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Proc. nº 880/93
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. propôs acção de condenação contra a B., no Tribunal Judicial da Comarca de Évora, pedindo uma indemnização pelos prejuízos sofridos numa sua seara com a área de 19 hectares, em consequência de deficiente germinação do arroz que tinha adquirido àquela empresa, por má qualidade dele, tendo a acção vindo a ser julgada improcedente.
O autor recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 14 de Maio de 1991, revogou a sentença da primeira instância, condenando a ré B. no pagamento de indemnização com valor a liquidar em execução de sentença, a calcular com base na área da seara que se viesse a apurar ter sido realmente afectada pela má germinação das sementes,
«por não ser possível quantificar o montante desse prejuízo visto que não se provou com a necessária exactidão qual a área da sementeira afectada mas tão-somente que era 'mais ou menos', 'cerca de' 19 hectares»; o valor da indemnização não poderia, porém, exceder o limite do pedido, acrescido de juros desde a citação.
A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade dos artigos 471º e
661º, nº 2, do Código de Processo Civil, na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal da Relação, por violação do artigo 13º da Constituição da República, por ofensa dos princípios da igualdade perante a lei e da 'igualdade de armas' em processo civil. Todavia, por acórdão de 8 de Junho de 1993, foi negado provimento ao recurso, nessa parte.
2. Desta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, recorreu, então, a ré para o Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade dos citados artigos 471º e 661º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Segundo as alegações que aqui apresentou, essas disposições seriam inconstitucionais, quando interpretadas como permitindo a condenação do réu em quantia a liquidar em execução de sentença, em situações como a verificada nos autos.
Entende a recorrente:
Os pedidos genéricos só podem ser, legalmente, formulados nos termos previstos no artº 471º do C.P.C. e nenhuma das hipóteses aí previstas legitimaria que o Autor, no caso concreto, formulasse um pedido genérico. [...] Ora, em relação ao pedido do autor, o problema, no entender da recorrente, não era de liquidação do seu valor, em execução de sentença, mas de improcedência.
Na verdade, o Autor alegou factos concretos, pelos quais sustentava o seu alegado direito a uma indemnização de valor certo e preciso.
E - relativamente a tais factos - não logrou o Autor prová-los em julgamento, como se vê da matéria de facto que se considerou apurada.
Assim, não haveria que, de novo, suscitar, em fase de execução de sentença, a discussão ou a prova dos factos em causa, que, na sede própria, não foram considerados provados.
A consequência a extrair dessa matéria de facto seria, pois, a improcedência do pedido.
E continua, alegando ainda:
Admitido, como foi, no acórdão recorrido, que os artigos 471º e
661º, nº 2 do C.P.C. comportam, no seu conteúdo, alcance que permite a cisão do processo nos termos acima indicados ou a dupla possibilidade de o Autor discutir a mesma questão no mesmo processo, eles terão de ser considerados, nessa parte, inconstitucionais.
[...]toda a pessoa tem direito a um processo equitativo, ou seja, a um processo em que uma das partes não tenha mais direitos que a outra, em que estejam em pé de igualdade, quer quanto ao modo de expor as suas razões, quer quanto às consequências que se tirarão do modo como são expostas - isto tanto no processo penal, como no processo civil.
Trata-se da consagração do princípio da igualdade de armas, como emanação que é do princípio da igualdade perante a lei, consagrado no artigo 13º da Constituição.
Acresce ainda - como decorre do alegado - que está também em causa o respeito pelo princípio constitucional da conformação do direito processual e da definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos sobre o mesmo facto, princípio esse que decorre dos artigos 2º e
282º/3 da Constituição da República.
E, finalmente, a recorrente conclui:
Quando - como no caso dos autos - o pedido é certo e o Autor não logra provar os factos de que depende a sua liquidação, o caso é de improcedência da acção e não de condenação em quantia ilíquida por o Autor não ter logrado fazer a prova dos factos que alegou e nos quais o fundamentava;
O acórdão recorrido, ao remeter o apuramento daquela quantia para uma fase de liquidação em execução de sentença, permitiu que pudesse ressuscitar-se ou repetir-se uma discussão de factos e de direito já ocorrida no julgamento da acção declarativa,
Bem como admitiu que aquelas disposições legais comportam no seu conteúdo a possibilidade de uma 'dupla liquidação';
Tais disposições legais, enquanto comportem no seu conteúdo tal possibilidade, têm de considerar-se, nessa parte, inconstitucionais;
Isto, por violação do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e dos princípios da igualdade perante a lei e da 'igualdade de armas' das partes em processo civil;
E ainda por violação do princípio constitucional da conformação do direito processual e da definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos sobre o mesmo facto, princípio que decorre dos artigos 2º e 282º/3 da Constituição da República
O recorrido não apresentou contra-alegações.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
4. As normas referidas do Código de Processo Civil têm a seguinte redacção:
Artigo 471º
(Pedidos genéricos)
1. É permitido formular pedidos genéricos nos casos seguintes:
a) Quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade, de facto ou de direito;
b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito;
c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo réu.
2. Nos casos das alíneas a) e b) do número anterior, o pedido pode concretizar-se em prestação determinada por meio do incidente de liquidação, quando para o efeito não caiba o processo de inventário. Não sendo liquidado na acção declarativa, observar-se-á o disposto no nº 2 do artigo 661º.
Artigo 661º
(Limites da condenação)
1. A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
2. Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
5. Importa, antes de mais, delimitar o objecto do presente recurso.
Pretende a recorrente que este tribunal aprecie a constitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal recorrido aos artigos 471º e 661º, nº 2, do C.P.C., ou seja, que aprecie aquelas normas processuais, alegando que as mesmas, com a interpretação feita no tribunal a quo, importam a violação dos artigos 13º, 2º e 282º, nº 3, da Constituição.
Ora, desde logo, não se vê que assista qualquer razão à recorrente quanto à apreciação da eventual inconstitucionalidade da norma do artigo 471º do C.P.C..
Tal artigo, que se refere à admissão de pedidos genéricos, não teve qualquer aplicação por parte da sentença da primeira instância ou da decisão recorrida, nem nelas é como tal referido, sendo certo que nem sequer implicitamente resulta que qualquer delas o tenha aplicado, como seria pressuposto para a apreciação da sua eventual inconstitucionalidade. É que, na verdade, não foi formulado qualquer pedido genérico pelo A., ora recorrido.
Como se pode ler no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional - e no artº 280º, nº 1, alínea b), da Constituição -, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões judiciais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Para que este recurso seja admissível exige-se, pois, que a decisão de que se recorre tenha feito aplicação efectiva da norma cuja constitucionalidade vem questionada, como se afirmou, nomeadamente, no Acórdão nº 82/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992):
muito embora haja sido suscitada durante o processo a questão da inconstitucionalidade de certa norma, sempre que a decisão a final proferida não se tenha dela servido como seu fundamento legal, isto é, a decisão haja sido tirada com referência a outra disposição normativa, o recurso de inconstitu- cionalidade que se dirija à específica fiscalização concreta dessa mesma norma não pode ser admitido por força da ausência de um seu pressuposto de admissibilidade.
É o que se verifica no caso presente.
Com efeito, como já se referiu, não fez a decisão recorrida qualquer uso daquela norma, nem em tal decisão se encontram quaisquer vestígios de tratamento da matéria nessa mesma norma regulada - os pedidos genéricos -, por forma, sequer, a que se possa dizer que tal norma foi implicitamente utilizada ou pressuposta pelo tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão. Pelo contrário, em ponto nenhum da mesma decisão se encontram referências a tal disposição legal; em ponto algum fundamentou o tribunal recorrido o seu acórdão em qualquer pedido genérico ou na possibilidade de dedução ou de conversão de tais pedidos. As referências à norma em causa resultam, portanto, tão-só das alegações da recorrente, que assim interpretou, de motu proprio, a decisão recorrida, o que manifestamente não basta para que este Tribunal deva apreciar essa mesma norma.
Resta, pois, para apreciação, a norma do artigo 661º, nº 2, do C.P.C. - esta, sim, aplicada pela decisão recorrida.
6. Considera a recorrente que a interpretação dada pelo tribunal recorrido comporta a «cisão» do processo ou a
«dupla possibilidade» de discussão da mesma questão no mesmo processo, o que implicaria a existência de mais do que um julgamento sobre o mesmo facto.
Tem tal tese suporte nalguma jurisprudência do STJ, segundo a qual «o nº 2 do artigo 661º só permite remeter para execução de sentença quando não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, mas entendida esta falta de elementos não como a consequência do fracasso da prova, na acção declarativa, sobre o objecto ou a quantidade mas sim como a consequência de ainda se não conhecerem, com exactidão, as unidades componentes da universalidade ou de ainda se não terem revelado ou estarem em evolução algumas ou todas as consequências do facto ilícito, no momento da propositura da acção declarativa; isto é, a carência de elementos não se refere
à inexistência de prova dos factos já produzidos e que foram alegados e submetidos a prova, embora se não tivessem provado, mas sim à inexistência de factos provados, porque estes factos ainda não eram conhecidos ou estavam em evolução, aquando da propositura da acção, ou que como tais se apresentavam no momento da decisão de facto» (Acórdão de 17 de Janeiro de 1995, inédito, proferido no Procº nº 85.801).
Não tem este Tribunal de se pronunciar sobre a interpretação que julga mais adequada da controvertida disposição do Código de Processo Civil; nem, tão-pouco, de apurar se, no caso dos autos, se propicia verdadeiramente um duplo julgamento da matéria de facto. Cabe-lhe, apenas, verificar se a norma em causa, na interpretação que lhe foi dada pelo tribunal a quo - e que, pelo menos aparentemente, não coincidirá inteiramente com a sustentada no citado aresto do STJ - pode ser tida como contrária à Constituição.
7. In casu, o que se passou foi que, tendo o Autor alegado um determinado prejuízo, que se deu como provado, e tendo-o reportado a uma determinada área certa de cultura - 19 hectares -, resultou apenas da prova efectuada que a área em questão era de
'aproximadamente', ou de 'mais ou menos', 19 hectares. Foi, pois, a fixação exacta dessa área - necessária para a determinação rigorosa do montante do prejuízo - que se remeteu para liquidação em execução de sentença, ao abrigo do preceituado no artigo 661º, nº 2, do CPC, sendo certo que a área afectada era, logicamente, superior a 18 hectares.
Ora, em caso algum pode a norma impugnada violar o artigo 13º da Lei Fundamental, designadamente por afrontar o princípio da igualdade de armas no processo.
Com efeito, remetida a determinação exacta da área afectada para o que se liquidar em execução de sentença, e não dependendo essa liquidação, no caso, de simples cálculo aritmético, seguir-se-ão, obrigatoriamente, os termos previstos nos artigos 806º e 807º do Código de Processo Civil, os quais asseguram à parte contrária a possibilidade de contestar a liquidação, com adopção subsequente dos termos do processo sumário de declaração.
Não se descortina, pois, qualquer violação do princípio da igualdade, garantido que se encontra, em toda a linha, o respeito pelo princípio do contraditório.
8. E, por outro lado, também se não pode detectar qualquer qualquer ofensa ao princípio da intangibilidade do caso julgado, que o recorrente extrai do disposto nos artigos 2º e 282º, nº 3, da Lei Fundamental.
É que, na verdade, em casos como o dos autos, não se permite um segundo julgamento sobre uma questão de facto definitivamente já decidida. O que acontece, é que se remete para decisão posterior a pronúncia sobre uma questão de facto, que se considera não poder ser ainda decidida, e que, assim, fica provisoriamente em aberto.
Não chegando, em tais casos, pois, a existir caso julgado sobre a questão, não faz sentido falar em violação de caso julgado material.
9. Assim sendo, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade do artigo 661º, nº 2, do Código de Processo Civil, na interpretação dada pelo acórdão recorrido.
III - DECISÃO
10. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 8 de Outubro de 1996 Luís Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca José Sousa e Brito Bravo Serra Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa