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Procº nº 104/96 ACÓRDÃO Nº 596/96
1ª Secção Relator: Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1.- Nos presentes autos em que são recorrentes A, B e C, e recorrido o Ministério Público, o relator elaborou exposição preliminar ao abrigo do artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, considerando tratar-se de questão já equacionada em decisões anteriores deste Tribunal.
2.- Ouvidas as partes, veio o recorrido manifestar inteira concordância com o teor da exposição, tendo os recorrentes se pronunciado desfavoravelmente, o que fizeram, no entanto, em termos que não põem em causa o parecer do relator.
3.- Assim, pelas razões constantes da exposição preliminar, não contrariadas na resposta dos recorrentes, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 17 de Abril de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Dinis
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa
Processo nº 104/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Exposição a que se refere o artigo
75ªA, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
I
1.- O Tribunal de Competência Genérica de Macau -2º Juízo - condenou, por acórdão de 17 de Março de 1995 (fls. 1562 e segs., rectificado a fls. 1593):
1) A, na pena de quatro anos de prisão, como autor material de um crime previsto e punível no artigo 18º, nº 1, da Lei nº 1/78/M, de 4 de Fevereiro, com referência aos artigos 432º, 437º, 421º, nºs. 1 e 5, 105º, nº 1, e 104º, nº 2, do Código Penal
(de 1886);
2) D, na pena de quatro meses de prisão, como autor material de um crime previsto e punível pelo artigo 349º do mesmo Código;
3) A e E, na pena de dezasseis anos e seis meses de prisão maior, cada um, como autores materiais de um crime previsto e punível pelo artigo 349º do mesmo Código;
4) B, na pena de doze meses de prisão maior, como autor material de um crime previsto e punível pelo artigo 349º do mesmo Código;
5) F e C, na pena de treze anos de prisão maior, cada um, como autores materiais de um crime previsto e punível pelo artigo 349º citado;
6) B, na pena de catorze anos de prisão maior, como autor material de um crime previsto e punível pelo referido artigo
349º;
7) G, na pena de sete anos de prisão maior, como autor material de um crime previsto e punível pelo artigo 349º do Código Penal.
2.- Recorreram para o Tribunal Superior de Justiça de Macau:
a) o Ministério Público, obrigatoriamente
- artigos 473ºe § único, 526º e 647º, nº 2, § 1º do Código de Processo Penal
(de 1929) - fls. 1588;
b) A, B e C, conjuntamente (fls. 1589);
c) F - fls. 1590.
No momento oportuno apresentaram os recorrentes as suas alegações e o Ministério Público contra alegou.
O Ministério Público defende a manutenção da decisão recorrida, o réu F pretende a revogação do acórdão na medida em que o condenou pelo crime de homicídio voluntário, p. e p. pelo artigo 349º do Código Penal, e os demais recorrentes entendem que deveria ser anulado o julgamento em
1ª instância para ampliação e clarificação da matéria de facto.
Subiram os autos ao Tribunal Superior de Justiça de Macau e, então, o respectivo Magistrado do Ministério Público, lavrou parecer no sentido de, perante os factos dados como provados, corresponderem molduras penais mais graves (fls. 1636 e ss.).
Notificados, nos termos e para os efeitos do nº 2 do § 1º do artigo 667º do CPP, responderam F (fls. 1643), A, B e C, conjuntamente (fls. 1658) e, ainda, como 'recorrente e recorrido', A (fls. 1645 ss.), contrariando a tese defendida pelo Ministério Público.
3.- O Tribunal Superior de Justiça de Macau, por acórdão de 22 de Novembro de 1995 (fls. 1668 e ss), concedeu provimento parcial ao requerido pelo Ministério Público e, em consequência, revogou em parte a decisão recorrida, estabelecendo, nessa parte, as seguintes condenações:
1) A - nove anos de prisão maior, como autor material de um crime de roubo concorrendo com cárcere privado, p.p. no artigo 434º do Código Penal;
2) A - dezoito anos de prisão maior, como autor material de um crime de roubo (tentado) concorrente com homicídio, p.p. no artigo 433º do Código Penal;
3) B - que também aparece como B... e “B” - doze anos de prisão maior, como autor material do mesmo crime referido em 2);
4) G - doze anos de prisão maior, como actor material do mesmo crime referido em 2);
5) H e C, ou C... - dezassete anos de prisão maior, cada um, como autores materiais do mesmo crime referido em 2).
4.- Inconformados, recorreram para o Tribunal Constitucional, A, B e C, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (fls. 1703).
Invocam, para o efeito, a inconstitucionalidade material do artigo 447º do Código de Processo Penal, 'por violação do princípio geral de que aos arguidos, em processo criminal, será assegurada protecção global e completa dos seus direitos de defesa (artº. 32º, nº 1, da CRP) e por violação do princípio do contraditório (artº 32º, nº 5, da CRP)'.
Os recorrentes suscitaram a questão de inconstitucionalidade na resposta por si apresentada após terem sido notificados do parecer do Ministério Público, nos termos do artigo 667º (nº 2 do
§ 1º) do CPP, já aludido.
II
1.- Decorre da exposição feita que se indicia congregarem-se os pressupostos necessários para o recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 ser recebido: os recorrentes reagiram tempestivamente, satisfizeram a exigência dos nºs. 1 e 2 do artigo 75º-A deste diploma, suscitaram a inconstitucionalidade de norma que foi utilizada na decisão recorrida, da qual não cabe recurso ordinário, e, avance-se desde já, fizeram-no em tempo oportuno.
É certo que, na referida peça processual, após aludirem à proibição da reformatio in pejus contida no §1º do artigo 667º do CPP e criticarem a atitude assumida pelo Ministério Público, enquadram a questão de constitucionalidade por si suscitada nos artigos 447º e 448º do CPP. E que o acórdão recorrido sublinhou não terem os mesmos 'caracterizado devidamente a norma cuja conformidade à Constituição contestam'.
Diz-se, com efeito, a certo passo do aresto:
'[...]Na verdade, tal norma não é tão somente a do artº 447º (e
448º) do CPP, mas, sim, 'a norma que se contém nas disposições combinadas dos artsº. 447º e 667º, parágrafo 1ª, nº 1, que se pode formular da seguinte forma: o tribunal de última instância pode condenar por infracção diversa daquele porque o Réu foi condenado no Tribunal recorrido, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constam do despacho de pronúncia ou equivalente' [...]. E isto porque se estabelece no parágrafo 1º e seu nº 1, do artº 667º do CPP, que a proibição da 'reformatio in pejus' não se verifica quando o Tribunal Superior qualificar diversamente os factos, nos termos dos artsº. 447º e 448º, quer a qualificação respeite à incriminação quer a circunstâncias modificativas da pena' (sublinhados originais).
Não deixa, porém, de estar em causa, mesmo que conjugadamente com o artigo 667º, na medida em que se trata de recurso, o disposto no aludido artigo 447º (a norma contida no artigo 448º, diga-se em breve parêntesis, ao permitir a convolação para infracção diversa com base em factos não constantes da acusação, se tiver por efeito a diminuição da pena, não foi, na realidade e no caso concreto, aplicada).
Por sua vez, não obsta à admissibilidade do recurso o problema da suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade, a respeito da qual tem o Tribunal Constitucional jurisprudência firme que se reitera.
2.- Entende-se, a essa luz, que o ónus da suscitação deverá ser exercido antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma arguida ou a interpretação que lhe foi dada e se pretenda discutir.
Só assim não ocorrerá nos contados casos em que antes de esgotado esse poder, o interessado não tenha tido oportunidade processual de colocar o problema, situações excepcionais ou anómalas em que, por exemplo, uma decisão insólita ou surpreendente lhe coarcte a possibilidade de recorrer. Em princípio, no entanto, têm valimento as considerações tecidas em anteriores acórdãos deste Tribunal - como o nº 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 - segundo as quais não pode deixar de recair sobre as partes em juízo 'o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretende socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada)'.
É que, como, nomeadamente, mais se ponderou no acórdão nº 479/89, 'não pode deixar de recair sobre as partes o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por, outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso - acrescentar-se-á - também logo mostra como a simples 'surpresa' com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais [...] em que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação 'prévia' da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo'.
3.- No concreto caso, e à luz das precedentes considerações, dir-se-ia que o apelo do Tribunal Superior de Justiça às normas do Código de Processo Penal de 1929 relativas à possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da pronúncia ou equivalente e reafirmados na sentença proferida no primeiro grau de jurisdição nada tem de insólito ou imprevisível, pelo que deveriam os ora recorrentes, precavidamente, ter antecipado as suas reservas quanto à eventual utilização de normas, a seu ver inconstitucionais.
Seria este, no entanto, um entendimento segundo o qual os recorrentes, além de sujeitos ao espartilho formal que a exigência de observância dos pressupostos de admissibilidade do recurso cria - inevitavelmente, face ao texto legal, na linha jurisprudencial deste Tribunal -
teriam necessidade de convocar, em termos que se poderiam considerar injustificados e desproporcionados, disposições legais eventualmente desfavoráveis. O que se não pode exigir-lhes: se o arguido, ou o seu defensor, deve conhecer o direito e organizar a sua contestação considerando todas as possíveis qualificações de que os factos acusados podem ser objecto, não só não se poderá negar ser natural que parta da presunção da correcção da subsunção jurídica para organizar a sua defesa, como deve reconhecer-se que uma modificação da qualificação jurídica pode traduzir-se em seu desfavor (cfr. Eduardo Correia, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, 1948, págs. 140 e segs.).
Ou seja, em casos como o subjacente, a avaliação antecipada de uma diferente qualificação jurídica dos factos não se assume como
ónus exigível de alegação, antes de esgotado o poder jurisdicional de cognição do tribunal a quo - o que vale dizer ser este um daqueles casos excepcionais de dispensa do respectivo pressuposto.
4.- Ora, o questionado artigo 447º foi aplicado pelo acórdão recorrido - na realidade, em conjugação com o artigo 667º, §1º, nº 1
- na interpretação que permite ao tribunal de recurso condenar os réus por infracção diversa, e mais grave, daquela por que foram condenados em 1ª instância, desde que os elementos constitutivos dessa outra infracção constem da acusação e da pronúncia e desde também que os réus sejam ouvidos sobre a possibilidade de vir a fazer-se essa outra qualificação jurídica dos factos, assim lhes dando oportunidade de se defenderem quanto a ela.
Com efeito, no parecer que deu, nos termos do artigo 664º do mesmo Código, o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Superior de Justiça ponderou que os factos provados constituem crimes
'bem mais graves do que aqueles pelos quais os RR foram condenados'. E, consequentemente, extraíu daí as ilações jurídicas correspondentes, como se colhe da leitura da sua intervenção de fls. 1636 e ss., nomeadamente quando escreve:
'[...]Ora, dos factos provados resulta que o ofendido foi 'preso' pelos RR. melhor ids. no acórdão recorrido, entre os quais parte dos RR. recorrentes, e espancado (espancamento esse de que lhe resultaram lesões que lhe provocaram a morte), tendo o ofendido sido retido 'pelo tempo que fosse necessário para receberem a quantia exigida (HK$100.000,00).
Se é certo que aquela quantia havia sido furtada pelo ofendido e que o Reu. A a queria reaver, não menos certo e que o roubo do credor ao devedor
é igualmente punida, tendo em conta o disposto no artº 439º do C. Penal.
Consequentemente, tendo-se provado o homicídio, o crime praticado pelos RR. condenados apenas por este crime é, para além do cárcere privado, p. ep. pelo artº 331º do C. Penal, o de tentativa de roubo com homicídio, p. e p. pelo artº 433º do C. Penal, embora atenuada por força do disposto no artº 439º do mesmo Código.
Por sua vez, o Reu. A, também envolvido no cárcere, este consumado, cometeu um crime de roubo qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo artº 434º,
§2º, do C. Penal.
Tendo em conta que os autores do homicídio concretizaram as agressões durante cerca de 3 horas - aliás, basta ver as fotografias de fls. 88 e segs. -, entende o MºPº que revelarem, manifestamente perversão e malvadez, pelo que, atento ao disposto no artº 67º, §2º, do C.Penal, devem ser declarados delinquentes por tendência'.
5.- A normal tramitação do processado pressuporia, então, que, recebido o recurso, se designasse prazo para as alegações.
Opta-se, no entanto, por lavrar exposição nos ternos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, tendo em conta não só o facto de estar equacionada uma questão já tratada, consensualmente, por decisões anteriores de Tribunal - como se passará a referir - como por ser a solução mais compaginável, sem tocar nas garantias de defesa que o processo deve constitucionalmente garantir, com a actual situação prisional dos réus, mantida há longo tempo, embora sem prejuízo do respeito pelos prazos legais de privação da liberdade após a formação da culpa, que se verifica - cfr. o §1º do artigo
273º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro.
III
1.- Estão em causa, essencialmente, duas normas do Código de Processo Penal aplicável no Território de Macau.
O artigo 447º - respeitante a convolação para infracção diversa - preceitua no seu corpo:
'O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.'
A norma transcrita é aplicada nos recursos por força da remissão que para ela faz o artigo 667º do mesmo Código e nº 1 do seu
§1º, que igualmente se reproduzem, nas partes que interessam:
'Interposto recurso ordinário de uma sentença ou acórdão somente pelo réu [...], o tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrente:
1º- Aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida;
-----------------------------------
4º- Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
§1º- A proibição estabelecida neste artigo não se verifica:
1º- Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, nos termos dos artigos 447º e 448º, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena;
-----------------------------.'
Ora, a questão de constitucionalidade equacionada respeita à descrita interpretação normativa do artigo 447º (em articulação com o artigo 667º e seu §1º, nº 1).
Não é, todavia, a primeira vez que o Tribunal Constitucional a defronta.
Assim, e relativamente ao artigo 418º, nº 2, do Código de Justiça Militar, correspondente ao artigo 447º, o acórdão nº 173/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992, este Tribunal decidiu que, por violação das garantias de defesa, a norma constante do artigo 418º, nº 2, do Código de Justiça Militar - que prescreve que 'o tribunal apreciará sempre especificamente na sua decisão os factos alegados pela acusação e pela defesa ou que resultarem da discussão da causa, podendo condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do libelo' - é inconstitucional, 'na parte em que permite ao tribunal condenar por infracção diversa daquela de que o arguido foi acusado (caso os factos que integrem o respectivo tipo incriminador constem do libelo acusatório), quando a diferente qualificação jurídico-penal dos factos conduzir à condenação do arguido em pena mais grave, mas tão-só na medida em que não prevê que se previna o arguido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
Tese que, na sua essencialidade, foi recolhida e reafirmada no acórdão nº 451/93, publicado no Diário da República, II Série, de
27 de Abril de 1994.
Por sua vez, no acórdão nº 279/95, publicado no citado Diário, II Série, de 28 de Julho de 1995, o Tribunal decidiu - também por violação do princípio das garantias de defesa - que é inconstitucional 'o disposto no artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs. 1 e 2, e 379º, alínea b), e interpretado nos termos constantes do assento nº 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhes dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
Ainda com interesse de citação, dada a afinidade da questão, o acórdão nº 402/95, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Novembro de 1995, julgou não ser inconstitucional a norma do artigo 352º, §
único, do Código de Processo Penal de 1929, interpretado no sentido de que, em caso de recurso do despacho de pronúncia, a 2ª instância pode agravar a qualificação jurídico-penal dos factos já constantes da acusação e da pronúncia, mesmo quando o recurso é interposto só pelo arguido e no interesse da sua defesa.
É que, ponderou-se aí, 'não se pode falar [..] aqui numa agravação da posição do recorrente, no recurso que ele interpôs no seu interesse. E muito menos numa reformatio in pejus [...]'. E não pode falar-se numa agravação - disse-se - 'quando se considere o processo no seu conjunto', pois que o arguido 'ficou desde já precavido conta a possibilidade dessa convolação'.
Finalmente, o recente acórdão nº 22/96, de 26 de Janeiro último, ainda inédito, sintetizando a anterior jurisprudência, considera não existir preceito constitucional que proíba o tribunal do julgamento ou o do recurso de qualificar os factos por que o arguido foi acusado e pronunciado de modo diverso daquele por que os qualificou o tribunal recorrido, ainda que essa diferente qualificação importe agravação da sua posição, como sucederá no caso de condenação por crime diferente ou em pena mais grave.
2.- Se o tribunal de recurso qualifica os factos constantes da acusação diferentemente do juiz do julgamento, a defesa pode, na verdade, ser gravemente prejudicada, frustrando-se, assim, não só a estratégia seguida como a utilidade e a pertinência dos passos anteriormente prosseguidos, na 1ª instância e nas alegações do recurso.
Na verdade, como se observou no citado acórdão nº
173/92, 'se soubesse que corria o risco de vir a ser condenado por um crime mais grave, ou até simplesmente por um crime diverso, ainda que de igual ou até de menor gravidade, o arguido podia ter preferido constituir advogado em vez de se contentar com o defensor oficioso nomeado pelo tribunal; podia ter escolhido um outro advogado especializado na matéria em causa; podia ter-se ocupado a carrear para os autos elementos de prova que achou desnecessários face à incriminação constante da acusação, designadamente em matéria de circunstâncias atenuantes; podia, inclusive, ter assentado o seu esforço probatório e argumentativo em afastar a relevância de determinados elementos de facto que, se bem que indicados na acusação, eram de todo em todo inúteis face ao tipo criminal indicado na acusação ou na pronúncia'.
Em síntese, pois, e citando um vez mais o acórdão nº 173/92: 'a faculdade de alteração da incriminação constante da acusação, quando consentida sem que o arguido tenha sido oportunamente prevenido da possibilidade de tal alteração, de modo a dar-lhe a oportunidade de modificar a sua defesa tendo em conta o novo enquadramento jurídico, pode implicar um grave prejuízo para a defesa, em violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1, da Constituição'.
3.- Tal não ocorrerá, porém, se - como pondera o acórdão nº 22/96 que seguiremos de perto - existir um mecanismo processual capaz de permitir ao arguido que se defenda de uma nova incriminação, nomeadamente quando a esta corresponder pena mais grave do que a que lhe foi aplicada na sentença recorrida.
Desde que, observa-se no aludido aresto, 'o arguido seja prevenido da possibilidade de uma diferente qualificação jurídico-penal dos factos constantes da pronúncia; e desde que, quanto a ela, se lhe dê oportunidade de defesa, o tribunal pode proceder a essa diferente qualificação e condená-lo por crime diverso ou em pena mais grave, sem que viole o princípio das garantias de defesa ou qualquer outro princípio ou preceito constitucional
(maxime, o princípio do contraditório ou o artigo 18º da Constituição).
Constando do parecer do Ministério Público a proposta de uma diferente qualificação jurídico-penal dos factos, proporciona-se essa oportunidade de defesa, sempre que ao réu se notifica esse parecer, dando-se-lhe possibilidade de o contraditar.
Na verdade, estando os factos assentes, basta-lhe discuti-los juridicamente.'
O acórdão abona-se, ainda, na jurisprudência:
'É esta a solução que este Tribunal adoptou para os casos em que, no visto (artigo 664º do Código de processo Penal de 1929), o Ministério Público emite parecer que, de qualquer modo, desfavorece a posição do réu. O Tribunal decidiu que o que a Constituição exige em tal ocorrência é que ao réu se dê oportunidade de se pronunciar sobre esse parecer do Ministério Público (cf. acs. nºs. 150/87, 398/89, 495/89, 496/89, 350/91, 356/91 e 150/93, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1987, de 14 de Setembro de
1989, de 28 de Janeiro de 1991, de 1 de Fevereiro de 1990, de 3 de Dezembro de
1991, de 24 de Abril de 1992 e de 29 de Março de 1993, respectivamente)'.
A decisão do acórdão nº 22/96, suportada em linha jurisprudencial consistente, tem aplicação inequívoca ao caso sub judicio, ao qual se ajusta na perfeição.
Com efeito, também aqui o tribunal recorrido interpretou e aplicou o artigo 447º em termos de prevenir os arguidos da possibilidade de vir a qualificar os factos de forma diferente da feita pelo tribunal de 1ª instância: foi-lhes dada notícia da possibilidade de uma qualificação jurídico-penal mais grave e sobre ela tiveram os recorrentes oportunidade de se defenderem, expondo as suas razões, como efectivamente o fizeram.
IV
Em face das considerações sumariamente tecidas e tendo particularmente em conta tratar-se de questão já objecto de decisões anteriores do Tribunal, emite-se parecer no sentido de negar provimento ao recurso, por forma a manter-se o decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Ouçam-se as partes por 5 dias - nº 1 do artigo
78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Lisboa, 12 de Março de 1996
Alberto Tavares da Costa