Imprimir acórdão
Proc. nº 244/95
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I
RELATÓRIO
1. Na sequência de acusação dirigida pelo assistente A. contra B., C., D., E. e F., acusação por crimes de difamação e injúria com abuso de liberdade de imprensa e associação criminosa, decorrentes de textos publicados no jornal G., foi, culminando fase de instrução, proferida no 3º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, decisão instrutória contendo a não pronúncia dos arguidos C., D., E. e F. e a pronúncia da arguida B. pela autoria de um crime previsto e punido nos artigos 164º, 166º e 167º nº 2 do Código Penal e 25º e 26º nº 2 alínea a) do DL nº 85 - C/75, de 26 de Fevereiro.
Desta decisão recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, o assistente e esta arguida, impugnando aquele, a não pronúncia dos quatro arguidos, e esta, a parte da decisão contendo a pronúncia.
No Tribunal da Relação, dando-se cumprimento ao disposto no artigo
416º do Código de Processo Penal (CPP), foram, desde logo, os autos continuados com vista ao Ministério Público, que exarou Parecer no sentido da procedência do recurso da arguida e da improcedência do recurso do assistente.
Apreciando os recursos decidiu o Tribunal da Relação :
- negar provimento ao recurso do assistente, mantendo o despacho recorrido quanto à não pronúncia dos arguidos C., D., E. e F.;
- conceder provimento ao recurso da arguida B., revogando o mesmo despacho na parte em que a pronunciou.
A este Acórdão reagiu o assistente, arguindo a sua nulidade e, posteriormente, após ser-lhe dado conhecimento do teor do parecer do Ministério Público junto da Relação, estendendo tal arguição a todo o processado posterior
à vista ao Ministério Público de que resultou esse Parecer.
A nulidade do Acórdão decorreria, no que ao presente recurso de constitucionalidade respeita, de uma alegada interpretação inconstitucional do artigo 428º nº 2 do CPP. E, por sua vez, a nulidade do processado na Relação anterior ao Acórdão, decorreria da não notificação ao assistente do Parecer em causa, situação esta consubstanciadora, no entender do assistente, de desconformidade constitucional do artigo 416º do CPP.
O Tribunal da Relação desatendeu estas nulidades, reportando-se o presente recurso a tal decisão, por alegada aplicação num sentido inconstitucional do artigo 428º nº 2 do CPP e inconstitucionalidade do artigo
416º do mesmo diploma.
1.1. Neste Tribunal alegou o recorrente A. e contra-alegaram a recorrida e o Ministério Público, este suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso quanto ao nº 2 do artigo 428º do CPP.
Colhida a resposta do recorrente a tal questão prévia e corridos os pertinentes vistos cumpre decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
2. Como resulta do relatório, apresenta o recurso dois referenciais normativos : o artigo 428º nº 2 do CPP (segundo diz o recorrente em determinada interpretação, que vê no Acórdão recorrido) e o artigo 416º também do CPP.
Haverá, assim, que apreciar separadamente ambas as disposições não esquecendo, aliás, que relativamente a uma delas foi defendido o seu não conhecimento.
O artigo 428º nº 2 do CPP :
2.1. Anteriormente ao Acórdão recorrido (no requerimento de arguição de nulidade do primeiro Acórdão), defendeu o recorrente ter sido o artigo 428º nº 2 do CPP objecto (nessa decisão inicial da Relação) de uma interpretação inconstitucional, 'ao coarctar o duplo grau de jurisdição em matéria de facto' (v.fls.946).
Se bem a percebemos, assenta esta vertente da argumentação do recorrente na ligação da disposição em causa ao artigo 374º nº 2 do mesmo Código e concretamente à circunstância do Acórdão da Relação, que decidiu o recurso da decisão instrutória, não conter a 'enumeração dos factos provados e não provados', adaptada, no entendimento do recorrente, a 'factos indiciados e não indiciados' estando em causa o recurso de uma decisão de pronúncia ou não pronúncia (v.fls 1069).
Não é particularmente clara a ligação interpretativa que o recorrente faz entre as duas disposições, tal como o não é a caracterização da específica dimensão interpretativa do artigo 428º nº 2 que alegadamente teria sido empregue na decisão impugnada. Não obstante, partiremos do princípio de que essa ligação existe e que em função dela o Acórdão se dispensou de aplicar o artigo 374 nº 2, não enumerando os 'factos indiciados e não indiciados', reiterando tal entendimento na decisão (o Acórdão ora recorrido) desatendendo as nulidades.
Seguindo esta linha expositiva, assume particular importância a resposta do recorrente à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, constante de fls. 1066 e ss. Aí, com efeito, aceita o recorrente que mesmo não tendo sido dado cumprimento, nos termos por si propugnados, ao artigo 374º nº 2 do CPP ( e a posição do recorrente é a de que isso significou uma interpretação inconstitucional do artigo 428º nº 2), o Acórdão objecto da arguição de nulidade se pronunciou não obstante sobre a matéria de facto. Efectivamente, afirma-o o próprio recorrente, defender o contrário 'padeceria de uma insustentável cegueira que nem a paixão provocada por qualquer litígio minimamente justificaria' acrescentando não ter pretendido 'qualquer taxativa declaração de que a Relação de Lisboa tinha ignorado a vertente factual, o que bem vistas as coisas era uma pretensão impossível', sublinhando ter visado 'tão só insurgir-se, dada a surpreendida inconstitucionalidade, contra a omissão do plasmado no referenciado artigo 374º nº 2' (citações extraídas de fls.1067).
Este aspecto, aliás, é directamente abordado na seguinte passagem, constante de fls.1017 vº., da decisão recorrida :
'..., tendo-se conhecido no recurso tanto da matéria de direito como da de facto
- e assim é sempre nos recursos sobre decisões instrutórias (artigo 428º do CCP)
- o Acórdão é abundante e exaustivo na descrição da matéria de facto provada e não provada, com indicação das razões que fundamentaram a decisão.
É verdade que não existe no Acórdão uma enumeração dos factos provados e não provados, no sentido de estarem numericamente ordenados. Mas os factos estão lá todos, embora numa outra ordem : a que foi considerada mais conveniente para se poder fazer uma análise crítica do despacho recorrido, como é função de um Tribunal de recurso'. (sublinhado do texto).
Sendo isto certo - e sem dúvida é - como poderia a não observância do artigo 374º nº 2 ter eliminado, como diz o recorrente, o duplo grau em matéria de facto, existindo consenso entre os intervenientes no processo, incluindo o recorrente, no sentido de o Acórdão da Relação ter procedido, mesmo sem essa observância, à reapreciação da matéria de facto em causa na decisão instrutória ?
A questão de inconstitucionalidade pretendida configurar reduzir-se-ia, assim, a uma pura questão académica, a um verdadeiro moot case de todo insusceptível de apresentar relevância substancial no processo. O de saber se o Acórdão, não obstante se ter pronunciado sobre os factos «indiciados» ou
«não indiciados» (e, sublinha-se, tendo-o feito de forma exaustiva), deveria conter, por imperativo constitucional decorrente da garantia de um duplo grau de jurisdição, uma enumeração formalmente conforme ao artigo 374º nº 2, quando esse mesmo desiderato já tinha sido plenamente alcançado pela forma empregue.
Seria difícil configurar uma 'questão de constitucionalidade' (e estamos apenas a admitir como hipótese que a suscitada pelo recorrente poderia como tal ser entendida) tão despida de relevância prática como esta.
Cumpre ter presente, a este propósito, que a intervenção deste Tribunal nesta espécie de fiscalização pressupõe a relevância da questão de constitucionalidade na decisão da causa. Aqui, a dar-se acolhimento à pretensão do recorrente, dir-se-ia ao Tribunal da Relação, tão só, que 'arrumasse' de forma diversa a indicação dos factos na decisão. É pouco, manifestamente, para que de relevância da questão de constitucionalidade se possa falar, entendida, como não pode deixar de o ser face ao artigo 207º da Constituição, tal relevância, como 'prejudicialidade rigorosamente necessária' (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra 1993, p.1049) para a decisão da causa.
Carecendo dessa relevância a questão de inconstitucionalidade reportada ao artigo 428º nº 2 (e estamos apenas a pressupor que ela, abstractamente, se pudesse configurar como questão de inconstitucionalidade) tanto basta para que este Tribunal se abstenha de a conhecer.
O artigo 416º do CPP
2.2. Subsiste, porém, a invocação de inconstitucionalidade do artigo 416º do CPP, claramente expressa no requerimento de arguição de nulidade do processado posterior à vista do Ministério Público, sobre a qual recaíu o Acórdão ora recorrido (que, aliás, se pronunciou quanto à conformidade constitucional da norma).
Trata-se, esse artigo 416º, de norma homóloga da constante do artigo
664º do CPP de 1929, apreciada pelo Plenário deste Tribunal (nos termos do artigo 79º-A da LTC) no Acórdão nº 150/93, publicado no Diário da República - II Série de 29/3/93 ( e também no BMJ 424,81).
Prevêem as duas disposições que os recursos sejam tramitados no tribunal ad quem com uma vista inicial ao Ministério Público, sendo que, em função disso, são normalmente julgados com um Parecer emitido por esta entidade sem que do seu teor seja dado conhecimento aos outros intervenientes processuais, designadamente ao acusado.
O entendimento do Tribunal Constitucional [entendimento fixado nesse Acórdão nº 150/93 e posteriormente estendido através dos Acórdãos nºs 651/93, da
2ª Secção e 396/94, da 1ª Secção (Diário da República - II Série, respectivamente de 31/3/94 e 25/10/94) ao artigo 416º do CPP, aqui em causa)], é no sentido de que a inconstitucionalidade da disposição, por violação dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, só ocorrerá quando aos réus (aos arguidos) não fôr dada possibilidade de responder ao Parecer do Ministério Público, mas só quando este 'se pronunciar em termos de agravar a posição dos réus'.
A perspectivação constitucional desta posição é, inequivocamente, a da plenitude de garantias de defesa emergente do artigo 32º da Lei Fundamental, mesmo na vertente de garantia do contraditório no processo criminal. Como se refere numa das declarações de voto formuladas nesse Acórdão nº 150/93 (que diverge da maioria na consideração de que ao réu há que reconhecer também o direito de resposta ao Parecer quando este se pronuncie sobre o objecto do processo ou sobre a possibilidade do seu conhecimento), 'a ilimitação das garantias de defesa («todas») assegura o direito de resposta sempre que o Ministério Público intervém pela acusação pois em toda essa extensão é racionalmente justificado o contraditório.'
Não se pretende reeditar, citando um voto de vencido, uma discussão que este Tribunal já teve. Visa-se, tão só, acentuar que mesmo na visão mais exigente da conformidade constitucional das disposições referidas, como a que esse voto expressa, a questão tem que ver, tomando por referencial o artigo 32º da Constituição (que é a norma violada no entender do recorrente), as garantias de defesa pressupondo, assim, a posição de arguido no processo [também nesse pressuposto assenta a sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de
30/10/94 (caso Borgers/Bélgica), que o recorrente cita (v. Sub Judice- Novos Estilos nº 5, Maio/
1994, pp 104 e ss) e onde se refere não se justificar a restrição «aos direitos da defesa» decorrente da disposição, equivalente ao nosso artigo 416º, no Code Judiciaire belga, aí questionada].
Ora, o recorrente assume neste processo a posição de assistente: acusa, não exerce a defesa face a um processo criminal. E, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira em anotação ao artigo 32º, 'Dos sujeitos do processo penal a Constituição é manifestamente omissa sobre a figura da vítima dos crimes', significando isto a inexistência de um 'reconhecimento constitucional de um direito ou interesse legítimo da vítima a ver punido o criminoso, nem o direito a intervir no processo'. Daí que - acrescentam os mesmos autores - 'ela
(a vítima) mantém-se com estatuto simplesmente legal' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, p.208).
Tendo em vista a posição processual do recorrente, a questão que poderia ter sentido, numa perspectiva constitucional, seria, como sublinha o Exmº Procurador-Geral--Adjunto junto deste Tribunal, a da compatibilidade com os princípios da igualdade das armas e do contraditório implícitos no direito de acesso aos tribunais, decorrente do artigo 20º da Constituição, da não previsão, quanto ao assistente, de um direito de resposta ao parecer formulado nos termos do artigo 416º do CPP.
Reconhece-se que, a par do fundamental conflito de interesses entre o Estado e o arguido, a que se aplica o princípio do contraditório consagrado no nº 5 do artigo 32º da Constituição, pode haver um conflito, pelo menos subjectivo, de interesses processuais, entre o Ministério Público e o assistente. A lei processual penal dá-lhe expressão ao permitir ao assistente deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente da acusação particular, que é o dos autos, ainda que aquele não a deduza, a bem assim interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministéro Público o não tenha feito (artigo 69º nº 2 als b) e c) do C.P.P.). Nesta medida, os assistentes não subordinam a sua intervenção no processo à actividade do Ministério Público. Poderia, assim, entender-se que, na lógica desta não subordinação, deveria o assistente, a quem a lei permite agir sózinho e contra a posição do Ministério Público, poder responder aos argumentos em contrário. Assim, no caso presente o assistente recorreu sózinho, o Ministério Público pronunciou-se em apoio da alegação da arguida e contra a do assistente, e este não teve oportunidade de responder. Mas a verdade é que foi o assistente que iniciou este secundário 'contraditório', a que responderam a arguida e o Ministério Público, e assim como não pode responder aos contra-argumentos da arguida, também não o pode quanto aos do Ministério Público.
Reconhece-se ainda que, quando o parecer do Ministério Público na vista do artigo 416º é desfavorável ao arguido, este tem o direito de responder
(Acórdão deste Tribunal nº 150/93), pelo que se verifica uma desigualdade de armas entre o arguido e o assistente. Mas essa desigualdade não é desconforme à Constituição, que reconhece um princípio de favorecimento do arguido (artigo
32º).
Na posição do recorrente o exercício constitucionalmente garantido do contraditório implicava a possibilidade real de ser ouvido no processo. E esta não deixou de lhe ser garantida. Não implica, todavia, tal garantia, quanto ao assistente, contrariamente ao que sucede com o arguido, o direito a ser ouvido depois do Ministério Público.
Não ocorreu, assim, através da não notificação do parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação, a aplicação num sentido inconstitucional do artigo 416º do CPP.
III DECISÃO
3. Pelo exposto decide-se :
a) Não tomar conhecimento do recurso quanto ao artigo
428º nº 2 do Código do Processo Penal;
b) Negar provimento ao recurso, no que concerne ao artigo 416º do CPP, confirmando o Acórdão recorrido quanto ao julgamento de constitucionalidade. Lisboa, 11 de Julho de 1996 José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa