabando de circulação se faz alusão a quem, por qualquer meio, colocar ou detiver em circulação no interior do território aduaneiro 'mercadorias', sem se especificar qual a sua directa proveniência.
Mas, e significativamente, no nº 2 do artigo 22º, ressalva-se que, no caso de se fazer prova de a mercadoria ser originária do território aduaneiro ou já se encontrar nacionalizada, fica afastada a possibilidade de punição com base no crime de contrabando de circulação, sem prejuízo da aplicação da sanção contra-ordenacional que ao caso couber, sempre que a mercadoria não seja, cumulativamente, de circulação livre e não se faça acompanhar de documentos ou outras formalidade legais exigíveis.
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2 - No entendimento do recorrente, a origem das mercadorias - serem provenientes de outro território aduaneiro - constitui um dos elementos do tipo legal do crime de contrabando de circulação.
E, acrescenta, porque se estabelece no artigo 22º, nº
2 do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, uma 'presunção de culpa do arguido ao dispôr que este será culpado a menos que prove a proveniência nacional das mercadorias transportadas' há-de tal normativo ter-se por violador do artigo 32º, nº 2, da Constituição, que consagra o princípio da presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
Mas não lhe assiste razão.
Mesmo quando se admita que no nº 1 do artigo 22º se estabelece a presunção de que as mercadorias em circulação sem se fazerem acompanhar dos documentos ali referidos são estrangeiras, isto é, não são nacionais nem nacionalizadas, isso não significa a aceitação de uma presunção de culpabilidade do arguido, em termos de sobre ele recair o ónus de ilidir tal presunção.
A acolher-se a perspectiva do recorrente, aquela
norma, apenas estabelece uma mera presunção da origem estrangeira das mercadorias em circulação, desacompanhadas dos documentos exigíveis, e não já uma presunção da existência do próprio crime (cfr. a propósito das normas paralelas dos artigos 694º do Regulamento das Alfândegas e 36º, nº 5 e 9º, nº
2, alínea c), do Contencioso Aduaneiro e do Decreto-Lei nº 187/83, respectivamente, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 252/92, Diário da República, II série, de 27 de Outubro de 1992 e José Jesus Costa, Crimes e Contra-Ordenações Aduaneiras, Porto, 1984, pp. 62 e ss.).
Ora, como tem sido reiteradamente afirmado pela jurisprudência deste Tribunal, não constitui afrontamento ao princípio da presunção de inocência o facto de a lei estabelecer, em alguns tipos criminais, que a não demonstração da verificação de certos factos possa actuar em desfavor do arguido (cfr. por todos, o já citado acórdão nº 252/92 e também os acórdãos nºs 270/87 e 135/92, Diário da República, II série, respectivamente, de 28 de Agosto de 1987 e 24 de Julho de 1982).
Naquele segundo aresto, a propósito desta matéria, escreveu-se assim:
'Não é fácil determinar com inteiro rigor o exacto sentido deste princípio
[princípio da presunção da inocência do arguido], devendo, desde logo, assinalar-se que em matéria de prova ele não assume maior relevância que o princípio in dubio pro reo, cujas implicações são bem conhecidas. Ponto é que se acentue, como alguns autores expressamente referem, `a sua incidência no ónus material da prova (os poderes conferidos ao juiz em processo penal de averiguação da verdade não autorizam que se fale num ónus formal), não contendendo nem com a valoração das provas nem com a interpretação das normas penais, isto precisamente pela inexistência quer de uma presunção hominis, quer de uma presunção juris de inocência do arguido. A dúvida sobre a existência dos factos incriminatórios [...] resolve-se a favor do réu - a tanto se limita em matéria de prova a presunção de inocência do arguido' (cf. Rui Pinheiro e Artur Maurício, A Constituição e o Processo Penal, p. 88).
Por outro lado, como se assinala no já citado Ac. do STJ de 6.1.82 [Boletim do Ministério da Justiça, nº 313], `compreender-se-á também que, em certos tipos de crime, a lei, considerando o risco criminal e a difícil prova directa de certa actividade, ponha tal risco a cargo do agente e preveja para tal efeito a validade de um juízo circunstancial'.
A respeito desta específica incidência, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, 1974, p. 216, depois de recusar que em certos tipos de crime - arts. 408º e 409º do CP anterior (prova da verdade dos factos e calúnia) -, nos quais o não conseguimento da prova de certos factos ou circunstâncias actuava em desfavor do arguido, se verificaria uma excepção ao princípio, constituindo-se então a fórmula in dubio contra reum, evidencia que não se trata aí de `presunções de culpa' mas apenas de que em tais tipos legais de crime é posto a cargo do agente um certo risco pela sua conduta'
Deste modo, no sentido interpretativo sufragado pelo recorrente, a lei, ao presumir como não nacionais ou nacionalizados as mercadorias colocadas ou detidas em circulação no território aduaneiro, a descoberto dos documentos legalmente exigíveis, apenas presume um facto constitutivo da infracção, colocando a cargo do agente o respectivo risco da sua conduta omissiva.
Não se trata porém de qualquer presunção de culpabilidade, mas tão só da imputação à conduta do agente de um risco objectivo, admitindo-se, no entanto, que o arguido através dos elementos trazidos ao processo demonstre que 'a mercadoria é originária do território aduaneiro ou já se encontrava nacionalizada', isto é, que tal risco não se concretizou num dano, não justificando, consequentemente, a punibilidade da conduta.
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3 - Em outra vertente de apreciação do tema em apreço, há-de dizer-se que a estruturação do crime de contrabando de circulação tal como se encontra tipificada na norma do artigo 22º, nº 1, se configura como um crime de perigo abstracto.
Como é sabido nos crimes de perigo abstracto não se pressupõe 'nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias para causar um perigo para um desses bens jurídicos'.
Nestes crimes o perigo não é elemento do tipo mas tão só 'motivação do legislador'. A sua consumação não implica uma efectiva lesão dos bens jurídicos tutelados pela respectiva norma - a economia nacional, a saúde pública, o respeito pelas regras definidoras da concorrência e dos mercados - sendo que a perigosidade da acção (comissiva ou omissiva) resulta presumida pelo legislador. (cfr. sobre os crimes de perigo e a sua legitimidade constitucional, para além do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 426/91, Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992, Rui Carlos Pereira, O Dolo de Perigo, Lisboa, 1995, pp. 22 e ss; José Francisco Faria e Costa, O Perigo em Direito Penal, Coimbra, 1992, pp. 620 e ss e Hans-Heinrich JeschecK, Tratado de Derecho Penal - Parte General, tradução em castelhano, 4ª ed., Granada, 1993, pp. 238 e 239).
A obrigatoriedade de certas mercadorias circularem no território aduaneiro - 'espaço compreendido entre a fronteira terrestre do continente e a linha ou linhas que constituem o limite exterior do mar territorial da zona contígua portuguesa, acrescido do território das Regiões Autónomas das Açores e da Madeira e respectivas zonas contíguas', na definição do artigo 2º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico em causa - acompanhadas de guias ou outros documentos, quando a regra geral é a da livre circulação de mercadorias, visa e tutela de determinados bens que a complexidade da vida moderna revelou serem merecedores de tratamento acautelado.
Como assinalou Schröder, no âmbito de uma conferência da AIDP expressamente destinada a debater este tema 'Rapport particulier' (da Alemanha), Revue Internationale de Droit Pénal, 1969, nºs 1 e 2, pp. 7 e 8, citado no já referido Acórdão 426/91, 'a circulação rodoviária, o tráfico de armas e de estupefacientes e a comercialização de produtos alimentares e farmacêuticos constituem alvos preferenciais do legislador, na criação de incriminações de perigo'. Nestes casos, a elevada perigosidade típica da conduta exige e legitima que nela se se concentre a tutela penal, independentemente da sua conexão com um concreto evento de perigo ou de risco.
Ora, o legislador do Decreto-Lei nº 376-A/89, dando consistência normativa a uma aquisição conceitual da jurisprudência e da doutrina, autonomizou o crime de contrabando de circulação estruturando-o como um crime de perigo, assim expressamente assumido na respectiva exposição preambular:
'A par de diversos aperfeiçoamentos de ordem formal e sistemática, sublinha-se a separação dos tipos de crime agora previstos nos artigos da norma incriminadora do contrabando, justificada pelo facto de se entender tratar-se de crimes autónomos, com carácter de crimes de perigo, e que, por isso, não devem ser confundidos com o contrabando em sentido próprio, nesta linha se autonomizando também o chamado 'contrabando de circulação'.
A perigosidade da acção, no crime do artigo 22º, nº
1, traduz-se em colocar ou deter em circulação no interior do território aduaneiro mercadoria de circulação condicionada sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigiveis, sendo indiferente para aquela previsão que as mercadorias em causa sejam nacionais, nacionalizadas ou originárias de outro território aduaneiro.
A perigosidade pressuposta pelo legislador não envolve porém qualquer inversão do ónus da prova contra reo, já que apenas separa a punibilidade da conduta da lesão efectiva de um bem, admitindo-se, porém, como causa da exclusão dessa punibilidade, a prova da proveniência da mercadoria.
Tratando de uma questão similar, no já citado acórdão nº 426/91, (cfr. também o acórdão nº 441/94, Diário da República, II Série, de
27 de Outubro de 1994), firmou-se o seguinte entendimento:
' (...) se a incriminação de perigo abstracto é admissível constitucionalmente, ante os princípios da necessidade e da culpa, então não faz sentido referir uma inversão do ónus da prova; o cometimento do crime deve ser, naturalmente, provado pela acusação, no plano das imputações objectiva e subjectiva; o que se não requer é a comprovação de que foi criado um perigo ou de que o meio de cometimento do crime foi perigoso, precisamente porque a incriminação não se funda no perigo concreto causado, mas na perigosidade geral da acção, isto é, na sua aptidão causal para causar perigos de certa espécie, abstraindo de outras circunstâncias também necessárias para que algum destes perigos se produza realmente; e, da mesma sorte, não se exige que o dolo abarque o perigo'.
E assim sendo, não importando averiguar nos casos concretos a perigosidade da acção, o crime de contrabando de circulação mostra-se preenchido pela conduta de quem colocar ou detiver em circulação no interior do território aduaneiro mercadoria de circulação condicionada, sem o processamento dos documentos legalmente exigíveis.
Como quer que seja, à luz de qualquer das interpretações ensaiadas, sempre há-de concluir-se pela não inconstitucionalidade da norma sob sindicância.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos nºs 1 e 2 do artigo 22º, conjugadamente analisadas, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro;
b) Negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão impugnado.
Lisboa, 29 de Fevereiro de 1996
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa