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Proc. nº 216/91
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I CAUSA
1. No Tribunal da Comarca de Póvoa do Varzim foi intentada uma acção acção declarativa com processo ordinário em que o autor, C... - que se dedica à construção de edifícios 'que destina à venda em fracções'
- formulou os seguintes pedidos: se declare resolvido um contrato-promessa, que se mostra junto aos autos a fls. 46/47 (Vol I); se reconheça e decrete que ele autor tem direito a adquirir a totalidade do prédio/terreno mencionado nesse contrato, através do instituto da acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento de 3.300.000$00, correspondentes ao valor do terreno; se declare e condene os réus a reconhecerem que ele autor tem direito a fazer sua a quantia de 1.100.000$00 paga pelos primeiros e à qual imputa a 'natureza de sinal', por incumprimento da promessa, ao recusarem-se a outorgar no contrato prometido; se condenem os réus a ressarci-lo dos prejuízos que lhe causaram pelo incumprimento desse contrato-promessa, em montante a liquidar em execução de sentença.
1.1. São réus nessa acção M... e sua mulher I..., co-outorgantes no referido contrato-promessa. Neste prometeram ceder ao referido C... um terreno, sua propriedade na Póvoa de Varzim, comprometendo-se este a aí edificar um prédio com rés-do-chão e cinco andares cedendo aos réus, contra uma
'torna' de 1.500.000$00 (paga em diversas parcelas), o rés-do-chão destinado a garagem e os primeiro e segundo andares do edifício construído. Porém, ainda nos termos do contrato, comprometeu-se o C... a providenciar junto da edilidade local pela aprovação de mais um andar e caso este viesse a ser construído deixaria de ser devida a falada 'torna'. Contém o contrato-promessa outras cláusulas estabelecendo o valor do terreno e das fracções a edificar e diversas obrigações para ambas as partes.
1.2. Contestaram os réus formulando como pedido reconvencional : que lhes fosse reconhecido o direito à 'execução específica' do contrato-promessa em causa; se lhes reconheça serem legítimos proprietários do rés-do-chão, primeiro, segundo andares e quintal do dito prédio; se condene o autor e sua mulher, R...(cuja 'intervenção principal' requereram e foi aceite), a devolverem-lhes a quantia de 1.100.000$00 que receberam; se condenem, autor e interveniente, a pagarem-lhes uma indemnização pelos danos materiais e morais decorrentes de defeitos de construção nas fracções e do não cumprimento do contrato e o autor, ainda, a efectuar trabalhos de acabamento nas partes comuns do edifício.
2. Na 1ª Instância foi a acção julgada totalmente improcedente quanto aos pedidos do autor, mas integralmente procedente quanto aos pedidos reconvencionais dos réus, reconhecendo-se a estes, nomeadamente, 'o direito à execução específica do contrato prometido'.
2.1.Inconformados apelaram autor e interveniente.
Julgando tal recurso, decidiu o Tribunal da Relação do Porto revogar a sentença recorrida na parte em que decretou a execução específica do contrato-promessa, em que condenou o autor e a interveniente a pagarem uma indemnização aos réus e o primeiro a efectuar trabalhos de acabamento nas partes comuns do edifício, confirmando no mais a decisão da 1ª Instância.
Quanto à questão da execução específica concluiu o Tribunal da Relação pela impossibilidade desta, pois, sendo autor e interveniente casados no regime de comunhão geral de bens, a não participação da interveniente no contrato-promessa, levaria a que a execução do contrato prometido representasse a alienação, com intervenção de um só cônjuge, de um bem só possível mediante a intervenção de ambos, face ao disposto no artigo 1682º-A, nº 1 do Código Civil
(CC).
2.2. Inconformados recorreram, desta feita os réus/reconvintes, defendendo, quanto à questão da impossibilidade de execução específica do contrato prometido, além do mais, ser inconstitucional a interpretação do artigo 1682-A, nº 1, alínea a), do CC, que entendesse carecer do consentimento de ambos os cônjuges a alienação de imóveis através de empresa de comercialização destes, empresa pertencente a um dos cônjuges.
Tal inconstitucionalidade assumiria, na perspectiva dos aí recorrentes, a forma de violação dos artigos 13º, 47º e 60º da Constituição pela interpretação exposta.
O Supremo Tribunal de Justiça,apreciando o recurso, confirmou o entendimento do Tribunal da Relação quanto à questão da impossibilidade de execução específica, por força do artigo 1682-A, nº 1 alínea a) do CC, escrevendo a esse propósito :
'..., está em causa a execução específica do contrato (...). Apesar da longa argumentação dos recorrentes, a improcedência desta pretensão parece simples de justificar. Embora ao autor (casado em comunhão de bens com a interveniente) fosse lícito o contrato-promessa de compra e venda de prédios urbanos, o certo é que lhe faltava legitimação (coisa diferente da capacidade ou da legitimidade) para a venda dos mesmos sem consentimento da mulher (artigo 1682º-A do CC). Em tal situação, a execução específica é impraticável, pois não cabe ao Tribunal, na sentença, substituir o cônjuge estranho ao contrato-promessa(...) Assim sendo, não interessa adiantar mais nada para concluir pela improcedência da tese dos réus.'
3. Desta decisão, neste aspecto específico, recorrem os réus/reconvintes para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de No-vembro, indicando como norma objecto a referida alínea a) do nº 1 do artigo 1682º-A do CC, na interpretação seguida pelo Supremo Tribunal.
Das alegações que a propósito produziram, sublinham-se algumas das conclusões :
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6ª) A ratio legis da alínea a) do nº 1 do artigo 1682-A, não se verifica nem é extensiva ao âmbito do estabelecmento comercial;
7ª) A interpretação dada no acórdão ao artigo 1682-A, não proporciona o equilíbrio dos interesses em jogo;
8ª) O acórdão ofende e não tem em qualquer conta os legítimos interesses dos consumidores, violando o disposto no actual artigo 60º da Constituição;
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10ª) O acórdão conduz a um resultado consistente no oferecimento à classe dos empreiteiros e vendedores em nome individual de um fácil expediente para cometerem as maiores desonestidades em plena impunidade;
11ª Além disso, viola o disposto no artigo 1677-D do CC, bem como nos artigos
13º e 47º da Constituição ;
12ª) A alienação dos edifícios ou andares que constrói, por um empresário em nome individual, é um acto de administração - gestão do estabelecimento que em nada atinge a substância do património - estabelecimento, antes é a forma de possibilitar que este cumpra a sua finalidade económica;
13ª) Em todo o caso, ao empresário nesta situação tem que ser garantida a possibilidade de exercer o comércio, por si e sem tutelas, seja qual for a qualificação a dar aos actos em que se traduz essa actividade (artigo 1677º-D do CC e 47º da Constituição);
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20ª) A tese do acórdão recorrido quanto à possibilidade (quis-se dizer, certamente, impossibilidade) permite ao construtor, ou vendedor imobiliário, conluiar-se com o cônjuge, para ludibriar os promitentes compradores na total impunidade e, eventualmente, usar a ameaça de não outorga do contrato prometido, para obtenção de vantagens ilegítimas;
21ª) Em suma : a interpretação que o Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça deram ao nº 1, do artigo 1682-A do CC, colide, simultaneamente, com o entendimento da doutrina acerca da natureza do estabelecimento comercial, com outras disposições legais relativas à liberdade dos cônjuges quanto ao exercício da profissão ou actividade (cfr. artigo 1677-D do CC), e com normas constitucionais, designadamente as constantes dos artigos 13º, 47º e 60º, nº 1
('protecção dos seus interesses económicos') da lei fundamental (...)'.
Esgotado o prazo de alegação dos recorridos e após os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
4. Algumas das conclusões formuladas pelos recorrentes podem sugerir uma imputação de inconstitucionalidade à própria decisão ('O acórdão ofende...', 'O acórdão conduz...'). Porém, conjugando o teor das alegações, no recurso para o Supremo Tribunal e junto deste Tribunal, resulta claro estar em causa a não aceitação, numa perspectiva de conformidade constitucional, de determinada interpretação, seguida, tanto pela Relação como pelo Supremo, quanto à impossibilidade de execução específica do contrato prometido.
Com efeito, subjaz - e adiante caracterizaremos esta questão com mais pormenor - a ambos os Acórdãos determinada leitura interpretativa do artigo
1682º-A nº1, alínea a) do CC relativamente ao mecanismo da execução específica, sendo a essa leitura que a questão de inconstitucionalidade tem de ser reportada, não esquecendo que as recorrentes, previamente à decisão do Supremo, indicaram com suficiente precisão uma alternativa interpretativa a essa, posicionando-a, por oposição à interpretação da Relação e do Supremo, como constitucionalmente conforme.
Comecemos, pois, por caracterizar qual a interpretação da norma questionada seguida pela decisão recorrida.
5. Artigo 1682º - A
(Alienação ou oneração de imóveis e de estabelecimento comercial)
1. Carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens :
a) A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns;
b) A alienação, oneração ou locação de estabelecimento comercial, próprio ou comum.
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Esta disposição foi introduzida pela reforma do Código Civil operada pelo DL nº 496/77, de 25 de Novembro ( o diploma que procedeu à profunda reforma do Código decorrente da Constituição de 1976), se bem que o seu regime, no que se refere à alienação de imóveis próprios ou comuns, e do estabelecimento comercial, já constasse da versão inicial do Código de 1966 (v.artigo 1682º, nº
3 na versão anterior ao DL nº 446/77; cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil anotado, vol IV, 2ª ed., Coimbra 1992, págs.301 a 305).
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É consensual a interpretação desta disposição em termos de a necessidade de consentimento de ambos os cônjuges não abranger a promessa de alienação ou oneração dos imóveis, salvo quando - como dizem Pires de Lima e Antunes Varela por referência ao artigo 410º, nº 1 in fine do CC - 'o promitente adquirente pretenda vincular desde logo também o outro cônjuge' (ob. cit.,, pág.303, anotação 4). Porém, este entendimento - estamo-nos a referir apenas à promessa por um só dos cônjuges - carece de ser compaginado com a figura da execução específica nas suas consequências: consubstanciando-se esta (a sentença ex artigo 830º do CC) na produção, por via judicial, dos 'efeitos da declaração negocial do faltoso', a sua aceitação face a uma promessa de alienação não comparticipada ou autorizada por qualquer dos cônjuges frustaria a exigência de a alienação ser consentida por ambos. Este, aliás, o sentido da ressalva constante da parte final do nº 1, do artigo 830º (sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida': v. Mário Júlio de Almeida Costa, Contrato-Promessa. Uma síntese do regime actual, separata da Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa 1990, pág.49).
É nesta linha lógica que se encontra a jurisprudência que afirma ser impossível nestas circunstâncias a obtenção de execução específica do contrato prometido (v.Acórdãos do STJ de 28/6/84 e 21/3/85, nos BMJ 338, 409 e 345, 408; Acordãos da Relação do Porto de 6/11/87 e da Relação de Lisboa de 4/2/93, respectivamente nas CJ, Ano XII, Tomo 1, pág.191 e Ano XVIII Tomo 1, pág. 132).
5.1. A situação dos autos apresenta, no entanto, uma especificidade : o imóvel 'alienado' através da execução específica sê-lo-ia - sem consentimento de um dos cônjuges, é certo - mas por cônjuge titular de
'estabelecimento' de venda de imóveis e no âmbito da actividade desse
'estabelecimento'.
Ocorrendo esta particularidade há quem entenda estar-se já fora do espírito do artigo 1682º-A, nº 1, alínea a), nada obstando à alienação por um só dos cônjuges e, logicamente, à execução específica da promessa (v.:Antunes Varela, Direito da Família, 3ª ed., Lisboa 1993, pág. 388; Lobo Xavier/Manuel Henrique Mesquita, Sobre o artigo 1682º, nº 1, al. a), do Cód.Civil: desnecessidade de consentimento do cônjuge do empresário para a alienação de imóveis que se integra no objecto da empresa, separata da Revista de Direito e Estudos Sociais, Coimbra 1982).
Face a situações deste tipo (e a situação dos autos é deste tipo) encontramos um entendimento jurisprudencial díspar. O Acórdão da Relação de Coimbra de 16/3/82, por exemplo, refere que: 'Exercendo um dos cônjuges como empresário, uma actividade que tem por objecto a construção de casas para venda, a alienação dos imóveis construídos é um acto de administração de empresa e, como tal, não carece de consentimento do outro cônjuge' (sumário na CJ, Tomo II, pág.82), no mesmo sentido v. Acórdão da Relação de Lisboa de 3/11/83, na CJ, Ano VIII Tomo V, pág.101). Contrariamente, o Supremo Tribunal de Justiça, entendeu no Acórdão já referido de 28/11/84 que: ' I - Apesar de ser válido o contrato-promessa de venda de imóveis comuns efectuado só por um dos cônjuges, o promitente-comprador não pode obter execução específica (artigo 830º do CC) se o cônjuge, do promitente-vendedor se recusa a outorgar na escritura de compra e venda. II - Por ser necessário o consentimento de ambos os cônjuges na venda de imóveis comuns que integrem o objecto de uma empresa singular de construção civil que se dedica à venda dos prédios edificados (artigo 1682º-A, nº 1, alínea a) do CC), não pode obter-se execução específica da promessa de venda de um desses prédios, se o cônjuge do empresário não consente na sua alienação
'(sumário no BMJ 338, 409).
A situação dos autos apresenta, como já disse, a pecularidade que subjaz a esta disparidade de soluções, tendo a decisão recorrida, tal como anteriormente a decisão da Relação, optado pela solução que entende estar, mesmo nesta hipótese, vedado o recurso à execução específica.
É esta, enfim, a interpretação do artigo 1682º-A, nº 1, alínea a), que os recorrentes questionam.
5.2. Importa, no entanto, frisar (e as alegações dos recorrentes nem sempre são claras a este propósito) que o que é passível de discussão no presente recurso de constitucionalidade não é esta interpretação tout court, mas, tão só, as suas implicações constitucionais. Não se trata, portanto, para este Tribunal, de tomar posição sobre o entendimento do Supremo Tribunal em termos de o considerar como o mais ou o menos correcto, trata-se - e só nesse sentido a decisão recorrida é aqui sindicável - de saber se tal interpretação viola normas ou princípios constitucionais, designadamente os indicados pelos recorrentes.
É o que cumpre fazer.
6. A recomposição interpretativa da norma (a norma na interpretação dada) pode ser lida nos seguintes termos : a alienação de imóveis próprios ou comuns carece do consentimento de ambos os cônjuges, mesmo quando essa alienação, é feita por um empresário, em nome individual, no âmbito da sua actividade de venda de imóveis ou fracções deles.
Será este sentido interpretativo conflituante com o princípio da igualdade, plasmado no artigo 13º da Lei Fundamental, com a liberdade de escolha de profissão referida no artigo 47º, ou com os direitos dos consumidores, garantidos no artigo 60º, na vertente de protecção 'dos seus interesses económicos' ?
6.1. A questão do princípio da igualdade pressupõe a equacionação de situações que substancialmente iguais recebem um tratamento arbitrariamente desigual (este o sentido constitucional da ideia de igualdade, expresso num largo património de decisões deste Tribunal que, por demais conhecidas, nos dispensamos de indicar).
Não são os recorrentes particularmente precisos na indicação das desigualdades que a interpretação em causa promove. Admitamos, porém, estar em causa, como parece sugerir-se a fls. 408 vº, a 'desigualdade' em que seriam colocados 'só os empresários cuja actividade implicasse a venda de imóveis', consistente em sofrerem estes a 'restrição à sua actividade' que o recorrente vê na necessidade de autorização do outro cônjuge à alienação de imóveis.
Trata-se de um ponto de vista que aparece veiculado no processo por quem não seria directamente afectado por tal desigualdade. Não obstante, a exigência de consentimento de ambos os cônjuges na alienação de imóveis, mesmo na extensão que a interpretação questionada faz dela, explica-se por referência a valores constitucionalmente relevantes, como sejam o da igualdade dos cônjuges no domínio da administração e alienação dos bens do casal (artigo 36º, nº 3 da Constituição). A consagração de mecanismos como o directamente decorrente (no caso que nos interessa, o interpretativamente decorrente) da alínea a), do nº 1 do artigo 1682º-A do CC, não deixa, assim, de traduzir uma acrescida garantia do próprio princípio da igualdade, na sua vertente de igualdade entre os cônjuges. A diferenciação daí decorrente, relativamente a outros empresários cuja actividade não implique a venda de imóveis, sempre seria racionalmente explicável na base da ponderação dos interesses específicos da situação (de todas as situações como esta); o princípio da igualdade, mais do que obrigar a um tratamento abstractamente igual (e todos sabemos que obriga por vezes mesmo a um desigual tratamento), obriga antes a uma ponderação racionalmente explicável
(e aí reside a essência do princípio da proporcionalidade) de interesses.
A ideia de que um bem imóvel, mesmo destinado a comercialização no
âmbito de uma actividade empresarial individualizada de um dos cônjuges (e note-se que não se trata aqui de formas societárias de exercício dessa actividade, em que esteja em causa a mera participação social de um dos cônjuges), constitui um elemento fundamental na economia familiar pelo seu valor ou aptidão de valorização, alicerça suficientemente a exigência de consentimento de ambos os cônjuges face à ponderação de interesses que a perspectivação da questão como questão de constitucionalidade convoca.
O princípio da igualdade não é, nesta base, afectado.
6.2. O artigo 47º, nº 1 da Constituição - e assim passamos a outro argumento dos recorrentes - tem que ver com a 'liberdade de escolha de profissão' e essa liberdade (de escolha), face à situação que nos ocupa, não está em causa. O problema poder-se-á colocar quanto ao exercício, entendido como liberdade de exercício, sempre que se veja nessa interpretação uma compressão da liberdade de exercício.
Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, págs.262/263) sublinham que o texto constitucional separa a liberdade de escolha de profissão, directamente referida no artigo 47º, nº 1, do 'direito ao exercício livre da profissão', não compreendendo o texto constitucional, em função dessa liberdade de escolha, 'uma garantia institucional das «profissões livres»'. Daí, aliás, a licitude constitucional de condicionamentos (como a existência de estatutos públicos mais ou menos restritivos) ao exercício de determinadas profissões.
Seja como for, a argumentação que nos levou a afastar a existência de violação do princípio da igualdade pode ser transposta para esta vertente da argumentação dos recorrentes e justificar, à luz do artigo 18º da Constituição, a restrição (que só pode ser uma restrição ao exercício de uma profissão) decorrente da interpretação perfilhada no Acórdão recorrido quanto à norma em causa.
É habitual a distinção, quanto a normas passíveis de serem referidas a algo abrangido por um direito fundamental, entre restrição (Einschränkung) e configuração (Ausgestal-tung) de um direito (cfr. R.Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main 1986, págs.300/306). A consideração do 'direito ao exercício livre da profissão', como posição jusfundamentalmente protegida exigirá a sua justificação enquanto restrição, contrariamente ao que sucederia se se entendesse estar perante uma mera configuração. Ora, é essa justificação que, transpondo a argumentação utilizada a propósito do princípio da igualdade,
é aqui possível. Trata-se de submeter o exercício de uma actividade que pressupõe a alienação de imóveis ao quadro legal em que tal alienação se pode processar e esse quadro, como vimos, mesmo com a interpretação do artigo 1682º-A aqui questionada, não deixa de se poder referenciar a princípios constitucionalmente relevantes.
6.3. Temos ainda, na argumentação dos recorrentes, a imputação à norma, com a interpretação que lhe foi dada de uma violação dos direitos dos consumidores (artigo 60º da Constituição) por desprotecção dos
'seus interesses económicos'.
A necessidade de autorização de ambos os cônjuges nos termos em que a configura o Acórdão recorrido, abriria caminho, na óptica dos recorrentes, a comportamentos atentatórios da boa-fé por parte dos empreiteiros ('... qualquer empreiteiro do tipo que estamos a contemplar, a vingar a orientação do acórdão recorrido, fica com as portas abertas para as maiores desonestidades em plena impunidade', diz a fls.399). Importa a este propósito não esquecer que a generalidade das normas de direito civil comportam a possibilidade de um uso preverso. Para essa eventualidade, no entanto, existem as possibilidades oferecidas pelo «instituto da boa fé» nas suas multiplas concretizações, como sejam a «culpa in contrahendo» (artigo 227, nº 1 do CC), a «integração dos negócios» (artigo 239º CC) e, em certo sentido, também a «alteração das circunstâncias» (artigo 437º do CC) e a «complexidade intra-obrigacional»
(artigo 762º, nº 2 do CC) e, principalmente, o «abuso de direito» (artigo 334º do CC), entendido modernamente como 'exercício inadmissível de posições jurídicas', através de figuras como a «exceptio doli», o «venire contra factum proprio», as «inelegabilidades formais», a «suppressio», a «surrectio», o «tu quoque» e o chamado «exercício em desequilíbrio» (v.Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1º Vol., Lisboa 1986/87, págs.356 e segs.). Através destas possibilidades, o nosso Código Civil ('o que mais longe levou as potencialidades históricas da boa fé': ibidem pág.353), garante amplamente - como refere Menezes Cordeiro - 'até aos confins da periferia jurídica, os valores fundamentais do sistema' (ibidem pág.355).
A referência, via artigo 60º nº 1 da Lei Fundamental, à defesa dos consumidores na modalidade de protecção dos respectivos interesses económicos - que, aliás, reveste a natureza de direito a prestações ou acções do Estado
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit.pag.323) - é no contexto da situação aqui em causa descabida. Essa protecção já é garantida no plano que aqui revela pelo 'instituto de boa fé' e diversos outros, como o das 'cláusulas contratuais gerais', etc.
7. A questão da interpretação do artigo 1682-A, do CC perfilhada pelo Acórdão recorrido - e vale isto para toda a argumentação dos recorrentes - levanta questões de interpretação jurídica de natureza diversa que o recorrente, aliás, não deixou de discutir no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O que aqui pode estar em causa, resume-se, como já se sublinhou, à conformidade constitucional da interpretação seguida. Ora, neste ponto, o Tribunal entende não existirem normas ou princípios constitucionais que impeçam a consideração da alienação de imóvel, na hipótese particular dos autos como situação abrangida na alínea a) do nº 1 da norma em causa.É esta, tão só, a conclusão deste Tribunal.
III DECISÃO
8. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade. Lisboa, 8 de Maio de 1996 José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Luis Nunes de Almeida