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Proc. nº 805/93
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A instaurou, em 5 de Janeiro de 1984, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, execução para pagamento de quantia certa, com a forma ordinária, contra 'B'.
2. Depois de diversas diligências, a executada veio a ser citada, em 27 de Setembro de 1988. Em seguida, foi ordenada a penhora de um imóvel que, depois de uma rectificação, foi feita por termo lavrado em 12 de Abril de 1989.
3. Por requerimento entrado em 14 de Fevereiro de 1990, a executada arguiu a nulidade da sua citação, por ter sido feita em pessoa que já não era sócia da sociedade. A executada pediu que a citação fosse feita na pessoa do seu sócio gerente C, o subscritor da procuração junta, pessoa que anteriormente já havia sido indicada pela exequente como legal representante da executada (fls. 35), mas que tinha dito, no acto da citação, não possuir tal qualidade (fls. 41).
4. Por se considerar ter havido preterição de uma formalidade essencial que determinou a falta de citação, foi anulado todo o processado a partir de fls. 62, ordenando-se a citação da executada na pessoa de qualquer dos seus sócios-gerentes.
5. Citada então a executada (fls. 151 e 152) e penhorado de novo o imóvel, aquela pediu a aclaração do despacho que ordenou a penhora. Este requerimento foi indeferido por despacho de 25 de Junho de 1991.
Tinham, entretanto, sido apensados aos autos uns embargos de executado.
6. Não se conformando com o despacho que ordenou a penhora, a executada recorreu dele para o Tribunal da Relação de Lisboa.
A recorrente concluiu do seguinte modo as suas alegações:
'1 - Vem o recurso do douto despacho que ordenou a efectivação da penhora sem apreciar o título executivo, e sem determinar qual a quantia recebida, que seja líquida e exigível.
2 - Na verdade, no contrato de mútuo, com hipoteca, estipulou-se que as verbas mutuadas seriam entregues, contra a assinatura de cheques, com o avanço das obras por fazer.
3 - Ora, a executada não recebeu a verba total, e não subscreveu os cheques de toda a verba. Por isso, e logo não foi lançada na conta corrente como se previa toda a quantia.
4 - Acresce que o contrato foi celebrado por 3 anos. E não houve renovação.
Assim, não podem ser exigidos juros para além dos 3 anos.
5 - Ora a exequente exigiu mais do que provou e podia. O título junto não é bastante, nem líquido para assegurar a execução do montante, o que foi impugnado.
6 - Assim não podia a penhora ser ordenada sem se determinar qual o montante exacto do crédito a executar, o montante da quantia exequenda certo exigível, como ordena o art. 50º do CPC.
7 - Violou assim o douto despacho o art. 50º do CPC ao ordenar a penhora sem conhecer o montante líquido e exigível.
Questões a sanear. Não há título bastante de todo o montante que seja exigível.
Ora, a penhora assegura uma dívida não líquida, pelo que é nulo o registo.'
Foram, entretanto, apensados aos autos uns embargos de terceiro.
7. Por acórdão de 10 de Dezembro de 1992, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso e confirmou o despacho recorrido por entender que a recorrente não pretendia atacar a penhora em si mas a acção executiva enquanto tal, devendo, para tal efeito, ter interposto recurso do despacho de citação, o que não fez oportunamente.
Disse-se ainda, nesse acórdão, que 'o recurso do despacho que ordena a penhora visa apenas atacar a impenhorabilidade dos bens, objectiva ou subjectiva', e que, 'in casu, essa impenhorabilidade não foi posta em causa'.
8. Desse acórdão interpôs a executada recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Tal recurso foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
Resumindo o objecto do recurso, diz a recorrente a certo passo das suas alegações:
'A questão é de direito a saber, é a seguinte: no caso de embargos de executado pode seguir a penhora nos montantes que excedem a quantia não liquidada, ou se deve abranger a parte líquida apenas. E a de saber se a penhora devia ficar como definitiva havendo outro inscrito. E ainda a de saber se o art. 818º do C.P.C. é inconstitucional.'
A agravada pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, pedindo a condenação da agravante como litigante de má fé.
9. Por acórdão de 1 de Junho de 1993, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo.
No que respeita à questão da alegada inconstitucio-nalidade do artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil, fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
'Como é sabido, os tribunais de recurso só apreciam as questões decididas pelos tribunais inferiores que as partes hajam suscitado, salvo se forem de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 713º, nº 2, referido ao artigo 660º, nº 2, ambos do C.P.Civil, como é jurisprudência pacífica deste Tribunal (v., por todos, ac. do S.T.J. de 29/11/89, in BMJ 391, 520).
(...)
Por outro lado, a questão da inconstitucio-nalidade do artigo
818º do C.P.Civil, por limitar os direitos de defesa e acesso aos tribunais e permitir a penhora e venda quando o executado não deve ou deve menos e aceitar a penhora por valores ainda discutíveis, dando assim mais direitos e regalias aos economicamente mais fortes, não tem cabimento neste recurso.
Com efeito, o despacho recorrido nem de perto nem de longe se apoiou no artigo 818º citado nem tal despacho versou sobre a (...) suspensão da execução com o recebimento dos embargos, pelo que, sem a menor hesitação, se pode dizer que o despacho recorrido fala em 'alhos' e a alegação de recurso em
'bugalhos'.
Tanto basta para considerar completamente deslocada semelhante alegação e daí a desnecessidade de nos debruçarmos sobre a referida inconstitucionalidade do artigo 818º do C.P.Civil, já que, volta a repetir-se, o despacho recorrido não apreciou qualquer pedido da executada que versasse sobre a suspensão da execução, ou não suspensão da mesma, em consequência do recebimento dos embargos de executado.'
10. Depois de pedir a aclaração do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (que foi indeferida), a executada interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, arguindo a inconstitucionalidade do artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil, por violação dos artigos 13º, 18º e 20º da Lei Fundamental.
Diz-se, no requerimento de interposição do recurso, que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada desde a primeira instância.
11. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1) O art. 818º nº 1 do C.P.C. deve ser declarado inconstitucional, por ofender a norma constitucional referida no art. 2º da Constituição da República. Com efeito,
2) No presente caso, e nos restantes, quando são recebidos os embargos de executado (por a dívida não ser líquida nomeadamente, e corresponder a metade), ao exigir prestação de caução para além da penhora que é já uma garantia sob pena de a execução prosseguir com a venda dos bens, não é mais que negar ao executado a real Justiça, devido à incapacidade económica para caucionar o montante que não é líquido e que não deve.
3) Na verdade, neste caso o executado verá os bens vendidos em Hasta Pública, por 1/3 ou 1/4 do valor, perdendo qualquer garantia de fazer justiça, pois quando julgados os embargos que reconheçam que deve metade
(quantia que podia pagar ou caucionar), já não tem os bens para o fazer, e o resultado da Praça representa geralmente 1/3 ou 1/4 do valor da dívida real.
4) Beneficiado é o exequente, economicamente mais forte, que aproveita geralmente essa diferença de valor e o esforço do executado no valor acrescentado ao bem que perdeu.
5) É que se o executado pudesse caucionar o montante total pedido na execução, mesmo o não devido, também não seria executado.
6) Assim, o art. 2º e 18º da Constituição da República é letra morta.
7) Uma vez que o Dec.-Lei nº 387-B/87 não prevê a concessão de assistência para prestação de caução. Deve ser considerado inconstitucional o art. 818º do C.P.C., por estar em desacordo com o art. 20º da Constituição, sob pena de se beneficiar o economicamente mais forte, aliás sem necessidade de assim agir, pois a penhora sobre o bem deverá ser caução suficiente.
8) Não há razão para precipitar a Praça, antes de saber o montante da dívida, se na verdade o exequente vai ter que esperar pela decisão dos embargos, para receber. Parece que se quis apenas prejudicar o executado, já debilitado por juros de 33% (em 1985), e por todo o processo, em benefício da Instituição Bancária que, com base na Lei, montou o esquema de se servir dos depósitos dos clientes para solidificar a sua posição e se apropriar destes valores dos executados, usando uma lei não democrática a seu favor, para enriquecer à custa alheia. É que, apesar dos embargos de executado, a execução prosseguiu, com a penhora e a consequente venda.
9) Por outro lado, o registo definitivo da penhora quando incide outra transmissão no prédio, em vez de ser provisório, é ainda uma violação dos direitos adquiridos por terceiro, e assim o art. 68º da C.R.P. viola o art. 18º da Constituição da República, pelo que deve aquele art. 68º também ser declarado inconstitu-cional com tal interpretação. É que não são respeitados os direitos de terceiros, se o registo da penhora for lavrada definitiva, como aconteceu, apesar de incidir registo de venda a favor de terceiro, que não é o executado.'
12. A recorrida, por sua vez, concluiu as alegações defendendo a conformidade constitucional dos artigos 818º, nº 1, do Código de Processo Civil e 68º do Código de Registo Predial e a consequente improcedência do recurso.
13. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
A O objecto do recurso
14. Antes de mais, importa delimitar o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
No requerimento de interposição do recurso, a recorrente indicou, como norma cuja constitucionalidade pretendia que fosse apreciada pelo Tribunal, o artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil. Só posteriormente, nas respectivas alegações, pretendeu ampliar o objecto da impugnação ao artigo
68º do Código do Registo Predial.
Ora, como resulta do próprio nº 1 do artigo 75º-A da Lei nº
28/82 (aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro), é no requerimento de interposição que o recorrente tem de delimitar o objecto do recurso, não sendo admissível ampliá-lo nas alegações (neste sentido se pronunciou, entre outros, o Acórdão nº 10/95, D.R., II Série, de 22 de Março de
1995).
Assim, o Tribunal Constitucional não pode apreciar a conformidade constitucional do artigo 68º do Código do Registo Predial. O objecto do recurso limita-se ao artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil, norma que dispõe o seguinte:
'O recebimento dos embargos não suspende a execução, salvo se o embargante prestar caução.'
B A admissibilidade do recurso
15. Limitado, desta forma, o âmbito do recurso, interessa averiguar se estão reunidos os respectivos pressupostos.
Um dos pressupostos do recurso interposto ao abrigo dos artigos
280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82 é a efectiva aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada. É o que resulta, claramente, da norma contida no artigo 79º-C da Lei nº 28/82 (aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89), que fixa os poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
16. Ora, neste caso, tal como se sustenta no acórdão recorrido, não se aplicou o artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil. Tal matéria era estranha ao objecto do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça por se configurar como uma questão nova, não apreciada nas primeira e segunda instâncias. Diz-se mesmo, no mencionado acórdão, que 'o despacho recorrido nem de perto, nem de longe, se apoiou no artigo 818º citado, nem tal despacho versou sobre a (...) suspensão da execução com o recebimento dos embargos'.
Apesar de o Tribunal Constitucional não estar vinculado ao juízo formulado pelo tribunal recorrido sobre a efectiva aplicação da norma questionada, não pode deixar de se concordar com o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça. De facto, nem no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa nem no Tribunal da Relação de Lisboa foram discutidos os efeitos dos embargos de executado sobre a marcha da execução e, nas decisões impugnadas pelo recorrente, aqueles tribunais não apreciaram tal questão.
17. O problema da constitucionalidade do artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil surgiu pela primeira vez, ao contrário do que refere o recorrente, nas alegações do agravo interposto, em segunda instância, para o Supremo Tribunal de Justiça. Ora, seguindo os recursos ordinários, no direito processual civil português, o modelo de recurso de revisão ou de reponderação -
'visando modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova' (cf. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em processo civil, Lisboa, 1992, p. 138 e ss.)
-, a questão assim introduzida não podia integrar o objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Deste modo, a norma em causa não foi (nem mesmo implicitamente) aplicada na decisão recorrida. Assim sendo, falta um pressuposto do recurso de constitucionalidade e este Tribunal não pode conhecer o recurso.
III Decisão
18. Ante o exposto, decide-se não conhecer o presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs.
Lisboa, 17 de Abril de 1996
Maria Fernanda Palma
Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Diniz
José Manuel Cardoso da Costa