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Proc. nº 515/93
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A, réu em acção de resolução de contrato de arrendamento rural, em que é autora a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, não se conformando com a sentença de 26 de Fevereiro de 1992 do Tribunal Judicial de Loures, 1º Juízo, que decretou o despejo dos prédios arrendados e o condenou a pagar à autora as rendas vencidas na pendência da acção e respectivos juros, recorreu para o Tribunal de Relação de Lisboa.
A Santa Casa da Misericórdia havia decidido aumentar a renda dos prédios arrendados ao recorrente, respectivamente, para 70.000$00 e 50.000$00, o que este não aceitou, tendo depositado na Caixa Geral de Depósitos os valores correspondentes à renda antiga. Mas o Tribunal Judicial de Loures considerou que, face ao disposto no citado artigo 8º, nº 2, do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, ele deveria ter depositado os montantes correspondentes à renda nova, pelo que os depósitos efectuados não tinham efeito liberatório; e consequentemente, julgou a acção procedente, resolvidos os contratos de arrendamento em causa e, consequentemente, decretou o despejo do arrendatário.
Tendo o recurso para a Relação sido também julgado improcedente, por acórdão de 20 de Abril de 1993, recorreu agora o dito arrendatário para o Tribunal Constitucional, pedindo que seja apreciada a constitucionalidade do artigo 8º, nº 2, do Decreto-Lei nº 385/88.
2. Segundo o recorrente, a norma daquele artigo 8º, nº 2, viola o artigo 205º, nº 2, da Constituição, por dar prevalência à posição do senhorio em caso de diferendo sobre a renda a praticar e até à decisão judicial sobre o mesmo - diferendo que somente aos tribunais compete dirimir.
Esta solução é claramente infeliz e viola o fundamental princípio constitucional do artº 205 e designadamente o seu nº 2, segundo o qual os diferendos de interesses entre cidadãos são dirimidos pelos tribunais.
Não se diga, como se diz no douto acórdão recorrido, que esta solução de dar prevalência à posição do senhorio é meramente transitória, sujeita a alteração logo que haja sentença com trânsito em julgado que resolva em definitivo a questão.
Antes de mais está em causa um princípio que não admite argumentos de maior ou menor transitoriedade em detrimento da segurança das relações em sociedade e da justiça nas relações entre cidadãos.
Admitir-se uma tal solução é atribuir a particulares um verdadeiro privilégio de execução prévia, em tudo igual àquele de que goza a Administração na execução das suas deliberações e decisões.
Nem se diga que no caso do arrendamento rural a prevalência dada à posição do senhorio tem a «cobertura» de disposição legal que expressamente a estabelece não só atribuindo esse direito (nº 2 do artigo 8º do Dec.Lei nº
385/88) como fixando o limite do aumento permitido (Portaria nº 298/86 de 20 de Junho).
Também a Administração se move, ao tomar as suas decisões e deliberações e executá-las, dentro da legalidade vigente ficando tais decisões e sua execução sujeitas a anulação ou modificação de acordo com decisão judicial posterior que venha a ser proferida, sendo assim, também, transitória.
Pretende-se demonstrar que a solução legislativa adoptada é de um verdadeiro privilégio de execução prévia concedido a particulares não investidos de qualquer autoridade administrativa nem estando em causa a defesa do interesse público, fundamento essencial do princípio do privilégio da execução prévia.
Resultando claramente dos autos que não havia acordo entre senhorio e arrendatário quanto à renda a pagar, este diferendo só por via judicial poderia ter sido dirimido.
A isto, opõe a recorrida o seguinte:
Só por manifesta confusão se pode atingir a conclusão, como faz o recorrente, de que o sistema do artº 8º, nº 2, da lei do arrendamento rural atribui ao senhorio funções materialmente jurisdicionais em sede de actualização de rendas.
Por essa lógica também seriam inconstitucionais, por 'usurpação de poderes' as normas que permitem ao senhorio actualizar as renda no regime jurídico do arrendamento urbano ou as normas de actualização do salário mínimo nacional, uma vez que atribuem ao senhorio/entidade patronal o poder de actualizar rendas/salários em função de determinados critérios aprovados pelo legislador e aí, por maioria de razão, uma vez que nem se dá ao inquilino/trabalhador a possibili-dade de contestar judicialmente esses aumentos.
Nada disso sucede em relação ao 'famigerado' artº 8º, nº 2.
Nesse caso, o legislador, na falta de acordo entre senhorio e rendeiro quanto ao montante da actualização de renda, optou por admitir que vigore entre as partes a renda fixada pelo senhorio (desde que respeite os limites das tabelas em vigor) até à decisão final com trânsito em julgado que resolva o litígio; decisão essa que é processada nos termos do artº 11º da lei do arrendamento rural .
Quer dizer : na falta de acordo entre as partes quanto ao montante da actualização, o legislador admite que vigore a nova renda fixada pelo senhorio, desde que não ultrapasse os limites das tabelas em vigor .
Isto é: trata-se de uma norma supletiva (como muitas que existem no nosso Código Civil), que visa regular o montante da renda caso as partes não cheguem a acordo -- montante esse que será sempre provisório pois admite-se o recurso a tribunal.
O que está em causa no artº 8º n º 2 do Dec.-Lei nº 385/88, conteste-se ou não a solução encontrada no plano da política legislativa, é achar um valor para a renda na falta de acordo entre as partes quanto à sua actualização.
Tal solução não configura a atribuição de funções materialmente jurisdicionais ao senhorio, nem sequer furta aos Tribunais o conhecimento da questão. É uma solução supletiva da lei, meramente transitória, que vigorará nas relações entre as partes até à decisão final sobre o montante da renda, a tomar pelo Tribunal.
3. Pelo Acórdão nº 29/94, o Tribunal alterou o efeito do recurso, que passou a ser suspensivo.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
4. É objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do referido artigo 8º, nº 2, do Decreto-Lei nº 385/88, que é do seguinte teor:
Na falta de acordo entre as partes, até decisão final com trânsito em julgado, vigorará a renda fixada pelo senhorio, desde que respeite os limites das tabelas em vigor .
Segundo o recorrente, tal norma viola o disposto no artigo 205º, nº 2, da Constituição por alegadamente atribuir um privilégio de execução prévia a particulares, concretamente ao senhorio, constituindo, pois, uma usurpação do poder jurisdicional .
5. A norma em causa encontra-se inserida num complexo normativo que se destina a regular a matéria do arrendamento rural; matéria esta, de resto, submetida a legislação específica em função das suas características próprias, e que se articula, nomeadamente, com os interesses da política agrícola nacional, em particular, e de um modo mais amplo, com toda a política económica do Estado.
Tal norma não pode, assim, deixar de ser entendida no âmbito desse contexto específico, onde se inscreve o Decreto-Lei nº
385/88, promulgado na sequência da nova Lei de Bases da Reforma Agrária (Lei nº
109/88, de 26 de Setembro), que revogou toda a anterior regulamentação constante da Lei nº 76/77, de 29 de Setembro, alterada pela Lei 76/79, de 3 de Dezembro, com o propósito de responder às novas necessidades da agricultura nacional.
Não se encontra na anterior legislação qualquer norma semelhante à constante do referido nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 385/88; com efeito, o anterior regime legal previa um sistema substancialmente diferente para a alteração das rendas, mais exactamente por recurso às Comissões Concelhias de Arrendamento Rural, regulamentadas pelo Decreto-Lei nº 32/79, de 28 de Fevereiro, com as alterações constantes da Lei nº
24/79, de 26 de Julho, e do Decreto-Lei nº 130/81, de 28 de Maio, todos revogados pela actual legislação (v. artigos 9º, nº 5, 11º, nº 1, e 37º a 40º, da Lei nº 76/77, de 29 de Setembro).
Pretende o recorrente que a norma em causa, ao permitir que, em caso de divergência entre as partes, senhorio e arrendatário quanto ao montante da nova renda a fixar, vigore, até à decisão final com trânsito em julgado, a renda fixada pelo senhorio viola o disposto no artigo 205º, nº 2 da Constituição, o qual estatui o seguinte:
Na administração da justiça, incumbe aos tribunais a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Aqui se estipula constitucionalmente o princípio da reserva da função jurisdicional ou reserva de juiz
(Richtervorbehalt), derivação lógica e consequente da teoria da separação de poderes, segundo a qual o poder judicial é separado dos restantes poderes, apenas podendo ser exercido por juízes (cfr. J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 3ª ed., págs. 575 e segs.; segundo este autor, os tribunais são, pois, os órgãos constitucionais aos quais é especialmente confiada a função jurisdicional exercida por juízes).
Extensa é, de resto, a jurisprudência deste Tribunal que se ocupa da definição do conceito de função jurisdicional, nomeadamente para a distinguir da função administrativa. Recentemente, por exemplo, no Acórdão nº 452/95 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 21 de Novembro de 1995), afirmou-se:
A função jurisdicional consubstancia-se assim, numa «composição de conflitos de interesses» levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito ou da justiça. [...] Aquela função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra.
6. Pode-se afirmar, com segurança, que a matéria da fixação das rendas e respectivos montantes, em si mesma, não se encontra, na primeira palavra, sujeita aos tribunais ou à função judicial, mas antes deixada à livre fixação pelas partes, dentro da observância do princípio da liberdade contratual, apenas sujeita, no que toca às actualizações, aos limites (máximos) determinados pelo poder legislativo e constantes das tabelas para esse efeito publicadas.
De onde se conclui, liminarmente, que não
é esta matéria, por si só, reservada à função jurisdicional, e, como tal, não se pode, por aí, verificar qualquer violação da Lei Fundamental.
Efectivamente, o que está em causa nos presentes autos é, tão-só, a questão de determinar se o artigo 8º, nº2, do diploma em causa, de alguma forma atribui funções jurisdicionais a um particular, no caso o senhorio, ao estabelecer que, até à decisão final dos tribunais, a renda actualizada a vigorar é a por aquele fixada, desde que dentro dos limites das tabelas aprovadas.
Ora, logo a mera leitura do preceito em causa revela de imediato a expressa salvaguarda que aí se faz ao exercício da função jurisdicional, quando se refere que a fixação da actualização da renda pelo senhorio apenas ocorre até que haja «decisão final com trânsito em julgado». Integrando aquela disposição no complexo normativo a que pertence, vemos que o legislador pretendeu regulamentar a matéria da fixação das rendas deixando-a, em primeira linha, ao acordo das partes, e ficando as posteriores actualizações das mesmas sujeitas a tabelas com os valores máximos a praticar.
Nada impede as partes de, por acordo entre ambas, adoptarem, quando das actualizações, valores inferiores aos máximos constantes das referidas tabelas. E, na eventualidade de falta de acordo entre senhorio e arrendatário, permite-se, a qualquer das partes, o recurso às vias judiciais para resolução do litígio ou conflito de interesses entre ambos surgido.
É evidente que, até ao trânsito em julgado da decisão judicial, como não existe acordo, o valor da renda a vigorar transitoriamente, há-de necessariamente ser ou o fixado pelo senhorio ou o propugnado pelo arrendatário. Em qualquer dos casos, o valor de tal renda resulta da vontade de um dos particulares e não da decisão do tribunal.
No caso específico do arrendamento rural, optou o legislador por fixar um valor transitório, para vigorar entre as partes até à resolução judicial do conflito, correspondente ao valor determinado pelo senhorio, desde que este não ultrapasse os valores máximos constantes das tabelas em vigor. Trata-se, como vimos, e sem qualquer dúvida, de um valor transitório, já que poderá vir a ser alterado por decisão judicial a proferir em processo próprio para tal intentado.
Mas, se o legislador tivesse optado pela solução oposta, os fundamentos de inconstitucionalidade avançados pelo recorrente manter-se-iam, já que se atribuiria igualmente a um particular, então ao arrendatário, o poder de fixar o valor da renda, embora também transitoriamente.
Não se vislumbra, pois, qualquer usurpação do poder jurisdicional, decorrente da norma impugnada.
7. Acrescente-se, para completo esclarecimento da matéria, que é efectivamente garantida a ambas as partes, mormente ao arrendatário, o recurso à tutela jurisdicional para resolução dos conflitos emergentes da actualização das rendas por parte do senhorio.
Com efeito, tal resulta expressamente do nº 2 do artigo 8º, quando fala em vigência da renda fixada pelo senhorio «até à decisão final com trânsito em julgado». Indubitavelmente, a norma prescreve e garante o recurso à via judicial por qualquer das partes para resolver o problema entre elas surgido, apontando apenas um valor para vigorar transitoriamente até tal decisão definitiva.
É que, mesmo que se entenda não ser aplicável ao caso o disposto no artigo 11º do diploma em análise (cfr. Acórdão de 24/09/86 do Tribunal da Relação de Évora, in Colectânea de Jurisprudência, ano 17, tomo IV, pág. 304; contra, Aragão Seia, Arrendamento Rural, 2ª ed., Coimbra, 1994, pág. 66), sempre o inquilino se poderá socorrer da via judiciária. Com efeito, ainda para quem considere que o legislador não consagrou um tipo especial de processo para esta questão, o arrendatário não vê qualquer diminuição das suas garantias, pois que lhe ficarão sempre ao dispor as vias processuais normais e ordinárias, e ainda com as especificidades e garantias de celeridade processual fixadas nos nºs 2 e 3 do artigo 35º do Decreto-Lei nº
385/88:
2 - Os restantes processos judiciais referentes a arrendamentos rurais têm carácter de urgência e seguem a forma de processo sumário, salvo se outras forem previstas.
3 - É sempre admissível recurso para o tribunal da relação quanto à matéria de direito, sem prejuízo dos recursos ordinários, consoante o valor da acção, tendo sempre efeito suspensivo o recurso interposto da sentença que decrete a restituição do prédio.
8. Assim, a solução legislativa adoptada não constitui qualquer privilégio concedido a particulares não investidos de autoridade, nem retira aos particulares o acesso aos tribunais para a resolução dos conflitos, tal como não permite a invasão da esfera jurisdicional, pelo que em nada colide com o princípio constitucional da reserva de juiz, estabelecido no artº 205º da Constituição.
É bem verdade que tal solução, entre duas alternativas, escolheu a mais favorável ao senhorio e mais gravosa para o inquilino. Trata-se, contudo, de uma opção política do legislador, insusceptível de um juízo de censura constitucional, salvo se, pela sua desproporcionalidade, pudesse atingir o preceituado no nº 1 do artigo 99º da Lei Fundamental, onde se prescreve que
Os regimes de arrendamento e de outras formas de exploração de terra alheia serão regulados por lei de forma a garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador.
Só que, como vimos, a fixação da actualização da renda pelo senhorio, por um lado, tem carácter meramente transitório, até existir decisão judicial com trânsito em julgado, e, por outro lado, tem necessariamente de respeitar os limites das tabelas em vigor - isto é, muito embora o inquilino, no decurso do processo, se veja obrigado a proceder ao depósito da renda de acordo com a fixação efectuada pelo senhorio, a verdade é que o valor de tal obrigação encontra um limite máximo, que é o constante da tabela, pelo que o rendeiro não corre o risco de, ainda que transitoriamente, se ver confrontado com a necessidade de pagar uma renda puramente arbitrária, ao livre alvedrio do respectivo senhorio.
Também por esta via se não descortina, pois, a existência de inconstitucionalidade.
9. Embora o presente recurso apenas se fundasse na alegação de inconstitucionalidade material, pode este Tribunal vir a concluir pela inconstitucionalidade da norma ou normas em causa 'com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação é invocada', como prescreve o artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional.
Ora, nos termos do nº 1, alínea h), do artigo 168º da Lei Fundamental, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral do arrendamento rural e urbano, razão pela qual o Decreto-Lei nº 385/88 foi aprovado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 76/88, de 24 de Junho, lei que autorizou o Governo a aprovar o novo regime geral do arrendamento rural.
Dispõe assim o artigo 1º da Lei nº 76/88:
Fica o Governo autorizado a legislar:
a) Com o objectivo de aprovar o regime geral do arrendamento rural, nomeadamente no que concerne ao respectivo âmbito, forma do contrato de arrendamento, estipulação da renda, respectivas tabelas e alterações, situações de mora, subarrendamento, transferência, benfeitorias, indemnizações, denúncia, resolução, caducidade e transmissão do contrato, caducidade por expropriação, regime de preferência, cláusulas contratuais nulas, regime processual decorrente da especificidade do arrendamento rural e regime de parceria agrícola;
b) no sentido de criar um regime fiscal de incentivo ao arrendamento rural.
E o artigo 2º daquela lei dispõe, na sua alínea a), sobre o sentido da autorização, em matéria de estipulação e alteração de rendas:
a) Em caso de mora por mais de 90 dias, o arrendatário pode obstar ao despejo desde que, até ao encerramento da discussão em 1º instância, proceda ao pagamento da renda ou rendas em falta, acrescidas dos juros de mora à taxa oficial das operações passivas respeitantes ao período de um ano e um dia;
E nada mais se diz quanto ao sentido da autorização, nesta matéria, sendo certo que o artigo 168º, nº 2, da Constituição, dispõe:
As leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada.
Sobre a matéria do arrendamento rural debruçou-se já este Tribunal, nomeadamente nos Acórdãos nº 77/88 (publicado no Diário da República, 1ª Série, de 28 de Abril de 1988) e nº 311/93 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 22 de Julho de 1993), podendo-se ler no primeiro o seguinte:
a reserva em causa não se limita à definição dos «princípios»,«directi- vas» ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer das «bases» respectivas), mas desce ao nível das próprias «normas» integra- doras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de «arrendamento rural e urbano», nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direi- tos e deveres) dos contraentes du-rante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é «regime jurídico» dessa figura negocial. Por outras palavras, e em suma: cabe reservadamente ao legis- lador parlamentar definir os pressu- postos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa.'
A lei de autorização legislativa deverá, pois, conter em si a orientação que deverá presidir à elaboração da legislação respectiva, definindo, assim, o sentido da lei de autorização legislativa. Se este sentido não há-de corresponder a uma enunciação minuciosa de todos os aspectos a regulamentar, sob pena de conter em si próprio o texto legislativo em questão, não poderá, todavia, deixar de conter de forma clara uma enunciação que possa servir de parâmetro e medida aos actos delegados.
É o que J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 2º, 2ª ed., Coimbra,
1985, pág. 204) expressam pela forma seguinte :
Não é obrigatório, naturalmente, que a autorização legislativa contenha um projecto do futuro decreto-lei, mas ela não pode ser um cheque em branco.
Com efeito, sem tal delimitação, os actos delegados, ao tratarem a matéria livremente, por ausência de prévia orientação parlamentar, invadirão necessariamente a reserva do legislador delegante. Por isso, se lei de autorização legislativa, em tal caso, apresenta um vício de inconstitucionalidade, por incumprimento do disposto no nº 2 do artigo 168º da Constituição, a verdade é que tal juízo de inconstitucionalidade acarretará, forçosa e necessariamente, a inconstitucionalidade orgânica da legislação delegada, ou seja, dos actos normativos produzidos ao abrigo daquela lei de autorização. É o que referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, págs. 268/269):
A inconstitucionalidade é, por via de regra, imediata, por confronto directo entre a norma em causa e a Constituição. Mas também pode haver inconstitu-cionalidade derivada ou reflexa, produzida pela inconstitucionalidade da norma cuja validade é pressuposto necessário da legitimidade da norma em causa.
Assim, um decreto-lei autorizado será inconstitucional se o for a lei de autorização, porque sendo esta inválida, o decreto-lei ficará a descoberto, sem credencial para invadir a esfera de competência reservada da AR.
Ora, é esta a situação que se verifica no caso dos autos.
10. Como já ficou referido acima, a Lei nº 76/88 é omissa quanto à alteração de rendas, não estipulando quaisquer princípios-base ou directivas pelas quais o legislador delegado se deva orientar na feitura do decreto-lei. E se esta questão não vem suscitada pelo recorrente, não pode, contudo, o Tribunal deixar de apreciar a dita autorização legislativa, como questão prejudicial, para poder concluir pela inconstitucionalidade ou pela não inconstitucionalidade - derivada ou reflexa - da norma delegada.
Com efeito, aquela autorização legislativa limita-se a credenciar o Governo a legislar sobre todo o regime geral do arrendamento rural, sem qualquer outra definição de sentido que não a de concretizar, no que à matéria de estipulação e alteração de rendas concerne, a hipótese de mora do inquilino por mais de 90 dias e como poderá este, em tal caso, obstar ao despejo.
De resto, nada determina quanto à celebração do contrato ou à estipulação e alteração de rendas, nem tão-pouco refere quaisquer princípios orientadores, seja de protecção do senhorio ou do inquilino, seja de liberalização contratual ou de qualquer outra ordem. Por outro lado, não faz qualquer referência ao regime anteriormente vigente, com indicação de quais as regras a preservar ou a alterar, nem a qualquer elemento jurisprudencial instituir.
Na ausência de enunciação, na autorização legislativa, de quais os princípios a salvaguardar e, bem assim, dos interesses a proteger, o Governo veio a produzir, através do decreto-lei em apreço, um novo regime totalmente inovador sobre a alteração das rendas, sem credencial parlamentar. E, assim, invadiu a competência reservada da Assembleia da República, pelo que o artigo 8º do Decreto-Lei nº 385/88 tem necessariamente de ser considerado organicamente inconstitucional.
Com efeito, o referido artigo 8º estipula, como se viu, sobre o regime da actualização de rendas, que estas serão actualizáveis anualmente, por iniciativa de qualquer das partes, e adopta, como solução para o caso de desentendimento entre as mesmas quanto ao montante a estabelecer, a vigência transitória da renda estipulada pelo senhorio, até decisão final com trânsito em julgado. Ora, convém relembrar, no regime anterior, constante da Lei nº 76/77, de 29 de Setembro, as rendas só poderiam ser alteradas pelas comissões concelhias de arrendamento, mediante requerimento do arrendatário, e não poderiam ser alteradas caso o seu valor se situasse dentro dos limites que houvessem sido aprovados por aquelas comissões; era, pois, um regime completamente diferente do que agora se estabeleceu.
Para o alterar, pois, necessário se tornava que a Assembleia da República determinasse em que sentido tal alteração devia ser feita, caso não legislasse directamente.
Assim, inevitável se torna concluir pela inconstitucionalidade orgânica da norma do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº
385/88, por incidir sobre matéria reservada da Asembleia da República e o Governo não se encontrar munido da indispensável autorização legislativa.
III - DECISÃO
11. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, por violação do disposto no artº 168º, nº 1, alínea h) da Constituição da República Portuguesa;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 7 de Março de 1996
Luis Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Messias Bento José de Sousa e Brito Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa