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Proc. nº 788/93
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A interpôs, no Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação de despacho de 6 de Abril de 1989 da Ministra da Saúde, que deu por finda a sua comissão de serviço na Administração Regional de Saúde de Lisboa, com o consequente regresso ao seu lugar de origem no quadro de pessoal do Hospital de Santa Maria, alegando o vício de violação de lei.
2. Na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, por decisão de 13 de Fevereiro de 1992, negou-se provimento ao recurso, por se entender que o acto impugnado não era ilegal.
Considerou-se que a disposição legal ao abrigo da qual a recorrente foi nomeada em comissão de serviço (o artigo 82º do Decreto-Lei nº
413/71, de 27 de Setembro, que prevê a admissão de pessoal em comissão de serviço durante o período de instalação de serviços do Ministério da Saúde e a caducidade da admissão findo o prazo de instalação), não impedia - contrariamente ao sustentado pela recorrente - que a comissão de serviço viesse a ser dada por finda em momento anterior ao termo do período de instalação. Apoiou-se a argumentação na ideia de precaridade do provimento em comissão de serviço, que permite à Administração fazer cessar a comissão a todo o tempo, por conveniência de serviço. E por isso se concluiu pela improcedência da pretensão da recorrente.
3. Dessa decisão interpôs a recorrente recurso jurisdicional para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo.
Nas subsequentes alegações de recurso, em que se aludiu pela primeira vez a questões de constitucionalidade, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1 - A Recorrente foi nomeada em 'comissão ordinária de serviço' (em lugar vago) por ser essa a forma legalmente permitida, pois que a Administração Regional de Saúde de Lisboa estava em 'regime de instalação' (art. 82º, nº 2, segunda parte, do Decreto-Lei nº 413/71, de 27 de Setembro, aplicável ex vi do art. 7º do Decreto-Lei nº 254/82, de 29 de Junho).
2 - Esta comissão de serviço só pode findar (caducar, diz a lei) nos termos previstos no art. 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº 413/71, de 27 de Setembro
(associadamente com o que se precipita do Decreto-Lei nº 513-U/79, de 27 de Dezembro, com as alterações do Decreto-Lei nº 96/80, de 5 de Maio).
3 - No caso, não estava preenchido o pressuposto legal (o regime de instalação ainda não findara), pelo que por erro acerca do pressuposto de direito o acto impugnado enferma do vício de violação de lei.
4 - Julgando válido e legal o acto impugnado o douto acórdão sob recurso, salvo o devido respeito, não fez bom julgamento.
5 - De outra banda, esta comissão de serviço goza da vocação de perenidade (cfr. art. 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº 413/71, de 27 de Setembro, associadamente com a disciplina legal para o fim do regime de instalação constante do Decreto-Lei nº 513-U/79, de 27 de Dezembro, com as alterações do Decreto-Lei nº 96/80, de 5 de Maio), por isso que comunga da 'segurança' consignada no art. 53º da CRP (versão da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro), e que é uma expressão directa do direito ao trabalho.
6 - A esta luz, os normativos em que se fundou o douto acórdão sob recurso são, na interpretação e aplicação deles feita, materialmente inconstitucionais (colidem com os arts. 53º e 59º, nº 1), pelo que, aplicando-os, o douto acórdão recorrido, salvo o merecido respeito, não julgou bem (cfr. art. 207º da CRP e art. 4º, nº 3, do ETAF).'
4. O Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso jurisdicional, confirmando o acórdão recorrido.
Na fundamentação, argumentou-se nos termos seguintes:
'(...) A questão a decidir consiste, assim, em saber se era legítimo dar por finda a comissão de serviço que a recorrente, do quadro de pessoal do Hospital de Santa Maria, vinha desempenhando na Administração Regional de Saúde de Lisboa, antes do termo do regime de instalação desta e se as citadas normas, na interpretação que o acórdão recorrido delas fez, são inconstitucionais.
(...) Ora, preceitua o art. 82º do citado DL 413/71, de 27 de Setembro:
'1. Durante o período de instalação, o Ministro da Saúde e Assistência poderá autorizar livremente a admissão do pessoal indispensável ao funcionamento dos serviços, sem prejuízo, porém, das exigências das habilitações de base e do limite de idade, estabelecidas para lugares de idênticas categorias dos quadros ou das carreiras profissionais.
2. As admissões serão feitas em regime de prestação eventual de serviço, salvo se recaírem em funcionários públicos ou administrativos, caso em que serão feitas em comissão de serviço.
(...)
4. As admissões caducam findo o período de instalação, se os admitidos não vierem a ingressar nos quadros do respectivo serviço ou estabelecimento.'
Deste último normativo só é legítimo concluir que as comissões de serviço caducam, findo o período da instalação, se os admitidos não vierem a ingressar nos quadros do respectivo serviço ou estabelecimento e não que só nesse caso é que caducam.
É da essência da comissão de serviço, que tem por fim garantir as tarefas próprias do período de instalação, a sua natureza precária, como bem se compreende, pois da necessidade do serviço depende ou deriva a razão de ser da própria comissão. Daí que se justifique o seu termo antes do fim do período de instalação, por conveniência de serviço. Daí, também, que o nº 2 do citado preceito estatua que para os não funcionários públicos ou administrativos, as admissões sejam feitas em regime de prestação eventual de serviço.
Tratando-se, como se trata, de uma comissão eventual - já que dura o tempo necessário à realização do trabalho ou missão que a justifica - a mesma tem carácter amovível, isto é, o órgão que superintende no cargo pode a todo o tempo, por conveniência de serviço, como salienta Marcello Caetano, in Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª ed., reimpressão, pág. 674, dar por finda tal comissão.
Diferente é a comissão ordinária de serviço, prevista na lei como modo normal de provimento por nomeação para o exercício de certos cargos, com duração fixada na lei, renovável ou não mediante recondução. Estão neste caso as comissões de serviço previstas no DL 191-F/79, de 26 de Junho, para cargos dirigentes.
Anote-se que mesmo relativamente a estas comissões, em que os nomeados têm muito mais garantias que os das comissões eventuais de serviço, como facilmente se infere do citado DL 191-F/79, as mesmas podem ser dadas por findas antes do termo do prazo legal - cfr. art. 4º do citado diploma. Assim, e no que concerne, por exemplo, às comissões dos directores-gerais, subdirectores-gerais ou equiparados, podem ser dadas por findas a todo o tempo, por simples despacho do membro do Governo competente - cfr. nº 3 do aludido art.
4º.
Ao admitido em comissão eventual de serviço prevista no art. 82º do DL 413/71, contrariamente ao alegado pela recorrente, não assiste o direito de ingresso nos quadros do respectivo serviço findo que seja o regime de instalação, até porque a nomeação do pessoal, através da aprovação ministerial dos quadros, é poder discricionário da Administração - cfr. art. 84º do referido diploma.
É evidente que o despacho que nomeou a recorrente para a comissão de serviço em causa é constitutivo de direitos, como afirma, mas desta circunstância não pode derivar o carácter inamovível deste modo de provimento até ao termo do regime da instalação.
Como salienta João Alfaia, in Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público, vol. I, pág. 325, o regime da comissão de serviço tem de ser encontrado casuisticamente face aos dispositivos aplicáveis.
Ora, no caso vertente, os normativos considerados apontam para o carácter amovível, para a natureza precária, da comissão de serviço, pelo que podia a autoridade recorrida, como órgão superintendente da Administração Regional de Saúde de Lisboa, dar por finda, como deu, a comissão da recorrente, antes do termo do regime de instalação, por conveniência de serviço.
(...) Alega ainda a recorrente que o art. 82º, nº 4, do DL 413/71, de 27 de Setembro, com a interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, viola as normas dos arts. 53º e nº 1 do art. 39º da Constituição na versão da Lei Constitucional, na versão da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, pelo que é materialmente inconstitucional.
O seu laconismo, porém, ao referir-se tão só à 'segurança' de que comunga a referida comissão, e de que essa 'segurança' está consignada no citado art. 53º, é bem a evidência da sua pouca segurança quanto à inconstitucionalidade da norma constante do nº 4 do art. 82º do DL 413/71, uma vez que se conclui ser conforme à Constituição a interpretação que dela fez o acórdao recorrido.
Efectivamente, não se vislumbra em que é que o termo da comissão de serviço antes de findo o regime de instalação, por conveniência de serviço, consentida por aquele normativo, colide com a segurança no emprego - art. 53º da Constituição - ou com o direito ao trabalho - art. 59º, nº 1, da Lei Fundamental
- já que, se por um lado, a recorrente não foi 'despedida', por outro, continuou a trabalhar no seu quadro de origem, usufruindo de todos os direitos e regalias inerentes.'
5. É desta decisão que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº 413/71, de 27 de Setembro, na interpretação dada pela decisão recorrida (em conjugação, segundo a recorrente, com a disciplina legal do fim do regime de instalação constante do Decreto-Lei nº 513-U/79, de 27 de Dezembro, com as alterações do Decreto-Lei nº 96/80, de 5 de Maio), por alegada violação dos artigos 53º e 59º, nº 1, da Constituição.
Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões:
'1 - A Recorrente, que era 'funcionária' (estava provida em lugar do quadro de pessoal do Hospital de Santa Maria), foi 'nomeada' para 'vaga existente' na Administração Regional de Saúde de Lisboa - 'nomeação' na modalidade de
'comissão de serviço' por ser essa a única forma legalmente admissível, já que a Administração Regional de Saúde de Lisboa se encontrava em 'regime de instalação'.
2 - Aquela 'nomeação' tinha vocação de perenidade, só lhe podendo ser posto termo verificando-se a situação hipotizada no art. 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº 413/71, de 27 de Setembro - preceito a interpretar e aplicar hoje em obediência ao que promana do art. 47º, nº 2, da Constituição, enquanto nele se abrange o direito a ser mantido nas funções (jus in officio).
3 - A situação hipotizada no art. 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº
413/71, de 27 de Setembro, não se verificava - pelo que ao ser posto termo, como o foi, à relação jurídica de emprego público constituída com a Administração Regional de Saúde de Lisboa se ofenderam os arts. 53º, nº 1, 59º, nº 1, associadamente com o art. 47º, nº 2, da Constituição (art. 59º, nº 1, na vertente de direito à escolha do posto de trabalho em ligação umbilical com aqueloutro direito de ser mantido nas funções).
4 - Assim, o art. 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº 413/71, de 27 de Setembro, na interpretação e aplicação que dele foi feita pelo douto acórdão recorrido, é materialmente inconstitucional.'
A entidade recorrida não apresentou contra-alegações.
6. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
7. Objecto do presente recurso é a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº
43/71, de 27 de Setembro, que dispõe o seguinte:
'As admissões caducam, findo o período de instalação, se os admitidos não vierem a ingressar nos quadros do respectivo serviço ou estabelecimento.'
No entender da recorrente, tal norma teria sido aplicada, sucessivamente, pelo Ministro da Saúde e pelo Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão da 1ª secção e do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, segundo uma interpretação contrária a normas e a princípios constitucionais.
De acordo com tal interpretação, a expressa estatuição de caducidade no termo do período de instalação (na hipótese de não ingresso no quadro a criar) não exclui a possibilidade de, por acto administrativo fundamentado em conveniência de serviço, se fazer cessar a comissão de serviço antes desse momento.
8. Assim interpretada, a norma em crise violaria, alegadamente, os artigos 47º, nº 2, 53º, nº 1, e 59º, nº 1, da Constituição. Ao identificar estas normas constitucionais, a recorrente afirma que se refere à versão da Constituição que vigorava ao tempo da prática do acto administrativo, mas comete um lapso. Na verdade, o acto foi praticado em 6 de Abril de 1989, antes de entrar em vigor a Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho (2ª revisão constitucional). Ora, na versão da 1ª revisão, dada pela Lei Constitucional nº
1/82, de 30 de Setembro - que vigorava quando o acto foi praticado - o artigo
53º não possuía quaisquer números. De todo o modo, as normas constitucionais citadas pela recorrente correspondem hoje, literalmente, aos artigos 47º, nº 2,
53º e 58º, nº 1.
Haverá violação, pretensamente, do direito de acesso à função pública - na dimensão em que implica o direito de ser mantido em funções
(cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 265) -, da garantia de segurança no emprego e da proibição de despedimentos sem justa causa e do direito ao trabalho. E tratar-se-á de uma 'inconstitucionalidade superveniente', visto que a norma sindicada consta de legislação ordinária anterior à Constituição de 1976 (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constiucional, II vol., 3ª ed., 1991, p. 285 e ss.; e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, p. 1114).
9. A comissão eventual de serviço é concebida, tradicionalmente, como precária, entendendo-se que pode ser feita cessar a todo o tempo, por conveniência de serviço (assim, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, II vol., 9ª ed., 1972, p. 674). No caso vertente, tal comissão destinava-se a satisfazer necessidades de serviço durante o período de instalação da Administração Regional de Saúde de Lisboa e estava sujeita, como se viu, a uma regra de caducidade (artigo 82º, nº 4, do Decreto-Lei nº 431/71).
A primeira questão que se coloca respeita à interpretação deste regime: ao contemplar o regime de caducidade, o legislador terá pretendido tipificar essa figura legal como único modo possível da cessação da comissão de serviço?
Sendo evidente que parece de excluir (aqui) uma interpretção a contrario sensu (segundo a qual, ao 'permitir-se' a caducidade, se proibiria outro modo de cessação da comissão de serviço), deve concluir-se que esta questão excede os poderes cognitivos deste Tribunal. Ao Tribunal Constitucional não compete avaliar se o Supremo Tribunal Administrativo procedeu a uma correcta interpretação da norma em crise ou se ela não terá sido até revogada por normas infra-constitucionais posteriores. Compete-lhe - isso sim - averiguar se a interpretação normativa explícita ou implicitamente aplicada viola a Constituição.
10. A questão resume-se, assim, à seguinte ponderação: a norma que permite fazer cessar, por razões de interesse público (cuja adequada invocação não é, agora, sindicável), a comissão de serviço viola o direito de acesso ou permanência na função pública, a garantia de segurança no emprego e a proibição de despedimentos sem justa causa e o direito ao trabalho?
Deve observar-se, em primeiro lugar, que o acto que fez cessar a comissão de serviço da recorrente, por razões de interesse público, não pode constituir um acto arbitrário. Ele é antes um acto praticado ao abrigo de poderes essencialmente discricionários, que, no entanto, pode incorrer não só no vício de desvio de poder, mas também no vício de violação de lei (cf. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, 1989, pp. 306-8).
Importa ter presente, por outro lado, que a cessação da comissão de serviço da recorrente teve como consequência o regresso ao quadro de origem, com os inerentes direitos e deveres funcionais. Deste modo, nem a permanência na função pública, nem a segurança no emprego, nem o direito ao trabalho foram postos em causa. A cessação da comissão de serviço apenas afectou a concreta conformação da prestação de serviço pela funcionária, que, no entanto, está já fora do âmbito dos referidos direitos (cf., sobre o conteúdo do direito de permanecer na função pública, o Acórdão nº 340/92 do Tribunal Constitucional, D.R., II série, de 17 de Novembro de 1992).
Só seria configurável uma violação das normas constitucionais citadas se a cessação da comissão de serviço provocasse a quebra do vínculo à função pública e a impedisse de regressar ao lugar de origem.
Por conseguinte, conclui-se que o nº 4 do artigo 82º do Decreto-Lei nº 421/71, de 27 de Setembro, não viola as normas constantes dos artigos 47º, nº 2 e 58º, nº 1, da Constituição e que deve ser negado provimento ao presente recurso.
III Decisão
11. Nestes termos, decide negar-se provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa,6 de Março de 1996
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Diniz
José Manuel Cardoso da Costa