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Processo nº 343/95 ACÓRDÃO Nº 343/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- O Hospital Distrital de Tomar instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, execução sob a forma sumária contra Companhia de Seguros A, SA, para pagamento da quantia de 845.750$00, acrescida de juros moratórios à taxa legal de 15% a partir da citação, devida por tratamentos feitos nesse estabelecimento hospitalar em sinistrado de um acidente de viação em que foi interveniente veículo automóvel pertencente a terceiro que transferira, por contrato de seguro, para a ré a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação por ele causados.
Juntou, para o efeito, como título executivo, certidão de dívida emanada nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 194/92, de
8 de Setembro. Por despacho de 11 de Maio de 1995 foi indeferida liminarmente a execução, por se entender inexistir título executivo, uma vez que se não aplicaram, por serem inconstitucionais, as normas dos artigos 2º, nº
2, alínea a), e 4º do Decreto-Lei nº 194/92, citado.
2.- Do mencionado despacho recorreram para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e o exequente, ambos ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dada a recusa de aplicação daquelas normas por alegada violação do disposto no artigo
205º, nº 1, da Constituição da República (CR).
No entanto, só o primeiro desses recursos seria recebido e seguiria seus trâmites, dado o segundo não ter sido apresentado tempestivamente.
3.- Neste Tribunal, alegou oportunamente o Senhor Procurador-Geral Adjunto que formulou as seguintes conclusões:
'1º- A certificação da existência de um crédito próprio, emergente de tratamentos prestados em consequência de lesões decorrentes de acidentes de viação, pelos órgãos de gestão dos estabelecimentos hospitalares, contra os possíveis e eventuais obrigados a indemnizar, não representa o exercício de qualquer tarefa ou função jurisdicional, mas a mera criação de um título executivo administrativo.
2º- A criação de tal título administrativo em nada preclude o direito de defesa dos executados, que podem perfeitamente alegar, através da dedução de embargos do executado, todos os meios de defesa que lhes seria lícito deduzir em sede de acção declaratória'.
Para o magistrado recorrido, por conseguinte, deve o recurso ser julgado procedente, determinando-se a reforma da decisão em causa.
Foram corridos os vistos legais, cumprindo, agora, decidir.
II
1.1.- A Lei nº 48/90, de 24 de Agosto - Lei de Bases da Saúde - dispõe, no nº 1 da sua Base XXXIII, ser o Serviço Nacional de Saúde (SNS) financiado pelo Orçamento do Estado, estabelecendo o nº 2 da mesma Base poderem os serviços e estabelecimentos respectivos cobrar receitas, entre elas figurando - alínea b) - 'o pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras', acrescendo o nº 1 da Base XLIII que o Governo deve desenvolver a lei em decretos-lei.
À data, a cobrança das dívidas a essas instituições e serviços estava regulada no Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril que prescrevia a adopção, adaptadamente, do processo declaratório sumaríssimo, independentemente do seu valor, executando-se as respectivas sentenças, sendo caso disso, também por via de execução sumaríssima (cfr. artºs. 1º e 5º desse texto), regime que, por sua vez, sucedera ao dos artigos 41º a 44º do Decreto-Lei nº 46301, de 27 de Abril de 1965.
Certo é que o regime então vigente mostrava-se insatisfatório quanto à obtenção de resultados, nas palavras do próprio legislador, ao comentar, preambularmente o Decreto-Lei nº 194/92: a acção declarativa, como forma de obter a declaração dos direitos de crédito, revelava morosidade incompatível com a forma de obter a declaração de direitos 'quase sempre certos e indiscutíveis', acrescendo os inconvenientes da sujeição a prazos prescricionais curtos no âmbito de um regime de prescrição preventiva
(dois anos, no caso de a dívida ser exigida ao próprio assistido ou a familiares; três anos quando o hospital interpele 'o terceiro responsável pela lesão corporal ou por quem por sub-rogação haja assumido tal responsabilidade, v.g., entidades seguradoras).
Assim considerando, e tendo em conta o disposto no nº 1 da citada Base XLIII, o Governo fez publicar o Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
Este, no seu artigo 2º - sob a epígrafe
'Exequibilidade das certidões de dívida' - dispõe:
'1- As certidões de dívida a qualquer das entidades a que se refere o artigo anterior, por serviços ou tratamentos prestados, são títulos executivos.
2- São condições de exequibilidade do título:
a) A identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente responsáveis, se os houver, nos termos do presente diploma;
b) A menção precisa e individualizada dos serviços prestados;
c) A indicação da quantia exequenda, calculada nos termos do presente diploma;
d) A assinatura do presidente do órgão de administração da entidade credora ou de quem legitimamente o substitua;
e) A autenticação do título de dívida com a aposição do selo branco em uso na instituição credora'.
E, por sua vez, o artigo 4º, igualmente questionado no presente recurso, assim preceitua, sob a epígrafe 'Dívidas resultantes de tratamentos e sinistrados por acidentes de viação':
'1- Em caso de dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de viação, a execução corre solidariamente contra o transportador e a respectiva entidade seguradora, se seguro houver.
2- Se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a execução corre contra a entidade seguradora do veículo ou dos veículos que tenham intervido no sinistro, salvo se ocorrer qualquer dos casos de exclusão da responsabilidade a que se refere o artigo 505º do Código Civil'.
1.2.- No concreto caso, o objecto do recurso circunscreve-se à apreciação da adequação constitucional das normas daquele diploma que o magistrado recorrido recusou aplicar: a contida na alínea a) do nº 2 do artigo
2º e a do artigo 4º.
Com efeito, na decisão em apreço entendeu-se serem as mesmas materialmente inconstitucionais por violação do disposto no artigo
201º da CR, preceito que, cuidando da função jurisdicional, consigna no seu nº 1 que 'os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo', após o que o nº 2 nos diz que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados'.
2.- A decisão recorrida entendeu que a certidão de dívida a que se refere o artigo 2º do Decreto-Lei nº 194/92 não pode ser considerada como título executivo, padecendo a norma desse artigo, bem como a do artigo 4º do mesmo diploma, de inconstitucionalidade material, por violação do transcrito no nº 1 do artigo 205º da CR.
Lê-se, a certo passo, na referida decisão, que o legislador da lei de bases não definiu os termos nem o processo da cobrança das dívidas em causa, não podendo o Governo, posteriormente e nos termos em que o fez, conceder a essas certidões de dívida força executiva contra terceiros, responsáveis, legal ou contratualmente, pelos serviços de saúde.
Sendo um título executivo um documento constituido ou certificativo de uma obrigação ou de obrigações, que dispensa o seu titular do processo declaratório para certificar a existência do seu direito, a definição do ou dos responsáveis constitui tarefa jurisdicional pelo que está em causa - na tese da decisão - a intangibilidade da função jurisdicional.
Não está em causa, obviamente, a reserva do juiz, na medida em que se não dispense a intervenção deste para compor o conflito, definindo o direito de crédito e decidindo sobre ele; são vários os títulos executivos reconhecidos legalmente, não oriundos de decisão judicial. Assim, para que um determinado título tenha força executiva necessário é que a sua força, como tal, seja reconhecida pela lei e obedeça a determinados requisitos
(cfr. os artigos 46º e seguintes do Código de Processo Civil).
Haverá, deste modo, que decidir se a certificação da dívida pela entidade administrativa representa a prossecução de uma actividade destinada à definição do responsável pela dívida e a composição de um conflito entre credor e devedor.
Ora, sobre a função jurisdicional já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar por diversas vezes.
Tal é o caso do acórdão no 449/93, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1994, onde se ponderou que 'na função jurisdicional a resolução do conflito de interesses tem como fim específico a realização do direito e da justiça, destinando-se, consequentemente, a servir o interesse público da própria composição dos conflitos e o órgão que decide em atenção aos interesses, que lhe cumpre especificamente prosseguir, da pessoa em que se integra ou a que pertence, não
é interessado no conflito, estando portanto numa situação de indiferença como que de neutralidade, perante o mesmo, ao passo que na função administrativa, contrariamente, a resolução do conflito de interesses em causa tem em vista a prossecução de outro qualquer dos interesses públicos que ao Estado - utilizando este termo num sentido amplo - incumbe realizar, representando tal composição um simples meio ou instrumento para a satisfação desse outro interesse, pelo que o órgão que profere a decisão não se encontra numa situação de indiferença ou de neutralidade perante o conflito, já que nele tem um determinado interesse
(cfr., neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de Janeiro de 1983, Boletim do Ministério da Justiça, nº 323, pp. 24 e segs.)'.
O interesse público prosseguido pela função jurisdicional visa a resolução casuística de conflitos ('lançando mão de norma jurídicas ou de critérios legais pré-existentes': cf. acórdão nº 760/95, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de 1996).
Não oferecerá, assim, dúvida que nem o artigo 2º -
ao criar um título executivo - nem o artigo 4º - que dele decorre - invadem a área da função jurisdicional.
Como observa o Procurador-Geral Adjunto, nas suas alegações, a criação de um título executivo 'não representa qualquer forma de composição definitiva do litígio entre credor e devedor, mas apenas a atribuição por lei de determinado nível de fé pública às declarações de débito, provenientes dos órgãos legítimos de pessoas colectivas ou entidades públicas -
suficiente para dispensar o prévio reconhecimento ou declaração de crédito, relegando para os embargos de executado a (verdadeira) dirimição do conflito que porventura exista acerca da obrigação exequenda'.
Na verdade, e como se ponderou no acórdão nº 761/95 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de
1996, sobre a mesma questão, 'a emissão da certidão levada a cabo por uma entidade pertencente à Administração e que lhe vai conferir a característica de título executivo mais não é do que uma simples operação de certificação de um crédito detido por essa mesma entidade em razão da actividade que dispendeu em benefício de outros, não representando, por isso, qualquer forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor'. Assim, a norma
ínsita no citado artigo 2º não mais representa do que a atribuição de uma especial fé a uma declaração de crédito, e correspondente débito, não intentando dirimir qualquer conflito (ou seja, não ofendendo o artigo 205º, nº
1, da CR) nem precludindo os meios de defesa dos executados que os exercitarão por via de embargos, o meio idóneo para deduzirem as suas razões e se defenderem.
Recorrendo aos embargos, então sim, haverá lugar à resolução do conflito por um órgão independente e imparcial, de tido com vista à realização do direito e da justiça - como se frizou noutro recente acórdão deste Tribunal, o nº 760/95, já citado.
Nesta mesma linha de entendimento, ao pronunciar-se sobre a não inconstitucionalidade das normas dos artigos 4º e 6º, nº 2, do Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro, que instituía a figura da injunção e deu força executiva ao respectivo requerimento, o recente acórdão nº 375/95, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1995, igualmente considerou que os segmentos normativos em causa não invadiam a função jurisdicional, por não implicarem qualquer composição de conflitos de interesses entre requerente e requerido; também nesse caso, razões poderosas de celeridade motivaram o legislador a não jurisdicionalizar uma fase procedimental que, no entanto, não interfere, nem apouca, as garantias que devem estar presentes numa fase jurisdicionalizada, de composição do conflito e respectiva decisão.
3.- Sem prejuízo do exposto, mas irrelevante para a apreciação da questão de constitucionalidade, é o problema da 'bondade' do regime criado pelo Decreto-Lei nº 194/92.
Com efeito, e como observa ainda o Ministério Público, surpreende-se certa incongruência na lei ao permitir que a entidade credora edite o título executivo administrativo sem averiguação prévia e fundada da efectiva existência dos pressupostos do seu direito no confronto dos terceiros - maxime da seguradora - a quem vai exigir o pagamento da quantia exequenda. Consequentemente, proliferarão os embargos de executado, limitando-se a seguradora a alegar a inexistência dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do seu segurado, lançando o respectivo ónus para a entidade exequente, que terá sérias dificuldades em o cumprir, o que, desde logo, contradirá o critério de celeridade na cobrança que o legislador pretendeu imprimir ao criar tais títulos executivos.
Trata-se, no entanto, de um problema não situado na
área do controlo de constitucionalidade, não competindo ao Tribunal sindicar o
'mau direito' - as soluções legislativas menos razoáveis, coerentes ou eficazes - mas sim, e tão só, aferir da sua adequação constitucional. Relativamente à qual não se vislumbra dever exercer-se censura.
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão impugnada, a fim de a mesma ser reformada de acordo com o ora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Março de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa