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Processo nº 439/94
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Maria Isabel Azevedo da Conceição Oliveira da Silva e Fernando Manuel Oliveira da Silva, com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Junho de 1994, 'ao abrigo da al. b) do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15/11, alterada pelas Leis nºs 143/85, de 26/11, e nº 85/89, de 07/09, tendo por âmbito o apuramento das inconstitucionalidades do entendimento nele dado ao artº 437º do Código Penal e ao artº 5º al. e) do DL
371/83 e aos artºs ou princípios jurídicos do DL 287/93, de 20/08, citados no acórdão, em relação à compreensão do conceito de 'funcionário' para efeitos penais, que os recorrentes reputam violadores dos artºs 13º, nº 1, e 168º, nº
1/c, da Constituição da República Portuguesa, como por estes foi invocado na motivação do recurso in
terposto na 1ª instância e nas alegações escritas apresentadas neste Supremo Tribunal'.
2. Nas suas alegações formularam os recorrentes as seguintes conclusões:
'1. O âmbito do presente recurso reside no apuramento da inconstitucionalidade do entendimento dado, nos acórdãos recorridos, à norma do artigo 437º do Código Penal e aos artigos 4º e 5º, alínea e), do Decreto-Lei nº 371/83 e aos artigos ou princípios jurídicos do Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, citados nos acórdãos, em relação à compreensão ou extensão do conceito de
'funcionário' para efeitos penais.
2. A condenação dos arguidos-recorrentes assenta no facto de um deles ser trabalhador bancário ao serviço da Caixa Geral de Depósitos, em funções estritamente bancárias, razão pela qual foi considerado 'funcionário' para efeitos penais, qualidade que se transmitiu ao co-arguido, e, consequentemente, foram punidos pelo crime de peculato.
3. Entendeu de facto o Supremo Tribunal de Justiça que 'a apurada conduta dos arguidos-recorrentes preenche a previsão do artigo 424º, nº 1, do Código Penal, com referência aos artigos 28º e
437º também do Código Penal e aos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº 371/83, de 6 de Outu
bro, constituindo-se, pois, (...) co-autores do aludido crime de peculato p.p. por aquele primeiro preceito'.
4. O Supremo Tribunal de Justiça fundamenta aquele seu entendimento no facto de ser 'hoje a Caixa Geral de Depósitos uma sociedade anónima mas de capitais exclusivamente públicos, em que o único detentor do capital é o Estado', e 'tanto basta (...) para que, com respeito a ela, Caixa, continue a ter plena validade o disposto nos artigos 4º e
5º do Decreto-Lei nº 371/83, de 6 de Outubro'.
Porém:
5. É incontroverso e também está reconhecido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sob censura que a Caixa Geral de Depósitos foi transformada em sociedade anónima, denominando-se agora simplesmente 'Caixa Geral de Depósitos, S.A' (vd. Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto), sendo por outro lado indiscutível que a 'Caixa', hoje, nas operações estritamente bancárias em nada difere dos outros bancos.
6. Por outro lado, no actual ordenamento jurídico português a actividade bancária em geral não assume natureza de serviço público, ou melhor, não se integra no núcleo de actividades comummente entendidas como próprias ou específicas do Estado e, por isso, não são tarefas próprias ou específicas da Administração Públi
ca.
7. Assim sendo, a Caixa Geral de Depósitos, transformada formalmente em sociedade anónima e enquanto instituição bancária, desempenha serviços em tudo idênticos e sujeitos às mesmas normas e princípios impostos a qualquer outro banco.
8. Os trabalhadores ao serviço da
'Caixa' têm, agora, um estatuto sócio-profissional igual a qualquer outro trabalhador bancário.
9. Parece, pois, não se descortinarem razões suficientes para ser considerado crime de peculato um facto praticado a um balcão da Sociedade Anónima Caixa Geral de Depósitos e qualificar de simples furto o facto absolutamente idêntico praticado noutro balcão ao lado, mas pertencente a outro banco.
10. Não havendo razões substanciais que justifiquem tão grave alteração da natureza dos crimes, tal entendimento, a ser adoptado, violaria o princípio da igualdade consagrado no citado artigo 13º, nº 1, da Constituição da República.
11. Os actos imputados aos recorrentes, se praticados noutra qualquer instituição bancária portuguesa, resultariam, quando muito, num simples furto completamente apagado pela Lei da Amnistia de 1991. Puni-los agora tão severa
mente como crime de peculato só pelo facto de ser o Estado o titular do capital da sociedade anónima em causa, viola aquele preceito constitucional e o senso comum da ideia de Justiça.
12. Acresce que, no caso em apreço, revelou-se pertinente o recurso às normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº 371/83, de 6 de Outubro e designadamente ao nº 2 do referido artigo 4º que alarga para efeitos penais o conceito de funcionário, além do mais, às empresas de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, e à alínea e) do artigo 5º que faz incorrer tais funcionários no crime de peculato.
13. Ora sucede que aquele Decreto-Lei foi feito ao abrigo da autorização legislativa dada pela Assembleia da República através da Lei nº 12/ /83, de 24 de Agosto, uma vez que o Governo não dispõe de competência própria para a matéria em questão (artigo 168º, nº 1, alínea c) da Constituição da República), mas constata-se que, da referida lei e particularmente dos artigos 1º, alínea c), e 4º, alínea b), não resulta que o sentido da autorização abrangesse as empresas públicas e outras empresas de capitais públicos que forma a equiparar os seus trabalhadores a 'funcionários' para efeitos penais.
14. De facto, o Governo, no que respeita à questão em apreço, foi autorizado, pela Lei nº
13/83, a legislar 'em matéria de delitos de corrupção, tráfico de influências e outras fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração Pública', sendo que o sentido da autorização quanto a esta matéria (alínea b) do artigo
4º) foi o de 'combater em geral a fraude e moralizar os comportamentos, efectivando a responsabilidade penal e civil dos agentes administrativos em adequação ao grau da sua responsabilidade funcional'.
15. Parece, pois, evidente que a autorização se restringia ao âmbito da 'Administração Pública' e 'dos agentes administrativos', não estando assim o Governo autorizado a introduzir novas normas penais ou agravar as existentes em relação a todos os trabalhadores de todas as empresas públicas ou sociedades anónimas com capitais públicos.
16. Sabendo-se que o Estado detinha e detém uma enorme posição em quase todos os sectores da economia, a Assembleia da República, se pretendesse que a sua autorização se estendesse a tão vasto domínio, não deixaria de o referir expressamente. E é evidente que os conceitos de 'Administração Pública' e 'Agentes Administrativos' não indiciam minimamente que fosse essa a intenção da Assembleia da República, conceitos onde não se incluem obviamente todos os trabalhadores de todas as empresas ou sociedades anónimas em que o Estado tem participação
no respectivo capital, mas que se regem pelos critérios de gestão comuns às demais empresas e respeitam as regras e princípios da concorrência e do mercado.
17. Tratando-se de matéria reservada à Assembleia da República e sendo certo que a Lei da Autorização (Lei nº 12/83) não legitimou o Governo a abranger nas novas normas incriminadoras os trabalhadores das sociedades anónimas, como é actualmente a Caixa Geral de Depósitos, forçoso é concluir que as referidas normas do Decreto-Lei nº 287/93 estão feridas de inconstitucionalidade na medida em que se estenderam a tais cidadãos (os trabalhadores em questão), inconstitucionalidade que deriva da ofensa ao artigo 168º, nº 1, alínea c) da Constituição da República.
18. Os acórdãos sob recurso, ofenderam os citados preceitos constitucionais e, por isso, deverão ser revogados e substituídos por outros que não apliquem as normas jurídicas acima referidas e que ofendem as citadas normas e princípios constitucionais'.
3. Contra-alegou o Ministério Público, concluindo deste modo:
'1. As normas constantes dos artigos 4º, nº 2 e 5º, alínea e), do Decreto-Lei nº
371/83, de 6
de Outubro, segundo os quais são equiparados a funcionários os trabalhadores de empresas públicas nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, equiparação que os faz incorrer no crime de peculato, não violam o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição, por terem sido emitidas pelo Governo a coberto da necessária credencial parlamentar.
2. A citada norma constitucional também não é violada pela interpretação acolhida na decisão recorrida de que aquelas normas do Decreto-Lei nº 371/83 são aplicáveis aos trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos, mesmo depois de esta ter sido transformada, por força do disposto no Decreto-Lei nº 287/93, em sociedade de capitais públicos.
3. Tendo aqueles trabalhadores a qualidade de funcionários, justifica-se materialmente que a sua responsabilidade criminal seja mais gravosa do que a dos que não possuem tal qualidade, pelo que não se mostra violado o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
4. Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte impugnada'.
4. Vistos os autos cumpre decidir:
Os arguidos-recorrentes eram ambos trabalhadores bancários, um, o Fernando Manuel, ao serviço da União de Bancos Portugueses e outra, a Maria Isabel, da Caixa Geral de Depósitos, doravante C.G.D. ou simplesmente Caixa.
Ambos foram considerados 'funcionários' (o primeiro por tal qualidade lhe ter sido transmitida pela segunda) para efeitos penais, nos termos do artigo 437º do Código de Processo Penal e por força do estipulado nos artigos 4º e 5º, alínea e) do Decreto-Lei nº 371/83, de 6 de Outubro.
Tendo em conta esse considerando, entendeu o acórdão recorrido que as suas condutas integram o crime de peculato p.p. no artigo 424º, nº 1, do Código Penal, com referência ao artigo 28º, e aos restantes artigos anteriormente citados, confirmando a decisão da primeira instância (acórdão do Tribunal do Círculo de Penafiel, de 16 de Abril de 1993), que havia condenado os arguidos 'como co-autores do aludido crime de peculato, p.p. pelo artigo 424º, nº 1, do Código Penal, na pena, cada um deles, de 30 (trinta) meses de prisão e
45 (quarenta e cinco) dias de multa à taxa diária de 400$00 ou, em sua alternativa, prisão por trinta (30) dias, cuja suspensão da respectiva execução pelo período de 3 anos, isto no tocante à pena de prisão, foi decretada'.
Lê-se nesse acórdão, no que aqui importa e toca aos
'vícios de inconstitucionalidade':
'Os recorrentes acenam com vícios de inconstitucionalidade às normas do Dec.Lei nº 371/83, nomeadamente ao artigo 5º, al. e), mais invocando que o Governo, em tal Diploma, ultrapassou a respectiva Lei de Autorização (Lei nº 12//83, de 24 de Agosto). Mais concretamente, no que aqui interessa, foi posto em crise o disposto no nº 1 do artº 13º da Constituição da República Portuguesa, invocam os recorrentes.
Sobre tal, cumpre dizer, que os recorrentes, no apontar desses vícios de inconstitucionalidade, não invocam fundamento bastante, pois não se autolha, através da análise das normas visadas, que o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei não foi acatado ou existe a possibilidade do seu desrespeito, e que o Governo tenha ido, com tal Diploma, no que respeita concretamente à previsão contida no citado artigo 5º, al. e), para além da autorização legislativa.
Adiante-se, servindo-nos das palavras do Exmº Procurador-Geral Adjunto nas suas doutas alegações, que 'o princípio constitucional da igualdade significa, em síntese, que, deve ser tratado igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual, toda a vez que a igualdade de
que se trata é uma igualdade de «resultado» e não uma igualdade «à partida»'.
Também aqui, neste domínio ou nesta temática e salvo o devido respeito, não assiste razão aos recorrentes, carecendo de suporte jurídico o seu recurso, assim o entendemos'.
Os recorrentes sustentam que a interpretação dada ao artigo 437º do Código Penal e aos artigos 4º, nº 2, e 5º, alínea e) do Decreto-Lei nº 371/83, bem como aos artigos ou princípios jurídicos do Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, quanto à compreensão ou extensão do conceito de 'funcionário' para efeitos penais, é inconstitucional, reputando-os violadores dos artigos 13º, nº 1, e 168º, nº 1, alínea c) da Constituição.
São três, no essencial, as ordens de razões invocadas:
a) O crime imputado aos recorrentes não foi cometido no exercício de funções públicas ou equiparadas.
A actividade bancária em geral não assume natureza de serviço público, ou melhor, não se integra no núcleo de actividades comummente entendidas como próprias da Administração Pública.
Por outro lado, a C.G.D. foi transformada em sociedade anónima pelo referido Decreto-Lei nº 287/93 e, enquanto instituição bancária, desempenha Serviços em tudo idênticos e sujeitos a normas e princípios legais aos de qualquer outro banco. Os seus trabalhadores têm um estatuto sócio-profissional igual a qualquer outro trabalhador bancário.
Não há assim razão para ser considerado crime de peculato um facto praticado a um balcão da sociedade anónima C.G.D. e qualificar de simples furto idêntico facto praticado a um balcão de outro banco.
b) Não havendo razões substanciais que justifiquem tão grave alteração da natureza dos crimes, o entendimento do acórdão recorrido viola o princípio da igualdade (artigo 13º, nº 1, da Constituição).
c) O acórdão recorrido socorreu-se das normas do artigo 4º do Decreto-Lei nº
371/83, designadamente no seu nº 2, que alarga para efeitos penais o conceito de funcionário ás empresas de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e à norma do artigo 5º, alínea e) do mesmo diploma, que faz incorrer tais funcionários no crime de peculato.
Sucede que aquele Decreto-Lei foi elaborado ao
abrigo da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, não resultando dela, segundo os recorrentes, que o sentido da autorização abrangesse as empresas públicas e outras empresas de capitais públicos por forma a equiparar os seus trabalhadores a 'funcionários' para efeitos penais.
A autorização restringia-se, ainda segundo os recorrentes, ao âmbito 'dos agentes administrativos',
Assim sendo, não estava o Governo autorizado a introduzir novas normas ou a agravar as existentes em relação aos trabalhadores de todas as empresas públicas ou sociedades anónimas com capitais públicos.
Fazendo-o, padecem as referidas normas de inconstitucionalidade orgânica.
5. Saber se os recorrentes se encontram abrangidos pelo conceito de funcionário dado pelo artigo 437º do Código Penal, visto que, nos termos do nº 1 do artigo 4º do Decreto--Lei nº 371/83, e para efeitos deste diploma, a expressão 'funcionário' tem o alcance fixado pelo nº 1 do referido artigo 437º, é matéria decidida no Tribunal a quo e que não passa pela censura deste Tribunal Constitucional.
A censura só pode ter por objecto a norma do
artigo 4º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 371/83, quando conjugada com a alínea e) do artigo 5º do mesmo Decreto-Lei, segundo a qual, e para efeitos da lei penal, concretamente quanto ao crime de peculato, a equiparação dos recorrentes a funcionários tem o alcance fixado pelo nº 1 do artigo 437º do Código Penal.
Assim, e antes de mais, convém transcrever o que dispõem os referidos preceitos.
'Artº 437º
1. Para efeitos da lei penal, a expressão funcionário abrange:
a) ...
b) ...
c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tenha sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe.
2) ...'
Por sua vez, dispõe o artigo 4º do Decreto-Lei nº 371/83:
'Artigo 4º
1 - Para efeitos do presente diploma, a expressão funcionário tem o alcance fixado pelo nº 1 do artigo 437º do Código Penal.
2 - Para os mesmos efeitos, e ainda para os efeitos dos artigos 420º a 423º do Código Penal, são equiparados a funcionários os titulares dos órgãos e os funcionários da administração autárquica regional e local ou de institutos públicos e os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.'
Finalmente dispõe o artigo 5º, alínea e) do mesmo diploma:
'Artigo 5º
A equiparação prevista no nº 2 do artigo antecedente faz igualmente incorrer os equiparados:
a) ...
b) ...
c) ...
d) ...
e) Nos crimes de peculato previstos e punidos pelos artigos 424º, 425º e 426º do Código Penal;
f) ...
g) ...
h) ...
i) ...'
6. No acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça fez uma interpretação e aplicação plenas das questionadas normas do Decreto-Lei nº
371/83, convocando-as para fazer a equiparação do pessoal da C.G.D. a funcionários, sendo, pois, elas fundamento do decidido (sem qualquer referência ao regime do Decreto-Lei nº 48 953, de 5 de Abril de 1969, que constituía então a lei orgânica por que se regia aquela Caixa).
Ora, sendo isto assim, há necessariamente que averiguar se procede ou não a invocada inconstitucionalidade orgânica do nº 2 do artigo
4º e da alínea e) do artigo 5º daquele Decreto-Lei nº 371/83.
Com efeito, tendo o referido Decreto-Lei sido feito ao abrigo de autorização legislativa dada pela Assembleia da República pela Lei nº
12/83, de 24 de Agosto, não resulta que o sentido desta Lei abrangesse as empresas públicas por forma a equiparar os seus trabalhadores a 'funcionários' para efeitos penais, ou, por outras palavras, aquela Lei não dá cobertura às normas do Decreto-Lei nº 371/83 na matéria em questão.
A Lei nº 12/83 concedeu ao Governo autorização para alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal, em, entre outras, matéria de delitos de corrupção, tráfico de influências e outras fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração Pública (artigo 1º, alínea b)).
No que respeita a esta matéria, o sentido da autorização foi o de 'combater em geral a fraude e moralizar os comportamentos, efectivando a responsabilidade penal e civil dos agentes administrativos em adequação ao grau da sua responsabilidade funcional' (artigo 4º, alínea b)).
Que o Decreto-Lei nº 371/83 alargou o conceito de funcionário não restam dúvidas. Di-lo expressamente o seu pre
âmbulo:
'Os dispositivos do Código Penal que tipificam crimes cometidos no exercício de funções públicos jogam com o conceito estrito de funcionário.
Pelo presente diploma alarga-se esse conceito a funções cujo paralelismo, do ponto de vista da política criminal, é de todo o ponto evidente.
Por outro lado, os tipos legais de crime da secção I do capítulo IV, sob a rubrica 'da corrupção', reportam-se a um conceito de vantagem patrimonial, que deixa de fora valores e vantagens igualmente atendíveis de natureza pessoal, ou não patrimonial.
O presente diploma visa estender a situações em tudo dignas de igual tratamento soluções previstas por forma demasiado estrita no novo Código Penal.
Por último alarga-se a possibilidade de isenção da pena ao caso de participação de crime às autoridades por qualquer dos agentes, e não apenas em relação o agente de corrupção activa, como hoje acontece.
Tudo na linha de uma política de pragmático combate à corrupção e outras fraudes e de moralização dos comportamentos administrativos'.
A questão está, portanto, em saber se a Lei nº 12//83 autorizou o Governo a alargar o conceito dado pelo Código Penal, designadamente no que se refere à equiparação dos trabalhadores de empresas públicas nacionalizadas, de capitais públicos, ou com participação maioritária de capital público a 'funcionários', de modo a fazê-los incorrer no crime de peculato.
Na verdade, da leitura do estipulado na alínea b) do artigo 4º da Lei nº 12/83, parece deduzir-se que a autorização se reporta somente aos agentes administrativos, no âmbito da Administração Pública, e não aos trabalhadores das empresas públicas.
Não estando, por isso, o Governo legitimado a abranger nas novas normas incriminadoras os trabalhadores das empresas públicas, como era então a C.G.D. (cfr. o citado Decreto-Lei nº 48 953, em vigor à data - Maio de
1989 - da prática do crime pelo qual os recorrentes foram condenados), terá de se concluir que as referidas normas do Decreto-Lei nº 371/83 estão feridas de inconstitucionalidade, na medida em que a equiparação que aí é feita a funcionário público não estava abrangida pela autorização legislativa.
Tal inconstitucionalidade deriva da violação do
artigo 168º, nº 1, alínea c) da Constituição, que reserva à Assembleia da República a competência legislativa para definição 'dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal'.
Com efeito, ainda que se entenda que não é efectivamente inequívoco o sentido da autorização dada pela referida lei, há contudo, uma linguagem clara utilizada pelo legislador autorizante e que se reporta à Administração Pública e aos agentes administrativos, devendo corresponder ao significado com que tais expressões constam do discurso corrente no Direito Administrativo, de todos conhecido, sendo que as leis de autorização legislativa devem obediência ao condicionalismo prescrito no nº 2 do artigo
168º da Constituição.
Ora, falar de 'responsabilidade penal e civil dos agentes administrativos', no contexto de 'fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração Pública' (artigos 1º, alínea b), e 4º, alínea b) da citada Lei nº
12/83), não pode ter o alcance de se estender às empresas públicas - é só o que aqui importa - por forma a equiparar os seus trabalhadores a 'funcionários' para efeitos penais.
Pese, embora, a discussão da proposta da Lei nº 20/III
(Diário da Assembleia da República, 1ª Série, nº 21, de
14 de Julho de 1983), que deu origem àquela Lei nº 12/83, nomeadamente os esclarecimentos prestados pelo Ministro da Justiça, no propósito de clarificar o termo 'Administração', de modo a poder ser ele tomado em sentido lato, não se vê retratada na lei de autorização um tal sentido. Pelo contrário, o que da lei se extrai é uma autorização restringida unicamente ao âmbito da Administração Pública e dos agentes administrativos.
Com o que procede o invocado vício de
inconstitucionalidade orgânica, por referência ao artigo 168º, nº 1, c), da Constituição.
7. Termos em que se DECIDE:
a) julgar inconstitucional a norma constante dos artigos
4º, nºs 1 e 2, e 5º, e), do Decreto-Lei nº 371/83, de 6 de Outubro, por violação do artigo 168º, nº 1, c), da Constituição;
b) e, em consequência, conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, para ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lx, 26.6.96
Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes Almeida José Manuel Cardoso da Costa