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Proc. nº 101/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 – P... Lda., deduziu, na Repartição de Finanças de Vila Nova de Famalicão, oposição à execução que lhe foi movida para cobrança coerciva de dívida ao Instituto Regulador e Orientador de Mercados Agrícolas (IROMA), no montante de 354.581$00, resultante da 'taxa de comercialização' e da 'taxa da peste suína', liquidadas ao abrigo do Decreto-Lei nº 343/86, de 9 de Outubro e do Decreto-Lei nº 44158, de 17 de Janeiro de 1962, com as alterações decorrentes do Decreto-Lei nº 19/79, de 10 de Fevereiro e do Decreto-Lei nº 250/88, de 17 de Julho.
2 - Os autos foram remetidos, em obediência ao disposto no artigo 290º do Código de Processo Tributário, ao Tribunal Tributário de 1ª instância de Braga, no qual, por sentença de 17 de Novembro de 1995, depois de se recusar, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, se julgou procedente a oposição, determinando-se a extinção da execução instaurada contra a oponente.
Para tanto, desenvolveu-se a seguinte fundamentação:
'A liquidação em causa foi feita pelo IROMA ao abrigo do disposto no citado artigo 13º do DL 15/87, de 9.1, aprovado pelo Governo nos termos do artigo 201º, 1. a) da CRP, ou seja, no uso da competência legislativa própria. Todavia a cobrança de taxas e a afectação do seu produto a certa entidade são aspectos do sistema fiscal, nada valendo o argumento aduzido pelo IROMA de que com o DL 15/87, não se operou senão uma sucessão das entidades com direito à cobrança daquelas taxas, já que não é constitucionalmente indiferente saber quais as atribuições e competências da entidade a quem são afectos certos recursos parafiscais, ou seja, também a configuração do sujeito activo deste tipo de relações integra o sistema fiscal, matéria da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo - citado artigo 168º, 1, i)'.
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3 - Desta decisão interpôs o Ministério Público, sob invocação do disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a) e 3 da Constituição e
70º, nº 1, alínea a) e 72º. nºs 1, alínea a) e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
Nas alegações depois oferecidas, o senhor Procurador--Geral Adjunto formulou o seguinte quadro de conclusões:
1º - A norma constante do artigo 13º do Decreto--Lei nº 15/87, de
9 de Janeiro, ao prescrever que as taxas de comercialização e outras imposições parafiscais a favor de organismos de coordenação económica extintos passam a ser cobradas e a constituir receita do IROMA - e que aparece inserida no capítulo referente às 'disposições finais e transitórias' - surge como meramente consequencial de uma alteração da orgânica administrativa, operada por aquele diploma legal e traduzida na extinção de determinados institutos públicos e na criação de outro, que sucede nas funções, competências e relações jurídicas de que aqueles eram titulares.
2º - Tal norma situa-se, consequentemente, fora do âmbito da reserva de lei referente à 'criação de impostos e ao sistema fiscal', decorrente do preceituado nos artigos 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa, nada obstando a que fosse editada pelo Governo, no exercício da sua competência legislativa própria.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, no que se refere à inconstitucionalidade orgânica da norma nela desaplicada.
Os autos seguiram depois os vistos legais, cabendo agora apreciar e decidir.
E decidir, concretamente, se a norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, desaplicada na decisão recorrida, dispõe de legitimidade constitucional.
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II - A fundamentação
1 - Como se alcança da sua exposição preambular, o Decreto-Lei nº 15/87, veio dar 'execução prática ao imperativo constante da Lei nº 9/86, de 30 de Abril (Lei do Orçamento do Estado de 1987), consubstanciado nas exigências de extinção dos referidos organismos [de coordenação económica], que são substituídos, para prossecução das atribuições e competências que vinham exercendo, dentro do novo esquema de actividade determinado pelas implicações da adesão às Comunidades Europeias, pelo Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas (IROMA), que ora se cria'.
E, depois de no artigo 12º se proceder à extinção da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, da Junta Nacional das Frutas e do Instituto do Azeite e Produtos Oleoginosos, no artigo 13º daquele diploma estatuiu-se assim:
Artigo 13º
As taxas de comercialização e outras imposições fiscais a favor dos organismos extintos e que não contrariem o disposto no Acto de Adesão de Portugal à CEE passarão a ser cobrados e a constituir receita do IROMA.
Deste modo, e no que ao caso em apreço importa reter, tanto a
'taxa de comercialização' instituida pelos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº
343/86, de 9 de Outubro, como a chamada 'taxa da peste suína' criada pelo Decreto-Lei nº 44158, de 17 de Janeiro de 1962 e actualizada pelo Decreto-Lei nº
19/79, de 10 de Fevereiro, revertendo uma e outra a favor da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, passaram a ser cobradas e a constituir receita do IROMA, extinta que foi a entidade a que anteriormente tais taxas se destinavam.
A Junta Nacional dos Produtos Pecuários (JNPP) fora criada pelo Decreto-Lei nº 29749, de 13 de Julho de 1939, competindo-lhe, no essencial, como se extrai do artigo 2º do respectivo diploma, 'coordenar e disciplinar a acção dos organismos da produção e comércio de lãs, carnes, leites e produtos derivados ou das actividades ligadas à produção e comércio das mesmas' e outrossim, exercer acção reguladora de preços 'de modo a assegurar a justa valorização dos produtos e a evitar na medida do possível oscilações prejudiciais à economia geral' e 'estudar o melhor aproveitamento dos produtos e subprodutos ou cooperar nesse estudo com serviços oficiais, estabelecer as condições a que se deve obedecer à sua exportação e auxiliar esta quando necessário'.
Dispunha este organismo de coordenação económica de receitas próprias, nomeadamente, logo na data da sua instituição, as resultantes do produto das taxas cobradas sobre as lãs, carnes e lacticínios (artigo 20º do Decreto-Lei nº 29749), outras lhe vindo a ser atribuídas por diplomas posteriormente editados (Decreto-Lei nº 44158, de 17 de Janeiro de 1962 e Decreto-Lei nº 343/86, de 9 de Outubro).
Por seu turno, o IROMA, que passou a cobrar, como receitas próprias, 'as taxas de comercialização e outras imposições parafiscais' previstas no ordenamento a favor dos organismos de coordenação económica - no caso em apreço da JNPP - tinha como atribuições 'a questão das actividades desenvolvidas nos equipamentos e infra-estruturas englobados nas áreas dos organismos de coordenação económica [Junta Nacional dos Produtos Pecuários, Junta Nacional das Frutas e Instituto do Azeite e Produtos Oleoginosos] designadamente as que se referem à questão dos matadouros pertencentes à ex-JNPP'. (artigo 3º do Decreto-Lei nº 15/87, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 55/90).
Nos termos do seu diploma instituidor, o IROMA dispunha de autonomia administrativa e financeira e beneficiava de receitas próprias, entre as quais se incluiam as provenientes da cobrança de taxas devidas aos extintos organismos de coordenação económica.
Cabe assinalar que o Decreto-Lei nº 55/90, de 13 de Fevereiro, veio dar nova redacção a diversos preceitos do Decreto-Lei nº 15/87, acabando o IROMA por ser extinto pelo Decreto-Lei nº 197/94, de 21 de Junho, na medida em que se considerou, depois de cumprido o processo de reorganização das estruturas sob a sua gestão, não justificada 'a manutenção de um organismo com as suas características'.
Ora, segundo a decisão recorrida, a norma do artigo 13º, integrada em diploma aprovado pelo Governo a descoberto de credencial parlamentar, sofre de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo
168º, nº 1, alínea i), porquanto 'não é constitucionalmente indiferente saber quais as atribuições e competências da entidade a quem são afectos certos recursos parafiscais, ou seja, também a configuração do sujeito activo deste tipo de relações integra o sistema fiscal'.
Será efectivamente assim?
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2 - O princípio da legalidade tributária acha-se garantido no artigo 106º, nº 2, da Constituição, segundo o qual 'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes'.
Este princípio, como é consabido, traduz-se desde logo na regra da reserva de lei para a criação e determinação dos elementos essenciais dos impostos, não podendo deixar de constar de diploma legislativo e implicando a tipicidade legal, isto é, o imposto há-de ser desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para qualquer discricionariedade administrativa quanto aqueles elementos essenciais.
Por outro lado, a lei a que se refere a norma do artigo 106º
é em princípio uma lei da Assembleia da República, só podendo tratar-se de decreto-lei quando existir autorização legislativa do Governo.
Com refere Jorge Miranda, 'A competência legislativa no domínio dos impostos e as chamadas receitas parafiscais', Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXIX, 1988, pp. 9 e ss., a interpretação conjugada dos artigos 106º e 168º, nº 1, alínea i), não tem levantado dificuldades na vigência da actual Constituição, ao contrário do que sucedera com os artigos 70º e 93º da Constituição anterior, podendo afirmar-se que 'a doutrina e a jurisprudência são unânimes em reiterar o enlace entre ambas as regras, em reconhecer que só adquirem pleno sentido útil quando incindíveis
[que é o artigo 106º, nº 2 que preenche o conteúdo do artigo 168º, nº 1, alínea i), e que é este que confere expressão política ou orgânico-funcional àquele]'.
Esta reserva de lei da Assembleia da República está de acordo com o sentido histórico da reserva parlamentar da lei fiscal, que arranca originariamente da ideia da autotributação, isto é, de a imposição fiscal só poder ser determinada pelos próprios cidadãos através dos seus representantes no parlamento.
Mas, como bem resulta do texto do artigo 13º do Decreto--Lei nº 15/87 e dos seus antecedentes normativos, através daquele preceito não foi criado qualquer tributo ou disposto inovatoriamente sobre a incidência, a taxa ou o destino do produto das taxas cobradas à sombra da sua estatuição.
Com efeito, tanto a 'taxa de comercialização' como a 'taxa da peste suína' já dispunham de existência legal, subsistindo na sua estrutura, dimensão e conteúdo, limitando-se aquela norma, na sequência de uma alteração organizatória da administração, a cometer o encargo da respectiva cobrança a um outro organismo da mesma natureza, ao qual foram cometidas, no essencial, idênticas atribuições em ordem à concretização de objectivos similares.
Neste contexto, tem-se por 'constitucionalmente indiferente' que aquelas taxas - independentemente da sua verdadeira natureza fiscal - enquanto receitas de um organismo público integrado na área da regulação dos mercados agrícolas, sejam cobradas pela JNPP ou pelo IROMA já que esta específica dimensão não releva no plano do 'sistema fiscal' situando-se por isso, para além do âmbito da competência legislativa da Assembleia da República.
E assim sendo, talqualmente aliás, já foi decidido por este Tribunal (cfr. Acórdãos nº 419/96, Diário da República, II Série, de 17 de Julho de 1996, e 633/96 e 800/96, ainda inéditos), há-de concluir-se que a norma desaplicada na decisão recorrida não sofre de inconstitucionalidade.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso revogando-se, em consequência, a sentença impugnada que deve ser reformada em consonância com a presente decisão.
Lisboa, 22 de Outubro de 1996
Antero Alves Monteiro Diniz
Maria da Assunção Esteves
Maria Fernanda Palma
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa