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Processo n.º 566/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que são recorrentes A., B. e C. – Associação … e SETAA – Sindicato da Agricultura, Alimentação e Florestas, D. e Outros e recorridos o Ministério Público e o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), foram interpostos dois recursos de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
O recurso interposto por A., B. e C. – Associação … pretende a apreciação das seguintes questões:
i) Inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), interpretada no sentido de que a contagem do prazo para a interposição do recurso se inicia, sempre, com o depósito do acórdão ou sentença, na secretaria do tribunal, independentemente da data em que o conteúdo do mesmo vier a ser colocado à disposição dos arguidos (Recorrentes), na sua totalidade, com caráter de estabilidade, em virtude da correção do acórdão ou sentença;
ii) Inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de que o prazo para interposição do recurso, em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos tempestivamente requeridas pelos arguidos.
iii) Inconstitucionalidade das normas do artigos 101.º, n.° 3 [e não 100.º, como por manifesto lapso se refere no requerimento de interposição do recurso], 411.º, n.ºs 1 e 4, 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretadas no sentido de que em recurso em que se impugne a matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, requerida a cópia da gravação da prova produzida em audiência, apenas se suspende o prazo de interposição de recurso em curso, se simultaneamente (no mesmo momento) com o requerimento de solicitação das gravações, for entregue no tribunal o suporte técnico necessário à execução da cópia, mesmo que o tribunal não possua meios técnicos capazes de proceder às pretendidas gravações e só em momento posterior, venha a deferir por despacho judicial o então requerido, ou seja, a realização e fornecimento das pretendidas cópias.
O recurso interposto por SETAA – Sindicato da Agricultura, Alimentação e Florestas, D. e Outros visa a apreciação das duas primeiras questões acima enunciadas, incluindo no âmbito da segunda delas, também a norma do n.º 5 do artigo 411.º do CPP.
2. Por despacho de fls. 9753, foram os recorrentes notificados quanto à eventualidade de não conhecimento dos recursos na parte referente à questão supra identificada no ponto ii); e foram as partes notificadas para alegar quanto às questões acima identificadas nos pontos i) e iii).
3. Os recorrentes SETAA – Sindicato da Agricultura, Alimentação e Florestas, D. e Outros, reclamaram para a conferência do despacho de fls. 9753, nos seguintes termos:
«1º
Os recorrentes não se conformam com o despacho sumário do Exm.º Senhor Juiz Relator na parte em que decide pelo não conhecimento do recurso referente ao ponto 2-a) do requerimento do recorrente SETAA:
“2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade;
a. Da norma do art.° 411.°, n.ºs 1 e 5 do Cód Proc. Penal quando interpretada, como o foi na decisão recorrida, que ao prazo de 30 dias ali fixado não acresce que a Secção do Tribunal demorou a entregar ao recorrente a cópia das fitas magnéticas.”
2º
Com o devido respeito, a “dimensão normativa” ali em apreço, constitui no âmbito da decisão recorrida o seu verdadeiro “motivo de decisão”.
3º
Na verdade, na decisão recorrida diz-se a determinado passo que (4° parágrafo de fls.24):
“se entende que, requerida cópia da gravação da prova produzida em julgamento, se suspende o prazo de interposição do recurso até ao momento em que tal pretensão seja efetivamente satisfeita”
E prossegue dizendo mesmo:
“Só desta forma se garante possibilidade de defesa…”
4°
“Prima facie”, tal posição seguiria na esteira do que quanto a esta matéria o Tribunal Constitucional tem decidido, designadamente que o prazo de 30 dias de recurso deve suspender-se durante o período de tempo em que o arguido não pode ter acesso às gravações de audiência, desde que pretenda impugnar a matéria de facto e desde que o arguido atue com a diligencia devida.
5º
Porém, a decisão recorrida “fez diverso do que disse”
6º
E na contagem do prazo de interposição do recurso não teve em atenção o período em que o mesmo se deveria considerar suspenso e correspondente ao lapso temporal em que o recorrente não teve acesso, por facto que não lhe é manifestamente imputável, às gravações da audiência.
7º
A atuação do recorrente desenvolveu-se com a diligência devida.
8º
E não pode ser penalizado pelo facto, aliás reconhecido pela decisão recorrida, de o Tribunal não ter os meios técnicos para a reprodução da cópia da prova produzida em julgamento.
9º
Temos para nós que é no arco da interpretação e aplicação da referida norma — art.° 411.°, n.° 1 e 4 que estabelece o prazo para interposição do recurso - que gira o núcleo do presente recurso, designadamente conjugado com o circunstancialismo que justifica e impõe a suspensão do aludido prazo.
10º
Tanto mais quando, como sucede no caso dos autos, sobre o requerimento em que se solicitou a cópia das gravações, incidiu despacho judicial a deferir a pretensão e a ordenar a entrega dos suportes técnicos necessários à gravação, uma vez que se mostravam ultrapassadas as insuficiências decorrentes de o Tribunal não ter os meios técnicos necessários à gravação.
11º
Deve, pelo exposto, conhecer-se igualmente do recurso quanto ao já supra mencionado ponto 2-a) do requerimento de interposição, uma vez que o art.° 411.°, n.ºs 1 e 4 do Código de Processo Penal, (na interpretação inconstitucional, por violação da garantia de defesa consignada no art.° 32.° CRP, de que ao prazo de 30 dias ali fixado não acresce o período que a Secção do Tribunal demorou a entregar ao recorrente), se mostra ter sido adotada como “ratio decidendi” da sentença recorrida.
Termos em que com o mui douto suprimento de V. Exas. se requer seja proferida decisão em CONFERÊNCIA que determine que deve conhecer-se igualmente do objeto do recurso consignado no ponto 2-a) do requerimento de interposição de recurso, ordenando-se em consequência o respetivo prosseguimento. Assim se alcançará a costumada JUSTIÇA»
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional respondeu a esta reclamação da forma que se segue:
«1.º
Pelo douto despacho de fls. 9753 foi ordenada a notificação do recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a eventualidade de não conhecimento do recurso em relação a uma das questões identificadas no requerimento de interposição.
2.°
O recorrente reclamou desta decisão para a conferência.
3.º
Não se trata, porém, de uma decisão da qual caiba reclamação, pelo que não iremos apresentar resposta a essa “reclamação”.
4.º
Oportunamente, nas contra-alegações, nos pronunciaremos sobre a questão prévia em causa.»
5. Os recorrentes A., B. e C. – Associação …, apresentaram alegações onde concluem o seguinte:
«1- O entendimento levado ao acórdão aqui recorrido é clara e materialmente violador de normas e princípios constitucionais.
2-Por acórdão de 1/06/2010, os arguidos A. e B., foram condenados, pela prática de um crime de desvio de subsídio, previsto e punido pelo artigo 37.º, n.º 1 e n.° 3, do Decreto-lei n.º 28/94, de 20 de janeiro, conjugado com o artigo 202.º, alínea a), do Código Penal, nas penas de 1 ano e 4 meses de prisão e 100 dias de multa, cada um, à taxa diária de € 8,00. As referidas penas de prisão ficaram suspensas na sua execução, por igual período de tempo, condicionadas à restituição ao IEFP das quantias indevidamente apropriadas, sendo no caso dos arguidos A. e B. de € 23 699,30. A C.- Associação … e os arguidos A. e B. foram condenados a pagar, solidariamente, ao IEFP a quantia de €23 699,30, atualizada de acordo com os índices de inflação publicados anualmente pelo INE, desde a data de cada utilização indevida à data da condenação, a que acrescem juros de mora, à taxa legal prevista para os juros civis, desde a data da condenação até efetivo e integral pagamento, sendo tal quantia devida pelos arguidos A.e B. a título de indemnização.
3-Em 14/06/2010, os arguidos A. e B., peticionaram a Correção/aclaração do mesmo acórdão, nos termos do disposto no artigo 380.º do CPP. Fundava-se este requerimento, na constatação de que dos “Factos Provados” constavam 463 itens, mas a numeração dos mesmos passava do n.º 422 para o n.º 432, colocando-se aos arguidos a dúvida, legítima, de saber se existiam mais factos dados como provados pelo coletivo, que não constassem, por lapso, do acórdão, revelando-se tal esclarecimento imprescindível para a tomada da decisão de recorrer, ou não, bem como para a elaboração do recurso, designadamente no que concerne à matéria de facto considerada provada, que fundamentou a sua condenação em primeira instância.
4- O mencionado requerimento de Correção/Aclaração mereceu deferimento em 22/06/2010, tendo o acórdão sido objeto de correção ao abrigo do disposto no artigo 380.º do CPP, conforme decisão de fls. 8992 a 8994. Assim, o Tribunal da primeira instância concluiu pela existência de lapso quanto à matéria de facto dada como provada, determinando a correção da numeração dos pontos da matéria de facto dados como provados, e ainda, oficiosamente, determinou a correção do ponto A.e) do dispositivo do acórdão, por aí não ter sido feita alusão ao período de suspensão da execução das penas de prisão impostas.
5- Esse despacho de Correção de 22/06/2010 presume-se notificado ao mandatário dos arguidos A. e B., no terceiro dia útil posterior, ou seja, em 25/06/2010.
6- Por requerimento apresentado em 21/06/2010, os arguidos A., B. e C.- Associação …, solicitaram cópia das gravações da prova produzida durante, “todas as sessões de julgamento, incluindo das sessões de julgamento que antecederam o acórdão datado de 7/11/2005. Nesse requerimento, informou-se que as necessárias cassetes e/ou CD’s para as pretendidas cópias serão de imediato apresentadas na secretaria do tribunal, caso necessário (fls. 8997 a 8999).
7- No dia 22/06/2010 foi entregue ao mandatário dos arguidos CD com a gravação das sessões de julgamento que deram origem ao acórdão de 1/06/2010. O mesmo não aconteceu relativamente às sessões de julgamento ocorridas antes do acórdão de 7/11/2005, uma vez que o tribunal não possuía, quanto a essas sessões, aparelho para proceder à duplicação das gravações.
8- No dia 23/06/2010, foi aberta conclusão nos autos à Senhora Juiz titular com a informação da inexistência de aparelho capaz de proceder à duplicação das cassetes (fls. 9009). E que mereceu imediato despacho da então ilustre Juiz Alexandra Gomes:
-“Com cópia dos requerimentos que antecedem e do presente despacho, comunique de imediato à Mm.ª Juiz desta Comarca a fim de proceder às diligências tidas por convenientes para aferir da possibilidade de duplicação de cassetes.”
9- Resolvido o alegado problema de inexistência de aparelho capaz de proceder à duplicação de cassetes, veio o supra mencionado requerimento de 21/06/2010, apresentado pelos arguidos A., B. e C.- Associação …, a ser deferido em 30/06/2010, através do despacho da Ilustre Juiz titular do processo, Alexandra Gomes:
-“Tomei conhecimento. Satisfaça o solicitado.” (fls. 9012)
10- No dia 1/07/2010, em cumprimento do referido despacho judicial, o mandatário dos arguidos, A., B. e C.- Associação …, fez entregar na Secção de processos do tribunal 90 cassetes para cópia da gravação das sessões de julgamento anteriores ao acórdão de 7/11/2005 (fls. 9013).
11- Em 28/07/2010, foram entregues ao mandatário dos arguidos, A., B. e C.- Associação …, 71 cassetes contendo a gravação de uma parte das sessões de julgamento anteriores ao acórdão de 7/11/2005. 5endo que do respetivo termo de entrega consta, ainda que as “restantes casetes, que por lapso não se encontram gravadas seguirão via correio” (fls. 9022).
12- No dia 30/07/2010,sexta-feira, foram as restantes 11 cassetes enviadas pelo tribunal para o escritório do mandatário dos arguidos, A., B. e C. - Associação …, as quais foram recebidas na segunda-feira, dia 2/08/2010 (fls. 9023).
13- Inconformados com o acórdão de 1/06/2010, os arguidos A., B. e C.- Associação …, interpuseram Recurso (com reapreciação da prova gravada) para a Tribunal da Relação de Évora, o qual deu entrada na Secretaria da Comarca do Alentejo litoral no dia 10/09/2010-
13- O aludido Recurso foi admitido no Tribunal da primeira instância e foram enviados os autos ao Tribunal da Relação de Évora.
14-Todavia, o mesmo recurso, por decisão sumária de 15/02/2011, proferida pela Relação de Évora, foi rejeitado, nos termos do disposto no artigo 414.º, n.º e 420.º, n.º 1, alínea b), ambos do CPP, por ter sido considerado intempestivo ou seja, apresentado fora de prazo.
15- Inconformado com aquela decisão sumária, Reclamaram para a Conferência, os mesmos arguidos A., B. e C.- Associação …. Tendo, na sequência de tal, sido proferido acórdão em 10/05/2011, que manteve a decisão de não conhecer do objeto do Recurso, por entender que, nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b) e 414.º, n.º 2, ambos do CPP, era de rejeitar o mesmo porque intempestivamente interposto.
17-Ora, na Reclamação que interpuseram para a dita Conferência da Relação de Évora, os recorrentes alegaram, entre outros argumentos, que a douta Decisão Sumária, ao ter rejeitado o invocado Recurso por intempestivo, violou importantes princípios constitucionais relacionados com as garantias de defesa dos arguidos e do seu direito ao Recurso e, designadamente os consignados no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. Argumentos que a Conferência não considerou.
18- O dito acórdão de 1/06/2010 apenas ficou completo com o referido despacho de correção de 22/06/2010, ou seja, só com este despacho se “cristalizou” a decisão consubstanciada naquele acórdão de 1/06/2010, estabilizando-se no seio do processo.
19- Pelo que, só a partir da notificação desse despacho de correção (concretizada em 25/06/2010), puderam os recorrentes saber, com absoluta certeza, qual a totalidade dos factos considerados provados e, em consequência, ponderar de forma integralmente esclarecida os termos e fundamentos a incluir no futuro recurso.
20- O mencionado Acórdão da Relação de Évora, de 10/05/2011, considerou que, apesar dos recorrentes terem promovido a correção do acórdão proferido pela primeira instância, de 1/06/2010, ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 1, alínea b) tal Iniciativa não fez parar o prazo de recurso em curso.
21- A interpretação segundo a qual o prazo para interposição do recurso continua a correr, a partir do termo inicial fixado no artigo 411.º, mesmo quando o arguido requeira a correção da sentença ao abrigo do artigo 380.º do CPP, é inconstitucional, por revelar uma estruturação do processo penal incompatível com o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Lei Fundamental.
22- Destarte, deve ser considerada a inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o pedido de correção de uma decisão, formulado pelo arguido nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 380.º do mesmo Código de Processo Penal, não suspende o prazo para aquele interpor recurso dessa mesma decisão, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Devendo, em consequência, a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o alegado juízo de inconstitucionalidade.
23- A interpretação que o acórdão recorrido faz dos artigos 101.º, n.º 3, 411.º, n.ºs 1 e 4, e 412.º n.ºs 3 e 4, todos do CPP, à luz dos princípios constitucionais, e designadamente, do artigo 329.º, n.º 1 da CRP, é para além de incorreta, surpreendente, uma vez que todas as vicissitudes relacionadas com a duplicação das gravações anteriores ao acórdão da primeira instância de 7/11/2005 estão documentadas nos autos, nomeadamente, a impossibilidade objetiva do Tribunal proceder à cópia da prova gravada, por força da inexistência de aparelho capaz de proceder à duplicação de cassetes, bem como todos os despachos judiciais produzidos a propósito.
24- Estamos aqui perante uma situação em que se vislumbrava o recurso tendente à reapreciação da prova gravada, razão que levou inclusivamente o legislador processual penal a consagrar um prazo mais alargado de recurso (artigo 411.º, n.º 4 do CPP), uma vez que a razão de ser do prazo-alargado-de 30 (trinta) dias para a interposição de recurso que tenha por objeto a reapreciação da prova gravada radica na maior dificuldade que se depara ao recorrente, face ao disposto nos n.ºs 3 e 4, do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
25-São diversos os acórdãos deste Tribunal Constitucional julgando inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de o prazo para a interposição de recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as considerar essenciais para o exercício do direito de recurso. Neste sentido, recordamos os acórdãos n.ºs 545/06, 546/06, 194/07 e 380/07.
26- Resulta da norma do artigo 101.º n.º 3 do CPP, que a entrega da cópia da prova gravada depende do preenchimento de dois requisitos cumulativos, sim, mas não necessariamente simultâneos: por um lado, a apresentação do requerimento respetivo e por outro, o fornecimento dos suportes necessários. Em nenhum momento encontramos na lei referência à exigência de entrega, conjunta e simultânea destes dois elementos, como pretende o Acórdão recorrido.
27- Sendo que a entrega dos suportes só se revelará necessária, diríamos mesmo, imprescindível, a partir do momento em que houver deferimento do requerimento respetivo, pois só a partir desta data será legítimo aos funcionários judiciais dar cumprimento ao despacho que deferir o mesmo. E mais ainda, numa situação (como a dos autos) em que o tribunal, perante o requerimento dos recorrentes, reconhece a inexistência de aparelho capaz de proceder à solicitada duplicação das gravações.
28- Resulta assim, que o prazo de interposição de recurso (em que se impugne a matéria de facto) a que alude o artigo 411.º, n.º 1 e 4 do Código de Processo Penal terá, pelo menos, que se considerar suspenso entre o momento em que de acordo com o artigo 101.º, n.º 3 do CPP, são requeridas pelo arguido cópias das gravações da prova produzida em audiência e a sua efetiva disponibilização ao mesmo.
29- Sendo que, no caso do requerimento de pedido de cópias das gravações tiver ido a despacho do juiz, designadamente pelo facto do Tribunal, na altura, não possuir meios técnicos para proceder à duplicação das gravações, o arguido recorrente, apenas está obrigado a entregar os necessários suportes após ter sido notificado do deferimento do seu requerimento. E neste caso, continuará a beneficiar da suspensão do prazo de interposição de recurso se atuar de forma diligente, ou seja, entregar no Tribunal os necessários suportes no dia seguinte à notificação do deferimento do seu requerimento.
30- Entendimento diferente, para além de violar os princípios da confiança, da boa fé e da cooperação que devem reger as relações dos sujeitos processuais com o tribunal, violaria gravemente o efetivo direito ao recurso em processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º1, da Constituição.
31- O direito de defesa do arguido em processo penal, constitucionalmente estatuído, é uma cláusula geral que inclui não só todas as garantias explicitadas nos diversos números do art.º 32.º da CRP, mas também todas as demais que decorram da necessidade de efetiva defesa do arguido. Este preceito deve ser interpretado à luz do denominado processo penal equitativo e leal, no qual o Estado, ao fazer valer o seu jus puniendi, deve atuar com respeito pela pessoa do arguido, considerando um sujeito processual a quem devem ser asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação, de ser julgado por um tribunal independente e do processo decorrer com lealdade de procedimentos, considerando-se ilegítimas quaisquer disposições, ou suas interpretações, que impliquem uma diminuição inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.
32- Uma das manifestações deste direito à defesa, atualmente (desde a Revisão de 1997) com consagração específica no texto constitucional (artigo 32.º, n.º 1, in fine) é o direito ao recurso. De modo a garantir a possibilidade de defesa contra a prolação de decisões injustas, deve ser assegurada ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, delas recorrendo. Mas, para que esta possibilidade seja efetiva, é necessário que as normas processuais que regulamentam o direito ao recurso assegurem que o arguido recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar criteriosamente os fundamentos da decisão recorrida, de forma a permitir-lhe um exercício consciente, fundado e eficaz: desse seu direito.
33- Destarte, deve ser considerada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 101.º, n.º 3, 411.º, n.º 1 e 4, e 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretadas no sentido de que em recurso em que se impugne a matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, requerida cópia da gravação da prova produzida, apenas se suspende o prazo de interposição de recurso em curso se, simultaneamente (no mesmo momento) com o pedido das gravações, for entregue no tribunal o suporte técnico necessário à execução da cópia, mesmo que o tribunal não possua meios técnicos capazes de proceder às pretendidas gravações e só em momento posterior, venha a deferir por despacho judicial o então requerido, ou seja, a realização e fornecimento das pretendidas cópias, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Devendo, em consequência, a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o alegado juízo de inconstitucionalidade.
Termos em que, deve ser considerado procedente o presente Recurso e, em consequência:
a) julgada a inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o pedido de correção de uma decisão, formulado pelo arguido nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 380.º do mesmo Código de Processo Penal, não suspende o prazo para aquele interpor recurso dessa mesma decisão, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; devendo, em consequência, a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o alegado juízo de inconstitucionalidade;
b) julgada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 101.º, n.º 3, 411.º, n.ºs 1 e 4, e 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretadas no sentido de que em recurso em que se impugne a matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, requerida cópia da gravação da prova produzida, apenas se suspende o prazo de interposição de recurso em curso se, simultaneamente (no mesmo momento) com o pedido das gravações, for entregue no tribunal o suporte técnico necessário à execução da cópia, mesmo que o tribunal não possua meios técnicos capazes de proceder às pretendidas gravações e só em momento posterior, venha a deferir por despacho judicial o então requerido, ou seja, a realização e fornecimento das pretendidas cópias, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - Devendo, em consequência, a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o alegado juízo de inconstitucionalidade.
Com o que se fará JUSTIÇA»
6. Os recorrentes SETAA – Sindicato da Agricultura, Alimentação e Florestas D. e Outros, apresentaram alegações, concluindo o seguinte:
«1ª) O objeto do presente recurso está delimitado à questão da
“Inconstitucionalidade da norma do art.° 411º, n.° 1 do CPP, interpretada no sentido de que o pedido de correção, de uma decisão, formulado pelo arguido nos termos da alínea b) do n.°1 do art.° 380.° do CPP, não suspende o prazo para aquele interpor recurso dessa mesma decisão.”
2ª) Importa reter os seguintes factos por “todos” reconhecidos nos autos:
• O Acórdão recorrido proferido em lª instância foi lido e depositado em 1 de junho de 2010.
• Em 11 de junho de 2010 foi requerida nos termos e ao abrigo do disposto no art.° 380, n.° 1 - b) do C.P.P. a correção/aclaração do dito Acórdão.
• Tal requerimento mereceu deferimento, tendo o Acórdão sido retificado, quer na sequência do pedido dos Reclamantes, quer ainda oficiosamente por iniciativa do Tribunal, por despacho notificado aos ora Recorrentes, na pessoa do seu mandatário, por carta registada de 23 de junho de 2010, pelo que tal decisão deverá considerar-se notificada a 28 de junho (26 de junho de 2010 - sábado).
• Por requerimento de 22 de junho de 2010 os Recorrentes, por via do competente requerimento, manifestam o propósito de interpor recurso, designadamente quanto à matéria de facto, tendo então solicitado os suportes de gravação áudio referentes à prova.
• O recurso viria a ser interposto em 9 de setembro de 2010.
3ª) Não obstante o pedido de correção/aclaração ter sido deferido, entenderam os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, em Conferência, que tal pedido não dava lugar à suspensão do prazo para interposição do recurso.
4ª) Já que, no seu dizer, e atento o teor da dita correção, não havia prejuízo do efetivo direito de recurso dos Reclamantes, não se verificando por isso o vício da invocada inconstitucionalidade.
5ª) Porém, há que ter presente que a vertente do direito ao recurso a considerar
…“é a que exige que o processo esteja estruturado de modo a permitir o efetivo exercício desse direito, pois a sua proclamação constitucional implica que o Estado fique vinculado a emitir as normas organizatórias e procedimentais adequadas e necessárias ao seu cabal exercício por parte dos interessados”
6ª) Isto é, o direito ao recurso constitui uma das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas ao arguido em matéria penal - art.° 32°, n.° 1 da Constituição.
7ª) A consagração constitucional do direito ao recurso pressupõe que o processo esteja estruturado de forma a permitir o seu efetivo exercício.
8ª) O Recorrente, para que possa efetivamente exercer esse invocado direito constitucional, tem de ter conhecimento da decisão consolidada, isto é, tem de ter conhecimento da decisão que recaiu sobre o pedido de correção.
9ª) Enquanto as dúvidas, obscuridades ou lapsos suscitados no pedido de correção não forem aclaradas, não se mostra estabilizada a decisão.
10ª) Em nome do princípio da segurança jurídica que norteia a disciplina dos prazos processuais, o resultado do incidente pós-decisório (decisão que recai sobre o pedido de correção), qualquer que ele seja, é condicionante dum adequado exercício do direito ao recurso.
11ª) Neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Évora, por Acórdão de 09/09/2011, já supra citado,
12ª) Que, aliás, seguiu e perfilhou, atenta a consistência da fundamentação, o decidido no Acórdão n.º 16/2010 deste Venerando Tribunal Constitucional onde se diz:
“Julgar inconstitucional, por violação do art.° 32°, n.° 1 da Constituição, a interpretação do art.° 380.°, em conjugação com o art.° 411º, n.° 1, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correção de uma decisão, formulada pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma decisão”.
13ª) A decisão recorrida, ao contrário deste comando constitucional supra enunciado, entendeu que o pedido de correção da decisão (sobre o qual incidiu, aliás, despacho de deferimento), não suspendia o prazo para a — interposição do recurso por parte do arguido.
14ª) Entendemos, pois que, tal decisão está ferida de inconstitucionalidade por violação do referido art.° 32.°, n.° 1 da Constituição, na interpretação conjugada que fez dos art.°s 380.º e 411.º, ambos do Código de Processo Penal.
15ª) Pelo que deve determinar-se a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade já explicitado na supra conclusão 12ª.
Nestes termos, pelo exposto e com o mui douto suprimento de V. Exas, que se impetra, requer-se seja concedido provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade, já supra mencionado.
Assim se fará JUSTIÇA»
7. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações, concluindo no sentido da não inconstitucionalidade das normas impugnadas.
8. O recorrido IEFP não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Questão prévia
9. Por despacho de fls. 9753 foi suscitado o não conhecimento do objeto do recurso na parte respeitante à inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de que o prazo para interposição do recurso, em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos tempestivamente requeridas pelos arguidos (questão identificada no ponto ii) supra) e notificadas as partes para alegar na parte restante do recurso.
Como é manifesto pelo teor do despacho referido, não foi proferida qualquer decisão quanto ao conhecimento do objeto do recurso, antes se suscitou a possibilidade de não conhecimento parcial, com vista a possibilitar o contraditório das partes sobre esta questão.
Como bem salientou o Ministério Público na sua resposta, não tem, assim, cabimento a “reclamação para a conferência” que os recorrentes SETAA – Sindicato da Agricultura, Alimentação e Florestas, D. e Outros apresentaram a fls. 9764 e s.
No entanto, por razões de economia processual, deve a referida “reclamação” ser entendida como resposta à questão suscitada no despacho referido.
Importa agora decidir a questão do conhecimento do objeto do recurso nesta parte.
Quer os recorrentes SETAA e Outros, quer os recorrentes A. e Outros pretendem que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de que o prazo para interposição do recurso, em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos tempestivamente requeridas pelos arguidos.
Acontece que o acórdão recorrido não adotou esta interpretação normativa como ratio da sua decisão. O tribunal recorrido entendeu antes que o pedido de cópia dos suportes magnéticos requeridos pelo arguido suspende o prazo de recurso, mas apenas quando é efetuado simultaneamente com a apresentação, pela parte, do material necessário para a cópia. É o que resulta com clareza do seguinte trecho do acórdão, a fls. 9713/9714 dos autos:
«Aqui chegados, é tempo de afirmar que não se adere à tese de que a contagem do prazo de interposição de recurso se inicia no momento em que o Tribunal fornece as cópias da gravação da prova produzida em julgamento, uma vez que, assim e sem fundamento legal, se possibilitaria a duplicação de tal prazo.
A salvaguarda do exercício do direito de defesa que assiste ao arguido em processo crime e o propósito de evitar gastos desnecessários, leva-nos, também, a rejeitar que quem pretende ter acesso às cópias da prova gravada tenha que as solicitar imediatamente após o encerramento da audiência de julgamento e que o prazo consignado no n.º 3 do artigo 101.º do Código de Processo Penal não deva ser descontado no de interposição de recurso.
Pelo que se entende que, requerida a cópia da gravação da prova produzida em julgamento, se suspende o prazo de interposição do recurso até ao momento em que tal pretensão seja efetivamente satisfeita.
(…)
Importa, ainda, referir que a suspensão do prazo no sentido acima apontado tem pressuposto que quem pretende a cópia da gravação da prova produzida em julgamento manifesta tal vontade perante o Tribunal e aí entrega o suporte técnico necessário à execução da cópia.
Da letra da lei decorre que tais requisitos são cumulativos – formulação de requerimento e entrega do suporte técnico necessário à gravação.»
Note-se, aliás, que sendo esta a interpretação acolhida no acórdão recorrido, ela corresponde precisamente a outra das interpretações que os recorrentes A. e Outros identificam como objeto do presente recurso (cfr. ponto iii) supra).
Não havendo coincidência entre a interpretação normativa reputada inconstitucional e aquela que foi, de facto, aplicada como fundamento da decisão, não pode conhecer-se do recurso nesta parte.
Mérito do recurso
10. A primeira questão, objeto de ambos os recursos, é a da inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), interpretada no sentido de que a contagem do prazo para a interposição do recurso se inicia, sempre, com o depósito do acórdão ou sentença, na secretaria do tribunal, independentemente da data em que o conteúdo do mesmo vier a ser colocado à disposição dos arguidos (Recorrentes), na sua totalidade, com caráter de estabilidade, em virtude da correção do acórdão ou sentença.
Resulta dos autos que o acórdão proferido em primeira instância foi datado, lido e depositado na secretaria do tribunal em 1.6.2010, tendo os arguidos, aqui recorrentes, suscitado a sua correção ao abrigo do artigo 380.º do CPP. Por despacho de 22.6.2010 foram indeferidos os pedidos de correção quando à alteração da matéria de facto constante do ponto 415 dos factos provados e assumida a existência do suscitado lapso de escrita na numeração dos artigos da matéria de facto dada como provada e ainda, oficiosamente, de um lapso de escrita no ponto A.e) do dispositivo do acórdão.
Sustentam os recorrentes que esta interpretação viola o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que, ao obrigar à interposição do recurso antes de se conhecer a decisão que recaiu sobre o pedido de correção, não permite o seu exercício efetivo. Além disso, infringe o princípio da segurança jurídica que norteia a disciplina dos prazos processuais.
Questão idêntica a esta foi apreciada no Acórdão n.º 16/2010, desta 2.ª Secção, que, com um voto de vencido, julgou inconstitucional a interpretação do artigo 380.º, em conjugação com o artigo 411.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correção de uma decisão, formulado pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma decisão.
Conclui-se neste aresto o seguinte:
«Só uma regra de fixação precisa do termo inicial do prazo de recurso, quando requerida uma aclaração ou correção da sentença, de aplicação certa em processo penal e dotada de um conteúdo que preserve a utilidade, para efeitos da interposição e da formulação do recurso, em todos os casos, do conhecimento do despacho que recair sobre aquele pedido, se apresenta capaz de cumprir satisfatoriamente as exigências de conformação do direito ao recurso em termos compatíveis com a garantia constitucional.
Não pode considerar-se que as normas dos artigos 380.º e 411.º, n.º 1, do CPP, na interpretação em juízo, contentem todas estas condições. Tal como formulada, sem qualquer resguardo adaptativo, ela, ainda que na prossecução de um interesse legítimo, sacrifica desnecessária e excessivamente a efetividade do direito ao recurso – uma garantia pessoal do arguido, revestida de toda a força jurídico-constitucional que às garantias desta natureza cabe.
Em suma, a interpretação questionada, segundo a qual o prazo para interposição do recurso continua a correr, a partir do termo inicial fixado no artigo 411.º, mesmo quando o arguido requeira a correção da sentença ao abrigo do artigo 380.º do CPP, é inconstitucional, por revelar uma estruturação do processo penal incompatível com o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental.»
Este juízo de inconstitucionalidade é inteiramente transponível para o caso em apreço e não é infirmado pela circunstância de alegadamente o pedido de correção em causa visar um “manifesto lapso de escrita”. Como também se salientou no Acórdão n.º 16/2010, a respeito do tipo de erro cuja correção é suscitada, «as tipologias fenoménicas são muito variadas e de diferenciação gradativa, pelo que, sobretudo tratando-se de inexatidões ou omissões, a sua qualificação como erro ou lapso, ou obscuridade ou ambiguidade, é de molde a suscitar funda incerteza.» E como também aí se fez notar, «[O] pedido de correção da sentença surge porque o seu destinatário (arguido) a considera errónea, obscura ou ambígua. Até ser proferida decisão quanto a esse pedido, o requerente está (ou pode estar) colocado num estado de incerteza quanto aos termos finais da sentença em relação à qual tem que definir o seu interesse em recorrer e, na hipótese afirmativa, conformar o teor do seu recurso. O mesmo é dizer que, em determinadas circunstâncias, o resultado daquele incidente pós-decisório, qualquer que ele seja, é condicionante do adequado exercício do direito ao recurso, pois mesmo que o pedido de correção venha indeferido, só com o conhecimento desta decisão poderá o arguido estar certo do alcance da sentença de que recorre e, consequentemente, construir a sua defesa em sede de recurso (ou até, decidir se toma, ou não, essa iniciativa processual). Só nesse momento, o arguido fica certificadamente, e em definitivo, na posse de todos os dados a ponderar na determinação da sua vontade, quanto ao se e ao modo do exercício do direito ao recurso.»
No caso vertente é manifesto que o erro ou lapso material deixou o interessado em recorrer num estado de dúvida legítima quanto ao conhecimento de todos os elementos indispensáveis à elaboração do seu recurso. Na verdade, a circunstância de a numeração dos itens com os “factos provados” passar do n.º 422 para o n.º 432 tanto pode ter ficado a dever-se a um simples lapso de numeração como à não transcrição de factos dados como provados. A não suspensão do prazo de interposição do recurso até à notificação do despacho que se pronuncie sobre o pedido de correção redundaria numa dificultação indevida do adequado exercício do direito ao recurso.
Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade da norma em questão, por violação do direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
11. A segunda questão, objeto do recurso interposto por A., B. e C. – Associação …, respeita à inconstitucionalidade das normas dos artigos 101.º [e não 100.º, como por manifesto lapso se refere no requerimento de interposição do recurso], n.° 3, 411.º, n.ºs 1 e 4, 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretadas no sentido de que em recurso em que se impugne a matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, requerida a cópia da gravação da prova produzida em audiência, apenas se suspende o prazo de interposição de recurso em curso, se simultaneamente (no mesmo momento) com o requerimento de solicitação das gravações, for entregue no tribunal o suporte técnico necessário à execução da cópia, mesmo que o tribunal não possua meios técnicos capazes de proceder às pretendidas gravações e só em momento posterior, venha a deferir por despacho judicial o então requerido, ou seja, a realização e fornecimento das pretendidas cópias.
Os recorrentes sustentam que também esta interpretação infringe o seu direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Importa ter presente a factualidade subjacente à interpretação questionada para a cabal compreensão do problema, tal como o mesmo foi colocado no plano infraconstitucional.
A este respeito, resulta provado o seguinte:
? Por requerimento de 21.6.2010, os recorrentes A. e Outros solicitaram cópia da gravação da prova produzida durante todas a sessões de julgamento, disponibilizando as necessárias cassetes e/ou CDs para as pretendidas cópias “se necessário”;
? Por requerimento de 22.6.2010, os demais recorrentes, SETAA e outros, formularam pedido idêntico, requerendo que se considerasse suspenso o prazo para interposição do recurso entre a data do requerimento e o dia em que fossem disponibilizados os suportes áudio;
? Em 23.6.2010, foi aberta conclusão nos autos ao juiz titular, com a informação da “inexistência de aparelho capaz de proceder à duplicação das cassetes”;
? Em 30.6.2010, foi proferido despacho a ordenar a satisfação do solicitado, fazendo-se constar do despacho que, “oportunamente, caso venham a ser interpostos recursos do acórdão proferido, o Tribunal pronunciar-se-á sobre a tempestividade dos mesmos e, necessariamente, sobre a suspensão do prazo de interposição do recurso decorrente da demora na entrega dos suportes de gravação da audiência”;
? Em 1.7.2010, o mandatário dos recorrentes A. e Outros fez entregar na secção de processos do tribunal 90 cassetes para cópia da gravação da audiência de julgamento;
? Em 2.7.2010, o mandatário dos recorrentes SETAA e Outros fez entregar na secção de processos do tribunal 89 cassetes para cópia da gravação da audiência de julgamento;
? Em 22.7.2010, foram entregues ao mandatário dos recorrentes SETAA e Outros 82 cassetes, contendo a gravação da prova produzida em julgamento;
? Em 28.7.2010, foram entregues ao mandatário dos recorrentes A. e Outros 71 cassetes com gravação da prova, fazendo-se constar do termo de entrega que “as restantes cassetes, que por lapso se não encontram gravadas seguirão via correio”;
? Em 30.7.2010, foram estas últimas cassetes, no total de 11, enviadas;
? O recurso interposto por SETAA e Outros deu entrada em 9.9.2010; e o recurso interposto por A. e Outros em 10.9.2010.
? Os recursos foram admitidos no tribunal de 1.ª instância;
? Concluso o processo no Tribunal da Relação de Évora, foi proferida decisão sumária onde se rejeitaram, por intempestividade, os recursos interpostos;
? A referida decisão sumária foi confirmada pelo acórdão recorrido, que julgou improcedentes as reclamações para a conferência apresentadas pelos recorrentes.
O acórdão recorrido considerou que a suspensão do prazo de interposição do recurso só se iniciou no dia em que os recorrentes disponibilizaram as cassetes para cópia, respetivamente 1.7.2010 e 2.7.2010 e, em consequência, o prazo para recorrer terminou, respetivamente em 2.9.2010 e 3.9.2010, sendo os recursos interpostos intempestivos.
Na fundamentação desta decisão, salienta o Tribunal da Relação de Évora que a suspensão do prazo «tem como pressuposto que quem pretende a cópia da gravação da prova produzida em julgamento, manifesta tal vontade perante o Tribunal e aí entrega o suporte técnico necessário à execução da cópia», decorrendo da letra da lei «que tais requisitos são cumulativos – formulação do requerimento e entrega do suporte técnico necessário à gravação». Analisando, mais à frente, a factualidade do caso, o tribunal recorrido faz notar que «[O] facto de o Tribunal não ter os meios técnicos necessários para a gravação de cópia da prova produzida em julgamento, sendo alheio a quem a solicitou, não exime da entrega dos meios técnicos necessários. Tal insuficiência técnica por parte da entidade que deve proceder às cópias da gravação da prova produzida em julgamento tem apenas interferência no período de suspensão do prazo de interposição do recurso». Termina, afirmando que «da atuação do Tribunal não resultou a criação de qualquer expectativa nos Recorrentes que mereça, agora, atenção e tutela».
É sabido – e o próprio acórdão recorrido o refere – que esta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional tem fixado jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de o prazo para a interposição do recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as considerar essenciais para o exercício do direito ao recurso (cfr. Acórdãos n.ºs 545/2006, 546/2006, 194/2007 e 380/2007).
Não é, no entanto, esta a dimensão normativa em questão nos presentes autos. Como já se referiu (cfr. ponto 9. da presente decisão), o acórdão recorrido considerou, pelo contrário, que uma vez requerida a cópia da gravação da prova produzida em julgamento, «se suspende o prazo de interposição do recurso até ao momento em que tal pretensão seja efetivamente satisfeita».
Também não está apenas em causa a inconstitucionalidade de uma interpretação conjugada dos citados preceitos legais e, nomeadamente, do artigo 101.º, n.º 3, do CPP, no sentido de que a suspensão do prazo do recurso tem como pressuposto a satisfação cumulativa e simultânea dos dois requisitos a que se refere esta norma, ou seja, a formulação do requerimento solicitando cópia da gravação e a entrega do suporte técnico necessário à gravação. Esta dimensão normativa faz parte da questão objeto do presente recurso, mas não a esgota.
A exata dimensão normativa que foi colocada à apreciação deste Tribunal Constitucional é a de saber se é compatível com o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, uma interpretação das normas dos artigos 101.º, n.° 3, 411.º, n.ºs 1 e 4, 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, no sentido de que o requerimento a pedir a cópia da gravação da prova produzida em audiência não suspende o prazo de interposição do recurso, quando tal requerimento não foi acompanhado do suporte técnico necessário à execução da cópia, ainda que, à data do requerimento, o tribunal não possuísse os meios técnicos capazes de proceder às pretendidas gravações e só em momento posterior venha a ser deferido, por despacho judicial, o mencionado pedido de gravação.
Da factualidade acima elencada, normativamente espelhada na dimensão que foi enunciada como objeto do recurso, resultam particularidades que a colocam fora do procedimento “tipo” previsto no n.º 3 do artigo 101.º do CPP.
Na verdade, tendo os arguidos/recorrentes requerido que lhes fosse fornecida cópia da gravação da prova produzida em audiência de julgamento, tal gravação não foi oficiosamente (pelo funcionário) fornecida pelo tribunal, tal como prevê a norma em questão. Antes foi aberta conclusão ao juiz titular do processo, com informação da «inexistência de aparelho capaz de proceder à duplicação das cassetes», a seguir à qual foi proferido despacho, pelo juiz, a ordenar a satisfação do solicitado. Na sequência deste despacho, os recorrentes entregaram as cassetes para a cópia da gravação.
O que está em causa na dimensão normativa questionada é a conformidade constitucional de uma interpretação que extrai consequências do incumprimento de um ónus procedimental por parte dos arguidos (entrega das cassetes em simultâneo com o pedido de gravação da prova), para as fazer refletir no plano processual (no início da contagem do prazo de interposição do recurso), mesmo quando se verificava a impossibilidade de, à data, o próprio tribunal cumprir os deveres procedimentais que lhe caberiam, caso o tal ónus tivesse sido cumprido (impossibilidade de fornecer aos arguidos a cópia das gravações pela inexistência de aparelho capaz de proceder à duplicação das cassetes).
Esta circunstância que retardou o acesso ao conteúdo da prova gravada não constitui, todavia, base para uma valoração justificativa ou sanadora do não cumprimento tempestivo daquele ónus de fornecimento ao tribunal do suporte técnico necessário. Dentro da sequência temporal dos atos que compõem a tramitação processual, essa entrega deveria ter sido efetuada pelos recorrentes no momento próprio, não ficando condicionada pela posterior verificação da possibilidade fáctica de cumprimento do dever de disponibilização pelo tribunal da prova gravada.
O que a preservação das condições de exercício consciente, fundado e adequado do direito ao recurso exige, quando ele tem por objeto a reapreciação da prova gravada, é que o prazo se suspenda até à disponibilização das cópias dos suportes magnéticos contendo a gravação dos depoimentos prestados em sede de julgamento. É esse momento, em que o interessado em recorrer pode ter acesso à gravação de tais depoimentos, que deve determinar a contagem do prazo de interposição do recurso. Tem sido esta a orientação constante deste Tribunal, expressa nos acórdãos supra mencionados.
De acordo com o sentido tutelador e garantístico deste critério, qualquer impedimento ou insuficiência técnica da esfera do tribunal, que obstaculize ou retarde a efetiva disponibilização dos suportes de gravação da prova produzida não pode afetar o exercício do direito ao recurso. Mas tal apenas aconteceria se tal facto não se repercutisse no alongamento do período de suspensão do prazo de recurso, o que, como vimos, não foi o critério adotado pela decisão recorrida.
Essa suspensão do prazo de interposição é uma garantia adequada e suficiente do direito ao recurso, nada justificando que a concorrência de um motivo, imputável ao tribunal, impossibilitante do acesso à gravação, torne retrospectivamente irrelevante a omissão, imputável aos recorrentes, da anterior entrega dos suportes magnéticos.
O ponto decisivo está, assim, em saber se merece censura constitucional, por afetação indevida do direito ao recurso, a interpretação que o tribunal recorrido fez no sentido de que «a suspensão do prazo (…) tem como pressuposto que quem pretende a cópia da gravação da prova produzida em julgamento manifesta tal vontade perante o tribunal e aí entrega o suporte técnico necessário à execução da cópia.
Da letra da lei decorre que tais requisitos são cumulativos – formulação do requerimento e entrega do suporte técnico necessário à gravação».
A resposta é negativa. Trata-se de um ónus não desproporcionado, de cumprimento fácil, que em nada contende com a possibilidade de efetivo exercício do direito ao recurso, de forma consentânea com a funcionalidade que constitucionalmente lhe está atribuída, pelo artigo 32.º, n.º 1. Atuando em interesse próprio, justifica-se que recaia sobre quem pretenda recorrer o ónus de colaborar com o tribunal nos procedimentos que lhe vão garantir o acesso a dados tidos por essenciais ao exercício do direito ao recurso. E não ofende o direito ao recurso o entendimento de que a suspensão do prazo só começa quando o interessado, pelo cumprimento cabal dos ónus a seu cargo, pôs o tribunal em condições de cumprir o dever de proporcionar o acesso à prova gravada.
Forçoso é, por isso, concluir pela não inconstitucionalidade desta interpretação normativa.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não conhecer dos recursos na parte respeitante à inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de que o prazo para interposição do recurso, em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência de julgamento tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos tempestivamente requeridas pelos arguidos.
b) Julgar inconstitucional, por violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correção de uma decisão, formulado pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma decisão;
c) Não julgar inconstitucionais as normas do artigos 101.º, n.° 3, 411.º, n.ºs 1 e 4, 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretadas conjugadamente no sentido de o prazo para o exercício do direito ao recurso em que se impugne a matéria de facto só se suspender quando, simultaneamente com o requerimento de solicitação das gravações, for entregue no tribunal o suporte técnico necessário à execução da cópia, mesmo que à data o tribunal não possua os meios técnicos necessários à gravação e só em momento posterior venha a deferir, por despacho judicial, o fornecimento das pretendidas cópias.
Consequentemente,
d) Julgar o recurso parcialmente procedente, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade referido em b).
Sem custas.
Lisboa, 6 de junho de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano (subscrevi a declaração de inconstitucionalidade constante da alínea b) da decisão, mantendo a posição assumida na declaração de voto aposta no Acórdão n.º 16/2010, dado que neste caso o requerente formulou um pedido de aclaração). – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.