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Proc.Nº 389/93
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A. viu admitido pelo Acórdão nº 342/95, deste Tribunal o recurso interposto do despacho do presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que lhe indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu o recurso interposto da sentença final proferida nos autos da acção de despejo que B. e C. moveram contra D..
De acordo com o decidido no referido aresto, o recurso tem por objecto a apreciação da conformidade à Constituição da interpretação feita na decisão recorrida do artigo 680º, nº 2, do Código de Processo Civil
(CPC), segundo a qual o filho da locatária, maior, que habita o local locado não pode qualificar-se como uma das 'pessoas directa e efectivamente prejudicadas' pela sentença que decretou o despejo.
2. - Neste Tribunal, o recorrente produziu alegações em que concluiu pela forma seguinte:
'O contrato de arrendamento para habitação, não assinado pelo filho, tanto vale para a Ré como para seu filho maior (Artºs 65º/1, 67º/1, CRP). Ou seja, o contrato nem é para exclusiva residência da Ré nem caduca em vida (ou por morte) da Ré se o filho permanecer no locado.
- A sentença/92.01.08 aplicou o Artº 1093º, CC, com interpretação inconstitucional.
- As decisões (29/9/92, 26/1/93) recusaram o disposto quanto ao caso julgado:Artº 675º, CPC. E,
- Aplicaram o Artº 680º/2, CRP, com interpretação em desconformidade com os Artºs:13º/1, 16º/1, DUDH, 65º/1, 67º/1, CRP. Ou aplicaram [???]
o residente no locado, que não seja arrendatário, embora filho maior da locatária e Ré, não é pessoa directa e efectivamente prejudicada com o despejo declarado e, por isso, não pode recorrer da decisão de tal despejo.'
Pelo seu lado, as recorridas também alegaram, tendo concluído as alegações pela forma seguinte:
'1º - O douto despacho do Exmo Sr. Presidente da Relação de Lisboa que confirmou a decisão do Mmo Juiz do 4º Juízo Cível 3ª Secção, ao indeferir o recurso apresentado pelo Recte. da sentença que decretou o despejo em que eram AA. as recorridas e Ré a locatária, não enferma de qualquer inconstitucionalidade;
2º - O Recte. não invocou a pretensa inconstitucionalidade perante o Tribunal
'a quo', pelo que não se verificam os pressupostos de recurso para este Venerando tribunal, artºs 70º a 72º da Lei 28/82, de 15/11;
3º - O despacho recorrido não viola qualquer das disposições constitucionais invocadas, nem as contidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que são meramente programáticas e inserem-se nos fins do Estado e da Sociedade em geral;
4º - As questões de transmissão ou resolução do arrendamento não constam do despacho do Exmo. Presidente da Relação de Lisboa, pelo que não deviam constar da alegação do Recte., pois foram já apreciadas e julgadas em douto Acórdão da Relação de Lisboa de 24/06/1993 que já transitou em julgado.
5º - O Recorrente pretende novo julgamento da causa e não o controlo de constitucionalidade de uma norma jurídica.'
Em causa está, assim, no presente recurso, a questão de saber se a norma do artigo 680º, nº 2, do CPC, na interpretação de que o filho da locatária, maior, que habita o arrendado não pode qualificar-se como uma das pessoas directa e efectivamente prejudicadas' pela sentença que decretou o despejo, viola as normas dos artigos 13º, nº 1 e 16º, nº 3, do DUDH e 65º, nº 1 e 67º, nº1, da Constituição.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Vejamos, em primeiro lugar, o teor das normas em causa.
O artigo 680º do CPC estabelece:
'1. Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2. Mas as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.'
A interpretação desta norma que o recorrente considerou inconstitucional já foi atrás referida.
De acordo com as conclusões do recorrente, tal interpretação violaria, em primeiro lugar, as normas do nº 1 do artigo 13º e do nº 3 do artigo 16º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (D.U.D.H.), bem como dos artigos 65º, nº1 e 67º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.
Mas importa referir, antes de prosseguir na apreciação do pedido, que desta apreciação tem de ficar arredada a alegada violação de normas da Declaração Universal. Com efeito, sempre que se coloque a questão da contrariedade de norma do direito interno com norma de direito internacional, o poder de cognição do Tribunal Constitucional só poderá abranger normas cuja aplicação tenha sido recusada na decisão recorrida, ou que nela tenham sido aplicadas em desconformidade com o sentido de anterior julgamento deste Tribunal, conforme resulta da alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Ora é manifesto que o presente recurso não cabe na previsão desta alínea, visto que tem ele por objecto norma que foi aplicada na decisão.
Porque é assim, na continuação, ter-se-á em conta apenas os preceitos constitucionais que são parâmetro de validade da norma sindicada.
4. A questão que vem suscitada nos autos é a de saber se o requerente, enquanto filho maior da locatária, cujo contrato de arrendamento foi declarado resolvido, tem legitimidade para recorrer de tal decisão, não sendo parte principal na causa nem tendo nela uma intervenção acessória.
Com efeito, a decisão recorrida entendeu que o recorrente não tinha sido directa e efectivamente prejudicado pela decisão recorrida e, por isso, não admitiu o recurso interposto pelo recorrente, ao abrigo do preceituado no artigo 680º, nº2, do CPC.
O recorrente entende que, assim compreendida, a norma referida é inconstitucional.
Vejamos.
O artigo 680º do CPC inserido no capítulo dos recursos, define a legitimidade de quem pode interpor recurso em processo civil. Assim, o nº 1 estabelece que os recursos só podem ser interpostos, por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
Da conjugação do artigo 680º com o nº 3 do artigo 687º, ambos do CPC, resulta que têm legitimidade para recorrer não só as partes principais que tenham ficado vencidas, mas também os terceiros e as partes acessórias que tenham sido directa e efectivamente prejudicados pela decisão, bem como os terceiros, no recurso extraordinário de oposição de terceiro.
Como exemplos de terceiros com legitimidade para recorrerem das decisões que os afectem directa e efectivamente, a doutrina costuma referir, para o processo civil, as testemunhas e peritos quando, por exemplo, hajam sido condenados em multa por acto ou omissão que tenham praticado e, para o processo executivo, os depositários, arrematantes, remidores e preferentes (cfr., Armindo Ribeiro Mendes, in 'Recursos em Processo Civil',
1992, pág. 163/164).
Embora se tenha entendido que os terceiros só podiam interpor recurso desde que tivessem tido, por qualquer título, intervenção no processo, o certo é que os tribunais têm defendido que pessoas que não figuram na acção como partes acessórias ou que nela não intervieram a qualquer título podem recorrer de decisões proferidas, desde que por elas sejam directa e efectivamente prejudicadas.
Assim, o critério essencial é o de saber se a decisão afecta directa e efectivamente o terceiro, isto é, se dela resulta para este 'um prejuízo que directa e efectivamente se repercuta na sua esfera jurídica' (cf. Ribeiro Mendes, ibidem, pág. 165), pelo que o prejuízo tem de ser real e jurídico, não podendo ser meramente factual.
5. - No caso dos autos, o recorrente era filho maior da locatária do arrendado - única titular do contrato de arrendamento - que, segundo os factos apurados, viveu no arrendado desde o início do arrendamento até 1963, na companhia do filho, tendo depois a locatária ido 'viver para o estrangeiro há cerca de 8 (oito) anos, só ali voltando nas férias, deixando, assim, de comer, dormir e receber correspondência e os seus amigos no andar locado: neste ficou a viver um filho de nome E., nascido no dia 15.11.43.' (cfr. matéria de facto a fls. 110, verso, dos autos).
O processo em causa é um processo de despejo, cuja decisão foi no sentido da procedência do pedido, condenando-se a ré e locatária a despejar o arrendado, com fundamento em não ter residência permanente no arrendado.
Foi desta decisão que o filho da locatária pretendeu interpor recurso ordinário, que não veio a ser admitido, originando a reclamação para o Presidente da Relação e o presente recurso de constitucionalidade, derivado directamente desta reclamação.
Importa agora apurar se a interpretação da norma do nº 2 do artigo 680º do CPC, feita na decisão recorrida, viola ou não o princípio da livre escolha de residência e os direitos constitucionais de habitação e de protecção à família.
6. - O recorrente, nas suas alegações, não concretiza de forma explícita em que consiste a violação do princípio da livre fixação de residência, pela interpretação feita na decisão de que pretende recorrer e que foi reafirmada na decisão recorrida, ao confirmar o despacho de não admissibilidade do recurso.
Com efeito, limita-se a referir que as decisões que questiona 'aplicaram o art. 680º/2, CRP (sic!), com interpretação desconforme com os Artºs.: 13º/1, 16º/3, DUDH, 65º/1, 67º/1, CRP. Ou aplicaram o residente no locado, que não seja arrendatário, embora filho maior, da locatária e Ré, não
é pessoa directa e efectivamente prejudicada com o despejo declarado e, por isso, não pode recorrer da decisão de tal despejo'.
Assim, na óptica do recorrente, a única interpretação não violadora da Constituição seria a que considera que o filho maior da locatária, cujo contrato foi declarado resolvido por não residir no locado e viu ser ordenado o despejo do arrendado, é pessoa directa e efectivamente prejudicada com tal decisão, para dela poder recorrer ao abrigo do preceituado no artigo 680º, nº 2, do CPC.
Não vindo questionado o direito de livre circulação, a questão apenas se poderia relacionar com o direito de residência. Porém, o direito constitucional reconhecido a todos os cidadãos de se 'fixarem livremente em qualquer parte do território nacional' (artigo 44º, nº1 da Constituição) nada tem a ver com o direito de poder ou não interpor recurso de uma decisão de resolução do contrato de arrendamento de que o recorrente nem sequer é titular. Aquele direito constitucionalmente reconhecido garante que a pessoa mantenha a residência a que legitimamente tem direito, mas não pode impedir o proprietário de fazer valer os seus direitos para obter a resolução do respectivo contrato, desde que tenha motivos legais para o fazer.
Assim, tem de se concluir que a norma questionada não envolve qualquer violação do artigo 44º, nº 1 da Constituição.
7. - Antes, porém, de entrar na apreciação das questões de constitucionalidade que o recorrente suscita nas suas alegações, importa assinalar que o recurso ao artigo 680º, nº 2 do Código de Processo Civil e consequente invocação de inconstitucionalidade, não era o único meio ao dispor do recorrente para obter a sua intervenção pessoal no processo.
Com efeito, se é certo que, em princípio, a relação processual corre os seus termos entre as partes, isto é, entre as pessoas que requerem a intervenção do tribunal e aquelas contra quem se requere tal intervenção (cf. Manuel de Andrade, 'Noções Elementares de Processo Civil', Coimbra, 1963, pg.75), o processo civil admite a possibilidade da intervenção de terceiros na lide, procurando realizar não só o princípio da celeridade processual, mas principalmente a regulação com a máxima amplitude da relação substantiva permitindo a intervenção de todos quantos tenham interesse directo na lide ou possam ser por ela directamente prejudicados.
Há, todavia, que reconhecer que, passando-se tudo numa primeira fase puramente adjectiva, o ordenamento processual, subordinado como está ao direito material, ao serviço do qual se encontra, não pode conferir nem menos nem mais direitos do que aqueles que derivam do direito substantivo. Mas, admitido o terceiro a intervir, a decisão deve apreciar o seu direito e constituirá caso julgado em relação a ele ( artigo 359º, nº1, do Código de Processo Civil - CPC).
No caso, o ora recorrente sempre teve ao seu dispor a possibilidade de lançar mão, a todo o tempo (al.a) do artigo 351º do CPC), do pedido de intervenção principal - incidente que parece ter sido mesmo por ele suscitado no processo, mas de que não existe nos autos qualquer certidão comprovativa da respectiva decisão final - incidente este regulado nos artigos
351º a 359º do CPC e dependente da existência por parte do interveniente ou de um interesse em relação ao objecto da causa igual ao do autor ou do réu ou da possibilidade de coligação com o autor.
Enquanto que esta alternativa podia ter sido iniciada em qualquer momento até ao julgamento definitivo da causa (se a intervenção for ao abrigo da alínea a)), ou antes do despacho saneador ou até ser designado o dia para julgamento, se o processo não admitir o saneador (artigo 354º do CPC), a opção pelo preceito do artigo 680º, nº2 do CPC limita-se à possibilidade de recorrer da decisão, possibilidade esta dependente, como se refere adiante, de se tratar de 'pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão'.
Vejamos, então, se ocorrem ou não as invocadas inconstitucionalidades.
8. - Em primeiro lugar, importa analisar a questão da alegada violação dos artigos 65º, nº1 e 67º, nº1, da Constituição.
É o seguinte o texto de cada um dos preceitos.
Por um lado, o nº 1 do artigo 65º da Constituição estabelece que 'todos têm direito, para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar'.
Pelo seu lado, o artigo 67º, no seu nº 1, determina que
'a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros'.
Antes de entrar na análise da questão suscitada, importa relembrar que, em causa, no presente recurso, está apenas a norma do nº 2 do artigo 680º do CPC, na interpretação referenciada e que ficou definida pelo Acórdão nº 342/95, deste Tribunal, ou seja , no sentido de que 'o filho maior da locatária que habita o local locado não pode qualificar-se como uma das pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela sentença que decretou o despejo, para efeitos do disposto naquele preceito'.
Esta interpretação da norma violará as duas normas constitucionais acima referidas?
Adiante-se desde já que a resposta do tribunal é negativa.
Vejamos.
9. - O artigo 65º, nº 1, atrás transcrito, reconhece a todos os cidadãos o direito a uma morada decente, para si e para sua família, uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a sua intimidade e a privacidade da família considerada no seu conjunto.
No contexto da argumentação do recorrente, embora em termos não explicitados, o artigo 67º da Constituição pode ser visto em conexão estreita com o antecedente artigo 65º. Com efeito, é o próprio artigo 65º que faz referência a habitação destinada à família e que preserve a privacidade familiar. De alguma forma, neste contexto, repita-se, o direito à habitação é instrumental do direito à protecção da família mas, por isso mesmo, em relação a este constitui norma especial. Ou seja, no presente processo o recorrente traz à liça o direito à habitação, por si só, e o direito à habitação destinada à família. Só que esta circunstância nada altera quanto aos parâmetros constitucionais à luz dos quais deve ser resolvida a questão. A vertente do direito à protecção da família no que respeita à habitação encontra-se disciplinada toda ela, por força do artigo 65º, nº 1, da Constituição, em sede de direito à habitação. E porque do artigo 67º não se extraem aspectos normativos que valham autonomamente para a presente configuração processual, é no âmbito do artigo 65º da Constituição que a análise deverá mover-se prevalecentemente.
Para assegurar este direito à habitação, a Constituição comete ao Estado a realização de certas incumbências, designadamente, a de programar e executar uma política de habitação, incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais com vista a resolver os problemas da habitação, fomentando a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção, além de estimular a construção privada, subordinadamente ao interesse geral e ao acesso à habitação própria (artigo 65º, nº 2).
O direito à habitação entendido como o direito a ter uma morada condigna, é um direito fundamental de natureza social, do tipo de direito a prestações, isto é, pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respectivo conteúdo, a efectivar-se segundo a «reserva do possível», não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado.
Desta concepção decorre que o único sujeito passivo do direito à habitação condensado no artigo 65º é o Estado (v.g., as regiões autónomas e municípios), e não os proprietários ou senhorios, ao menos em princípio.
O reconhecimento do direito à habitação não pode implicar, ainda que da dimensão positiva referida (o direito a uma habitação condigna), se lhe atribua também uma dimensão negativa (dever de abstenção do Estado e de terceiros de praticar actos que prejudiquem a possível efectivação tal direito), a atribuição de casas a quem delas não dispõe contra vontade dos proprietários ou que os arrendatários disponham das mesmas sem qualquer limitação.
Com efeito, dada a necessária intervenção do legislador ordinário para concretizar o conteúdo do direito, o cidadão só pode exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos plasmados na lei (cfr. Acórdão nº
130/92, in 'Diário da República', IIª Série, de 24-7-1992), não sendo também constitucionalmente exigível que tal direito se realize pela imposição de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos constitucionalmente consagrados de terceiros, como é o caso do direito de propriedade (cfr. Acórdão nº 101/92, in 'Diário da República', IIª Série, de 18-8-1992).
Porém, sendo este o conteúdo densificado do direito à habitação constante do artigo 65º, nº1, da Constituição, não se vê como a norma em causa - que considera que o filho da locatária, maior, que reside no locado não pode qualificar-se como uma das pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela sentença que decretou o despejo, para o efeito de, não sendo parte na causa nem sequer parte acessória, poder recorrer de tal decisão - pode violar tal direito.
10. - Desde logo, a norma questionada é uma mera norma processual e respeita à possível legitimação do recorrente para poder interpor recurso no processo de despejo que as proprietárias do arrendado propuseram contra a locatária, com fundamento em falta de residência permanente desta
última. Trata-se, portanto, de uma acção entre as senhorias proprietárias do locado, enquanto autoras, e a locatária, na qualidade de ré, tendo o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa julgado a acção procedente e ordenado o despejo da ré, que interpôs recurso para a Relação de Lisboa.
Entretanto, o ora recorrente não só requereu a sua intervenção principal no processo, tendo apresentado um articulado superveniente e recorrido do despacho que não admitiu tal intervenção, como também pretendeu interpor recurso da decisão final ao abrigo do preceituado no artigo 680º, nº2, do CPC, questão esta que está agora em recurso na forma já referenciada.
Não está aqui em causa - nem podia estar - o facto de o tribunal recorrido ter avaliado a situação factual do recorrente à luz do conceito de «terceiro efectiva e directamente prejudicado» pela decisão de que pretende recorrer.
Com efeito, é jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional que as qualificações jurídicas feitas pelo tribunal recorrido estão fora do âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal, cuja competência se limita estritamente ao conhecimento das questões de constitucionalidade.
Em causa está apenas a directa violação do direito constitucional à habitação e à protecção da família, pela interpretação normativa mencionada.
Como se referiu atrás, o critério essencial para apurar a legitimidade para recorrer, no âmbito do nº 2 do artigo 680º do CPC, é o de saber se da decisão resulta para o recorrente 'um prejuízo que directa e efectivamente se repercuta na sua esfera jurídica' pelo que o prejuízo tem de ser real e jurídico, não podendo ser meramente factual.
Assim, a eventual 'legitimidade' do recorrente haverá de resultar do facto de ele ter um interesse jurídico em que a decisão do pleito fosse favorável à ré, derivando tal interesse da relação jurídica estabelecida entre os autores e esta mesma ré, de tal forma que se possa afirmar existir uma conexão entre o direito ou interesse jurídico do recorrente e aquela relação jurídica litigiosa, conexão assente num nexo de prejudicialidade ou de dependência, de tal forma que a procedência da acção pode afectar um direito ou posição jurídica do recorrente.
Ora, no caso dos autos, parece não poder afirmar-se a existência de um direito ou interesse jurídico do recorrente que, de forma directa, imediata e efectiva dependa ou seja prejudicado pela procedência da acção movida contra a locatária.
Na verdade, qualquer interesse do recorrente em relação ao contrato de arrendamento em causa só pode ser um interesse factual, não jurídico, indirecto e não imediato, meramente reflexo.
Com efeito, de acordo com o preceituado no artigo 64º, nº1, alínea i), parte final do RAU, no caso de o pedido de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio assentar na falta de residência permanente, esse fundamento não pode ser aplicado, isto é, não é eficaz, 'se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano'.
Esta causa da exclusão do direito à resolução do contrato de arrendamento não é, porém, de eficácia directa e imediata.
É que, no caso de se tratar da permanência no arrendado de parentes em linha recta do arrendatário - como seria o caso dos autos - para a excepção funcionar torna-se necessário que exista um elo ou vínculo de dependência económica entre o arrendatário e os familiares ou a casa (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Abril de 1981, in 'Col. Jur.', VI, Tomo 2, fls. 205).
De acordo com esta jurisprudência maioritária e corrente
(veja-se, neste sentido, Jorge Alberto Aragão Seia, 'Regime de Arrendamento Urbano', Almedina, 1995, fls. 309 e também, Januário Gomes, 'Arrendamento para Habitação', Almedina, 1994, fls. 236), 'havendo desintegração da família não existe causa impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento, mesmo que na casa fiquem familiares constituindo um novo agregado familiar, pois o agregado familiar contemplado nesta alínea [a alínea i) do nº 1 do artigo 64º do RAU] é o do arrendatário e não o constituído por familiares que dele se desagregam' (cfr. Aragão Seia, ibidem, fls. 39).
A decisão de mérito proferida nos autos, assenta exactamente no facto (provado) que,a arrendatária, por um lado, deixou de residir de forma permanente no arrendado há muitos anos e emprestou totalmente o dito arrendado ao filho, ora recorrente, inexistindo, por outro lado, entre ambos qualquer relacionamento conforme decorre das próprias palavras do recorrente (cfr. o articulado superveniente com reconvenção - artigo 1º).
No caso, o recorrente não sendo directamente interessado no contrato de arrendamento em causa, não poderia também arrogar-se qualquer interesse directo, pessoal e legítimo na manutenção de tal contrato, que permitisse afirmar a verificação de qualquer violação directa do direito à habitação pela interpretação do artigo 680º, nº 2, do Código de Processo Civil feita nas instâncias e na decisão recorrida.
De facto, a permanência do prédio em parentes em linha recta do arrendatário que deixou de ali residir com permanência, apenas poderá relevar se se puder verificar a existência de um elo ou vínculo de dependência económica entre a arrendatária e os parentes em causa - elemento que, conforme resulta da factualidade apurada nos autos -, não se verifica no caso em apreço.
Mas, sendo assim, nunca poderia o recorrente através do expediente do recurso ao abrigo do nº2 do artigo 680º do CPC, na interpretação feita nos autos ou na que o recorrente considera conforme à Constituição, alcançar a concretização do direito à habitação consagrado no nº 1 do artigo
65º, pelo que também não poderá uma tal interpretação violar o referido normativo.
11. - Se agora nos quisermos remeter à norma do artigo
67º, nº1 da Constituição, não custa ver como surge confirmado o que atrás ficou referido.
Se no artigo 36º da Constituição se garante o direito de constituir família, neste preceito o que a Constituição garante é um direito das famílias, enquanto tais, a gozarem da protecção da sociedade e do Estado com vista à realização pessoal dos respectivos membros. Trata-se aqui de um típico
«direito social», isto é, de um direito que se analisa numa imposição constitucional de actividade ou de prestações por parte do Estado (Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª Ed. revista, Coimbra, 1993, pg. 351).
Protecção à família inclui desde logo a protecção da vivência familiar, isto é, da vida conjunta do agregado familiar, indicando-se no nº 2 do preceito uma série de incumbências do Estado com vista à realização da finalidade do nº 1. Que nesta protecção caiba o direito à habitação, não se põe em dúvida.
Mas tratando-se como se trata, de facto, de um direito a prestações não vinculadas, a norma constitucional invocada no presente contexto só ganha um conteúdo positivo através da sua projecção no direito à habitação. E de forma nenhuma já por si, e muito menos se for vista isolada deste último direito à habitação, confere ao recorrente um direito imediato a uma prestação efectiva, designadamente a uma habitação, pois não é directamente aplicável nem exequível por si mesmo, necessitando da interposição do legislador.
Desta interposição, concretizada na norma do artigo 64º, nº 1, alínea i) e nº 2, alínea c) do RAU, não resulta -como se julga ter sido demonstrado para a norma do direito à habitação -, qualquer violação do direito constitucional de protecção da família, pela interpretação feita na decisão recorrida, do artigo 680º, nº2, do Código de Processo Civil, valendo, para aqui,
«mutatis mutandis», as razões ali invocadas.
III - DECISÃO:
12. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando, nesta parte, a decisão recorrida.
Lisboa, 26 de Junho de 1996 Vítor Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz Armindo Ribeiro Mendes Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa