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Processo n.º 89/12
Plenário
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. O Presidente da Assembleia de Freguesia de Pindelo dos Milagres remeteu ao Tribunal Constitucional um ofício em que se afirmava: “vem a Freguesia de Pindelo dos Milagres, nos termos do artigo 25.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24/8, submeter a esse tribunal, para efeitos de fiscalização preventiva da constitucionalidade e legalidade, deliberação da Assembleia de Freguesia quanto ao arrendamento de terreno baldio propriedade da Freguesia, para instalação de fábrica de transformação de subprodutos de carne de origem animal de categoria 3 e categoria 1”. O requerimento vinha instruído com cópia da “Minuta da Ata n.º 11 de 2012” da sessão extraordinária da Assembleia.
Solicitado, em despacho liminar, o envio do texto da deliberação a que se refere o n.º 1 do artigo 28.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto (doravante LORL), foi o mesmo recebido neste Tribunal no dia 9 de fevereiro de 2012. É o seguinte o seu teor:
“Deliberação aprovada em minuta
Na sessão realizada em vinte e sete de Janeiro de dois mil e doze, a Assembleia de Freguesia de Pindelo dos Milagres aprovou, em minuta para imediata execução, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 92.º da Lei 169/99, de 18/9, na redação da Lei 5-A/2002, a seguinte deliberação:
«Realização de referendo local, com a seguinte questão: Concorda com o arrendamento de terreno baldio propriedade da Freguesia, para instalação de fábrica de transformação de subprodutos de carne de origem animal de categoria 3 e categoria 1?»
O texto da deliberação foi aprovado por unanimidade com sete votos a favor.” (Seguem-se as sete assinaturas dos membros da Assembleia de Freguesia)
2. Autuado e distribuído o processo, proferiu o relator despacho em que, considerando que o texto da Ata refere que “a comissão de compartes deliberou a gestão dos baldios na Junta de Freguesia” e que da questão a submeter a referendo local consta a expressão “terreno baldio da propriedade da Freguesia”, solicitava cópias do documento pelo qual os compartes delegaram a gestão/administração do baldio na Junta de Freguesia (com discriminação, se for o caso, dos poderes delegados) e de documento que titule a alegada propriedade de tal baldio pela freguesia, bem como informação sobre se todos os fregueses de Pindelo dos Milagres eram compartes do baldio em causa e se só fregueses de Pindelo dos Milagres o eram.
3. Respondeu o Presidente da Assembleia de Freguesia, confirmando que “são compartes todos os fregueses da freguesia de Pindelo dos Milagres (Pindelo dos Milagres e Rio de Mel)” e remetendo cópia de uma Ata da reunião da Assembleia Geral de Compartes, do dia 14 de maio de 2000, na qual se procedeu à eleição de uma Comissão de Compartes (para substituir o Conselho Diretivo eleito em 1995, pelo facto de não ter aparecido nenhuma lista ao ato eleitoral convocado para 13 de abril de 1999) e se aprovou uma proposta “delegando na Junta de Freguesia de Pindelo dos Milagres os poderes de administração dos baldios, assim como os poderes de usufruir dos seus rendimentos e movimentar as contas bancárias que estão em nome da Comissão de Compartes ou Conselho Directivo da Comissão de Compartes da Freguesia de Pindelo dos Milagres, incluindo as verbas à data aí depositadas, no respeito do n.º 1 do Artigo 22.º da Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro”. Mais consta da referida Ata ter sido formalizado o protocolo entre a Junta e a Comissão, onde se afirma: “1. A Junta de Freguesia compromete-se a aplicar os rendimentos dos baldios em obras concretas e contempladas no Plano Anual de Actividades da Autarquia. 2. A Junta de Freguesia realizará duas reuniões anuais com a Comissão de Compartes, uma para dar a conhecer onde tenciona aplicar as verbas e outra para dar conta das verbas aplicadas, em momentos coincidentes com a apresentação do Plano Anual de Actividades e do relatório da conta de gerência da Junta de Freguesia à Assembleia de Freguesia. 3. A Comissão de Compartes pode retirar os poderes delegados à Junta de Freguesia, após decisão dos compartes em Assembleia para o efeito convocada, se considerar que esta não está cumprir o protocolo agora estabelecido ou não tiver qualquer acção directa nos baldios.” Nada se disse, porém, sobre a expressão “terreno baldio da propriedade da Freguesia”.
4. Resulta, assim, dos autos, com relevância para a decisão, que:
a) Existe uma Assembleia de Compartes do baldio de Pindelo dos Milagres;
b) Essa Assembleia elegeu, em 1995, um Conselho Diretivo e, em 14 de maio de 2000, uma “Comissão de Compartes”;
c) A mesma Assembleia aprovou, nessa reunião de 14 de maio de 2000, uma proposta “delegando na Junta de Freguesia de Pindelo dos Milagres os poderes de administração dos baldios, assim como os poderes de usufruir dos seus rendimentos e movimentar as contas bancárias”;
d) Todos os fregueses de Pindelo dos Milagres serão compartes do baldio;
e) A 27 de janeiro de 2012 reuniu a Assembleia de Freguesia de Pindelo dos Milagres, em reunião extraordinária e com a seguinte ordem de trabalhos: “Assuntos da ordem do dia: — 1.° Discussão e votação sobre as seguintes propostas do executivo: 1.1 — Arrendamento de terreno no Baldio destinado à instalação de fábrica de Pet-foo[d].
— Período de intervenção do público”.
f) Nessa reunião da Assembleia de Freguesia, a proposta em causa foi rejeitada;
g) No seguimento da rejeição, o Presidente da Junta de Freguesia apresentou uma proposta de realização de um referendo local;
h) De imediato, a Assembleia aprovou uma proposta da Junta de Freguesia de “Realização de referendo local, com a seguinte questão: Concorda com o arrendamento de terreno baldio propriedade da Freguesia, para instalação de fábrica de transformação de subprodutos de carne de origem animal de categoria 3 e categoria 1?”
Tudo visto, cumpre decidir.
II - Fundamentação
5. Compete ao Tribunal Constitucional, em fiscalização preventiva obrigatória, verificar a constitucionalidade e a legalidade do referendo (artigo 223.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, artigos 11.º e 105.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, e artigos 25.º e seguintes da LORL). Vejamos então.
6. Este Tribunal teve já ocasião de se pronunciar sobre o enquadramento constitucional dos baldios e sobre a evolução histórica do regime a que estão legalmente sujeitos. Fê-lo nos Acórdãos nºs 325/89 e 240/91, tendo afirmado neste último:
«[...] Logo a seguir ao 25 de Abril, antes ainda do início da vigência da Constituição, foram editados os Decretos-Leis n.ºs 39/76 e 40/76, ambos de 19 de Janeiro, diplomas esses que pretenderam, conforme expressa declaração preambular, operar a restituição dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossadas pelo Estado, correspondendo-se assim a uma reivindicação antiga e constante dos povos, ocasionando-se por essa forma três mudanças jurídicas essenciais: (1) pôs-se fim à administração dos baldios pelas autarquias locais, transferindo-a para as comunidades de compartes; (2) determinou-se a restituição dos baldios de que o Estado se apossara para florestação; (3) estipulou-se a recuperação dos baldios indevidamente apropriados por particulares. [...]
[…] no Acórdão n.º 325/89, teve-se por indiscutível não poderem «levantar-se dúvidas sérias acerca da necessária referência dos baldios à categoria constitucional dos bens comunitários, tendo sido essencialmente em vista dos baldios que se formaram os princípios constitucionais relativos aos bens comunitários. Isso decorre naturalmente do contexto histórico da formação da parte económica da Constituição a esse respeito, da evidente ligação entre o conceito constitucional de ‘bens comunitários’ e a definição dos baldios constante do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 39/76 (‘terrenos comunitariamente usados e fruídos’), bem como com o conceito de ‘coisas comuns’ do Código Civil de 1867, cuja componente principal eram justamente os baldios».
Aliás, a caracterização dos baldios como componente essencial dos «bens comunitários» é unânime na doutrina, como coisa que não carece de demonstração, de tão evidente que é.
Por outro lado, e no que respeita à natureza jurídica dessa categoria de bens, considerou-se no Acórdão que a referência a «bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais» [alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da Constituição na sua versão originária] «apontava claramente para a ideia de que tais bens não apenas estariam na posse e gestão das comunidades locais, como também lhes pertencia a respectiva titularidade, visto que, de outro modo, não se justificaria a qualificação de tais bens (‘bens comunitários’), o que não ocorria no caso das alíneas a) e b) do mesmo n.º 2 do artigo 89.º da Constituição, quanto aos dois outros subsectores do sector público». [...]
Era assim indiscutível, segundo o entendimento perfilhado no aresto, que os «bens comunitários» a que se refere a alínea c) são bens «pertencentes a comunidades», como se diz no proémio desse preceito, distinguindo-se esses bens, também quanto à titularidade, dos bens «pertencentes a entidades públicas», designadamente às entidades públicas territoriais (desde o Estado à freguesia). Isto é, esclareceu-se, sem margem para dúvidas, que os «bens comunitários» são mesmo bens pertencentes a comunidades, e não bens pertencentes a entidades públicas.
Este ponto passou a ser pacífico na doutrina. […].
Teve entretanto lugar a revisão constitucional de 1989 que introduziu significativas alterações no texto constitucional, particularmente no âmbito da organização económica. […]
A revisão de 1989 implicou [...] as alterações seguintes: (1) passou a garantir-se, em vez da existência, a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção; (2) os meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais, deixam de integrar o sector público e passam a fazer parte do sector cooperativo e social; (3) a protecção do sector cooperativo e social da propriedade dos meios de produção, constitui um dos princípios fundamentais da organização económico-social; (4) deixa de se fazer referência à propriedade social e ao seu desenvolvimento.
À luz destes preceitos e princípios constitucionais, tendo em conta o exacto sentido dos projectos de lei de revisão constitucional citados e o significado dos debates parlamentares travados na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional [...], pode dizer-se que a passagem dos bens comunitários possuídos e geridos pelas comunidades locais, do sector público para o sector cooperativo e social, deve ser entendida como um reforço da garantia constitucional desses bens e da sua específica natureza e uma afirmação da sua autonomia dominial.
[...]
Tem-se, na sua generalidade, por rigorosas as posições defendidas nos textos de que se deixou transcrição podendo assim afirmar-se que os baldios constituem o núcleo essencial e imprescindível dos «meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais» integrados no sector de propriedade cooperativo e social, pertencendo a essas comunidades, comunidades de «vizinhos» ou «compartes» que não se confundem com comunidades territoriais autárquicas, não apenas a posse e gestão, mas também a própria titularidade dominial desses meios de produção.
E isto é assim, porquanto, para além das razões já aduzidas, a revisão de 1989, ao desenvolver uma lógica de desestatização dos bens comunitários face ao Estado e ao sector público da propriedade, trouxe para estes bens um acréscimo da sua autonomia enquanto bens integrados no sector cooperativo e social, autonomia essa que há-de traduzir-se num reforço da dominialidade comunitária ou cívica dos baldios.
[...]
A constitucionalização expressa desses meios de produção comunitários torna claro que se visou dar guarida jurídico-constitucional a uma categoria de bens (meios de produção) incluídos no sector cooperativo e social, subjectivamente imputáveis a título de propriedade, posse e gestão a certas e determinadas comunidades locais.
Consequentemente, estes meios de produção comunitários (nos quais se incluem os baldios) são imputáveis, quanto à titularidade-dominial, a uma colectividade-comunidade de habitantes que não se confunde com as colectividades territoriais autárquicas. Esta titularidade dominial é dos «povos», «utentes», «vizinhos» ou «compartes» e não já das freguesias ou grupos de freguesias (neste sentido um parecer do Prof. Gomes Canotilho, junto ao processo n.º 71/89, no qual foi tirado o já citado Acórdão n.º 325/89).
A titularidade dominial dos baldios, tal como acaba de ser definida, significa que, nos termos constitucionais, as comunidades locais são titulares dos seus direitos colectivos — sejam de gozo, sejam de uso, sejam de domínio — como comunidade de habitantes, valendo quanto a ela os princípios da auto-administração e auto-gestão.
[…] Verificou-se assim, neste domínio, uma alteração de filosofia política que conduziu ao desenvolvimento de uma lógica de autonomia acrescida dos «bens comunitários» face ao Estado, e ao desenvolvimento de uma lógica de desestatização.
Com isto, os baldios viram sublinhada a distinção entre a titularidade comunitária e a propriedade pública, bem como a diferença entre domínio cívico e domínio público. [...]”]
Destes Acórdãos ressaltam claras não só as características deste tipo de “bem comunitário” - «terrenos possuídos e geridos por comunidades locais», de acordo com o n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro (doravante Lei dos Baldios) -, mas também a sua evidente autonomização em relação aos bens que são titularidade das coletividades territoriais autárquicas e que estão submetidos à administração dessas mesmas autarquias.
7. A possibilidade de realização de referendos a nível local está prevista no n.º 1 do artigo 240.º da Constituição, o qual estatui que as autarquias locais podem submeter a referendo dos respetivos cidadãos eleitores matérias incluídas nas competências dos seus órgãos, nos casos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer.
No caso presente, tendo em atenção o objeto do referendo em causa, não são manifestas as hipóteses de possível desconformidade material entre qualquer dos sentidos possíveis do resultado da consulta e a Constituição da República, ou seja, não se descortina que qualquer das duas possíveis respostas à pergunta formulada – sim ou não - determine a prática de atos desconformes com a Constituição (no sentido da apreciação da constitucionalidade material da questão colocada, no âmbito do controlo da constitucionalidade do referendo, pronunciou-se o Tribunal, desde logo, no Acórdão n.º 288/98, disponível, como todos os outros acórdãos deste Tribunal adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt). Por outro lado, resultando da lei que, além de limites temporais, existem limites positivos e negativos cuja ultrapassagem inviabiliza, de todo, a realização de um referendo local, analisar-se-ão, desde logo, eventuais ilegalidades resultantes da violação de tais limites, apenas se examinando outras eventuais ilegalidades que sejam suscetíveis de sanação se, acaso, nenhuma existir que inviabilize, em definitivo, a realização do referendo. Pode, assim, passar-se à análise do referendo no que respeita à inserção da matéria na competência dos órgãos da autarquia, em que, como se afirmou no Acórdão n.º 359/2006, “a verificação do respeito pelo limite constitucional («…incluídas nas competências dos seus órgãos») se desloca para o confronto com o regime jurídico constante da lei ordinária. […].”.
8. O referendo local só pode ter por objeto questões de relevante interesse local que devam ser decididas pelos órgãos autárquicos municipais ou de freguesia e que se integrem nas suas competências, quer exclusivas, quer partilhadas com o Estado ou com as regiões autónomas (artigo 3.º, n.º 1, da LORL), sendo certo que algumas matérias estão expressamente excluídas do âmbito do referendo (artigo 4.º do mesmo diploma). Daí que se torne necessário determinar se a questão que, em concreto, se pretende colocar ao eleitorado preenche as exigências do n.º 1 do artigo 3º da LORL.
8.1. Um primeiro problema que se pode colocar é o de saber se um eventual arrendamento de terreno baldio (caso se admita legalmente possível) deve ser decidido por órgãos da freguesia.
Para o resolver, convirá ter presente, por um lado, que, de acordo com o estatuído na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição, os meios de produção comunitários - possuídos e geridos por comunidades locais – integram o setor de propriedade cooperativo e social e que o artigo 1.º da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro (doravante Lei dos Baldios) estatui, por seu turno, que: “1 – São baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais. 2 – Para os efeitos da presente lei, comunidade local é o universo dos compartes. 3 – São compartes os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio” (sublinhado aditado). Daqui resulta, como já se referiu e transparece também claramente da jurisprudência do Tribunal, a natureza comunitária deste tipo de bem e a sua evidente autonomia de princípio em relação aos bens de que as coletividades territoriais autárquicas são titulares e que estão submetidos à sua administração.
Acresce, que, de acordo com a Lei dos Baldios, as comunidades locais se organizam, para o exercício dos atos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes baldios, através de uma assembleia de compartes, um conselho diretivo e uma comissão de fiscalização (artigo 11.º, n.º 2), sendo a assembleia de compartes constituída por todos os compartes e o conselho diretivo e a comissão de fiscalização formados por membros eleitos por aquela assembleia (artigos 14.º e 15.º, n.º.1, alínea b)). Por sua vez, nos termos do estatuído na alínea m) do n.º 6 do artigo 34.º da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro (que estabelece o quadro de competências, bem como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias), é competência própria da junta de freguesia “Proceder à administração ou à utilização de baldios sempre que não existam assembleias de compartes, nos termos da lei dos baldios” (sublinhado aditado), não contendo a mesma lei qualquer disposição sobre baldios na parte referente à competência da assembleia de freguesia. Assim, da conjugação da Lei dos Baldios com o citado artigo 34.º, n.º.6, alínea m), da Lei n.º 169/99, é indubitável que, existindo assembleia de compartes, as juntas de freguesia não detêm qualquer competência própria em matéria de baldios.
No caso, sendo conhecido que existe uma Assembleia de Compartes do baldio de Pindelo dos Milagres, que não só elegeu um Conselho Diretivo em 1995, como elegeu uma “Comissão de Compartes” em 2000, está excluída qualquer competência própria dos órgãos da freguesia nesta matéria. E assim sendo, deve entender-se que não cabe aos órgãos da freguesia decidir sobre matéria respeitante ao baldio. Na verdade, os baldios não são matéria que, à partida, deva ser considerada de poder local. Havendo assembleia de compartes é a esta, como conjunto de compartes de um bem comunitário gerido e possuído pela comunidade, e não aos eleitores recenseados que cabe decidir as questões que aos baldios respeitam. E nem se diga que uma eventual coincidência do universo dos compartes com o dos eleitores recenseados, como consta de informação prestada nos autos e pode resultar da lei (n.º 6 do artigo 33.º da Lei dos Baldios) para os casos de “renitente inexistência de recenseamento dos compartes, por inércia de todas as entidades referidas nos n.ºs 3 e 4” (assembleia de compartes, grupos de 10 compartes ou junta de freguesia), permitiria metamorfosear cidadãos eleitores interessados na coisa pública em compartes de uma propriedade comunal. Não permite pois os títulos de intervenção são irremediavelmente diversos: os baldios pertencem à comunidade dos vizinhos e não aos fregueses.
Tanto basta para que a matéria em causa seja, desde logo, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da LORL, considerada insuscetível de submissão a um referendo local, o que inviabiliza a realização do presente referendo.
8.2. Ainda que, porém, assim se não entenda, outra não será a conclusão a que se chega. Vejamos.
O artigo 22.º da Lei dos Baldios prevê a possibilidade de os compartes delegarem poderes de administração na junta de freguesia, em relação à totalidade ou a parte do baldio. Tal delegação deve ser deliberada em assembleia de compartes [artigo 15.º, n.º.1, alínea l) da Lei dos Baldios] e obedecer ao prescrito no n.º4 do artigo 22.º do mesmo diploma, segundo o qual, no ato de delegação, deverão formalizar-se os respetivos termos e condições, nomeadamente os direitos e os deveres inerentes ao exercício dos poderes delegados.
Independentemente de uma possível discussão quanto à natureza jurídica desta “delegação de poderes”, o que importa aqui reter é que a lei permite que os compartes transfiram o exercício de competências próprias de administração do baldio para uma (ou mais) junta(s) de freguesia. No presente caso, consta da Ata da Assembleia de Compartes realizada em 14 de maio de 2000 que, colocada à votação proposta de delegação na junta de freguesia de Pindelo dos Milagres da gestão do baldio (e dos respetivos rendimentos), a mesma foi aprovada “por maioria qualificada com nenhuma abstenção, três votos contra e quarenta e oito votos a favor, delegando na Junta de Freguesia de Pindelo dos Milagres os poderes de administração dos baldios, assim como os poderes de usufruir dos seus rendimentos e de movimentar as contas bancárias que estão em nome da Comissão de Compartes ou Conselho Directivo da Comissão de Compartes da Freguesia de Pindelo dos Milagres, incluindo as verbas à data aí depositadas, no respeito do n.º 1 do Artigo 22.º da Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro.”
Perante uma tal “delegação”, poderia pensar-se que a junta de freguesia passou a exercer “competência própria” ou, ao menos, “competência partilhada”, para efeitos do estatuído no n.º 1 do artigo 3.º da Lei dos Baldios. Sem razão, porém.
Competência própria para administrar o baldio já se viu que não é, uma vez que esta apenas existe no caso de inexistência de assembleia de compartes. Por outro lado, resulta do texto da lei que a competência partilhada é “com o Estado ou com as Regiões Autónomas”, o que exclui, desde logo, uma competência que ocorra por “delegação” dos compartes de um baldio. Mas, ainda que se admitisse que a competência partilhada o pudesse ser com quaisquer outras entidades, sempre se afigura necessário, para que se verifique uma situação de competência partilhada, que exista uma competência própria da Freguesia que, em determinada matéria, ela compartilhe com outra entidade. Ora não é isso que sucede em relação aos baldios quando exista assembleia de compartes. E daí que a conclusão deva ser a de que a questão se não integra nas competências da freguesia, quer exclusivas quer partilhadas, pelo que também aqui o referendo deve ser considerado ilegal, por violação do artigo 3.º, n.º 1, da LORL.
8.3. E nem se diga que, não havendo competência própria, a derivada de uma delegação genérica da gestão do baldio na Junta de Freguesia seria relevante para efeitos de determinar que a questão passaria a ser da competência da freguesia. É que, nesse caso, haveria que analisar qual a extensão dessa mesma competência quando o ato de delegação se limite – como sucedeu – a delegar “a gestão” do baldio e a transferir “poderes de usufruir” os rendimentos.
E neste particular, a natureza própria dos baldios e a consequente estrutura da respetiva administração leva a concluir que a designada “delegação de poderes” não permite cobrir o ato que se pretende realizar e submeter a referendo (de acordo com a Ata da Assembleia de Freguesia na qual se deliberou submeter o arrendamento do baldio a referendo local, tal arrendamento destina-se à instalação de uma “fábrica de transformação de subprodutos de carne de origem animal”, “pelo período de cinquenta anos”). Um primeiro argumento pode retirar-se da análise das competências do conselho diretivo do baldio e da inserção sistemática da delegação de poderes. Na verdade, na Secção III da Lei dos Baldios, com a epígrafe Conselho Diretivo, contém-se a previsão das competências de tal órgão, aí se destacando, no que aos presentes autos interessa, a competência para exercer em geral todos os atos de administração ou coadministração do baldio – alínea j) do artigo 21º. E o facto de ser nesta mesma secção (artigos 22.º e 23.º) que a lei prevê a delegação de poderes, cimenta o entendimento de que os poderes de administração “delegáveis” são apenas os próprios do Conselho Diretivo. Desta forma, mantendo-se intocada a necessidade de a assembleia de compartes ser chamada a deliberar nas matérias da respetiva competência e sendo certo que não cabe nas competências do conselho diretivo a celebração de um arrendamento por prazo superior a 6 anos – admitindo-se que tal seja possível para baldios –, nunca a junta de freguesia poderia receber tais poderes por delegação.
Por outro lado, nos termos do n.º 1 do artigo 12.º da Lei dos Baldios, os órgãos das comunidades locais deliberam, em regra, por maioria simples de votos dos membros presentes. Em certas matérias, porém, a lei exige uma maioria qualificada de dois terços desses membros: é o caso, entre outros, da deliberação da assembleia de compartes sobre a alienação ou a cessão de exploração de direitos sobre os baldios – n.º1, alínea j), e n.º 2 do artigo 15.º da Lei dos Baldios. Ao fazer depender a alienação ou oneração do baldio de uma deliberação com maioria qualificada, a lei espelha o imperativo comunal e democrático que preside ao baldio, onde qualquer comparte tem o direito de o fruir e as mais restritivas limitações à respetiva fruição não podem deixar de exigir tal maioria de vontades dos compartes. Ora, como também a delegação de poderes prevista nos artigos 22.º e 23.º da Lei dos Baldios exige deliberação da assembleia de compartes por maioria qualificada dos membros presentes (n.º1, alínea l), e n.º 2 do citado artigo 15.º da Lei dos Baldios), poderia tentar retirar-se desta coincidência a conclusão de que os poderes delegados na junta de freguesia podem abranger a totalidade das competências da própria assembleia de compartes. Afinal, sendo a delegação aprovada por maioria qualificada, poderia dizer-se que contemplará (salvo restrição da própria delegação de poderes) qualquer matéria para a qual seria necessário tal tipo de maioria. A natureza e o regime dos baldios, porém, revelam o oposto.
Na verdade, se é certo que a lei permite que a assembleia de compartes delibere a alienação parcial do baldio, nos estritos termos fixados no artigo 31.º da Lei dos Baldios, não é menos certo que tal corresponde à extinção parcial do próprio baldio - assim mesmo o recorda a alínea b) do artigo 26.º da mesma Lei. Ora, admitir que uma “delegação de poderes de administração” numa junta de freguesia poderia abarcar a competência para alienar uma parte do baldio, implicaria admitir também a possibilidade de essa junta fazer extinguir parcialmente o próprio baldio, resultado que não é compatível com o regime de posse e fruição destes bens comunitários.
Ou seja, existindo assembleia de compartes, apenas as competências próprias do conselho executivo são delegáveis na junta de freguesia. E, assim, competindo àquela assembleia deliberar sobre a cessão de exploração do baldio – e, por identidade de razão caso se entenda que a lei o não proíbe, também sobre o arrendamento -, não pode a junta de freguesia tomar qualquer decisão nesse sentido, por não deter competência (ainda que delegada) para o efeito. O que sempre acarretaria a conclusão sobre a ilegalidade do referendo em causa, por violação do artigo 3.º, n.º 1, da LORL.
9. Assim, tendo-se concluído no sentido de que a deliberação em exame sofre de vício insanável, uma vez que o objeto do referendo viola o disposto no n.º 1 do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, o que definitivamente impede a sua realização, torna-se desnecessário proceder à apreciação das demais questões sobre as quais competiria ao Tribunal pronunciar-se.
III –Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela ilegalidade, por violação do n.º 1 do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, do referendo local que, na sua sessão extraordinária de 27 de janeiro de 2012, a Assembleia de Freguesia de Pindelo dos Milagres deliberou realizar.
Lisboa, 28 de fevereiro de 2012.- Gil Galvão – Ana Maria Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Vítor Gomes – Carlos Pamplona de Oliveira – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – Maria João Antunes – João Cura Mariano (votei favoravelmente o acórdão apenas pelas razões que constam do ponto 8.1. da sua fundamentação) – Carlos Fernandes Cadilha (com declaração semelhante à do Cons. Cura Mariano) – Rui Manuel Moura Ramos.