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ACÓRDÃO Nº 224/95
PROCESSO Nº 90/94
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... impugnou contenciosamente, no Tribunal
Administrativo do Círculo de Lisboa, o despacho, de 22 de Abril de 1991, do
ADMINISTRADOR‑DELEGADO DO HOSPITAL A ..., que lhe ordenou a reposição de
quantias por si recebidas no período que decorre de 26 de Abril de 1989 a 16 de
Dezembro de 1990, durante o qual beneficiou de uma bolsa de estudo.
Não tendo obtido ganho de causa, recorreu ela da
respectiva sentença para o Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção), mas
também sem êxito.
2. É do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (de
11 de Novembro de 1993) que vem o presente recurso, interposto pela recorrente
ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
para apreciação da constitucionalidade da norma do nº 3.7 do Despacho nº 19/89,
da Ministra da Saúde, publicado no Diário da República, II série, de 26 de Maio
de 1989, a qual (em seu entender) viola os nºs 1 e 5 do artigo 115º da
Constituição - questão que ela suscitou nas alegações para o Supremo Tribunal
Administrativo.
Neste Tribunal, apenas alegou a recorrente, que concluiu
do modo que segue:
1º - O acórdão do S.T.A., aqui recorrido, decidiu que o Despacho nº 19/89 (por
lapso escreveu-se 18/89) da Senhora Ministra da Saúde não é inconstitucional e,
por consequência, aplicou-o.
2º - O referido despacho tem a natureza de regulamento integrativo com eficácia
externa e, como tal, está desconforme com o preceito constitucional constante do
artigo 115º, nº 5 da C.R.P.
3º - Assim sendo o aresto recorrido deve ser anulado na parte em que conclui
pela conformidade constitucional do referido Despacho 19/89 (por lapso,
escreveu-se 18/89) e o aplica.
Termos em que ao presente recurso deve ser dado provimento.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma do nº
3.7. do Despacho nº 19/89 da Ministra da Saúde (publicado no Diário da
República, II série, de 26 de Maio de 1989) viola (ou não) o nº 5 do artigo 115º
da Constituição.
II. Fundamentos:
4. A norma do nº 3.7. do Despacho nº 19/89, da Ministra
da Saúde, publicado no Diário da República, de 26 de Maio de 1989, reza assim:
3.7. - Quando aos enfermeiros a quem foi autorizado o regime de tempo completo
prolongado for concedida bolsa de estudo para frequência de cursos de enfermagem
pós-básicos, deverá ser cessado o respectivo regime, bem como o acréscimo de 40%
sobre o vencimento base, a partir da data do início do curso. Não haverá lugar à
cessação do referido regime, no caso de frequência de acções de formação de
curta duração, até ao limite de 30 dias.
Decorre deste normativo que aos enfermeiros que, estando
em regime de tempo completo prolongado, forem frequentar cursos de enfermagem
pós-básicos, far-se-á cessar esse regime de trabalho a partir da data do início
do respectivo curso (e, consequentemente, o pagamento do acréscimo de 40% sobre
o vencimento base), salvo se se tratar de acções de formação de curta duração ,
até ao limite de 30 dias.
Os enfermeiros integrados na carreira (a qual se rege
pelas disposições constantes do Decreto-Lei nº 178/85, de 23 de Maio: cf. artigo
1º, nº 1), no domínio deste Decreto-Lei nº 178/85, exerciam as suas funções nos
seguintes regimes de trabalho: (a). tempo completo; (b). tempo completo
prolongado; e (c). tempo parcial [cf. artigo 13º, nº 1, alíneas a), b) e c)].
Presentemente, após a publicação do Decreto-Lei nº
34/90, o regime normal de trabalho é de 35 horas semanais (cf. artigo 4º, nº 1);
excepcionalmente, 'nos casos em que o funcionamento dos serviços o justifique',
'podem, mediante prévia autorização ministerial, adoptar uma duração semanal de
trabalho superior a 35 horas' (cf. artigo 4º, nº 2), tal como, 'em condições
excepcionalmente autorizadas caso a caso por despacho ministerial', podem
'praticar o regime de tempo parcial, com a duração de 20 ou 24 horas de trabalho
semanal' (cf. artigo 4º, nº 3).
No domínio do Decreto-Lei nº 178/85, de 23 de Maio, o
regime de tempo completo implicava a prestação de 36 horas de trabalho semanais;
o de tempo completo prolongado, 45 horas de trabalho semanais; e o de tempo
parcial, 20 a 24 horas de trabalho por semana (cf. artigo 13º, nºs 2, 4 e 5).
O regime de tempo completo prolongado - que, tal como o
regime de tempo parcial, tinha que ser 'objecto de regulamentação, não podendo
ser posto em execução sem autorização ministerial prévia', que deveria
'explicitar a duração do respectivo regime' (cf. artigo 13º, nº 3) - era um
regime excepcional ('um regime de recurso'), que apenas devia 'ser aplicado a
título excepcional e por urgente conveniência de serviço' (cf. artigo 13º, nº
4), terminando logo que cessassem 'as circunstâncias que o motivaram' (cf. o
citado Despacho nº 19/89, nº 3.1.). Conferia direito a perceber um acréscimo de
40% sobre o vencimento base (cf. artigo 13º, nº 10) e esse acréscimo implicava o
pagamento de subsídios de férias e de Natal de igual valor (cf. artigo 13º, nº
11).
O tempo de serviço prestado em regime de tempo completo
prolongado era sempre aumentado em 25% para efeitos de aposentação (cf. artigo
13º, nº 6).
Sobre o regime de tempo completo prolongado dispõe‑se
ainda no mencionado Despacho nº 19/89 o seguinte:
3.2 - O órgão de gestão do estabelecimento ou serviço deverá, antes de recorrer
à aplicação deste regime, esgotar todas as hipóteses de recrutamento de pessoal,
designadamente o preenchimento dos lugares vagos existentes nos quadros ou mapas
de pessoal.
3.3 - A aplicação deste regime deverá ser antecedida de estudo que permita
analisar:
a) Se a distribuição do pessoal de enfermagem existente é a mais adequada;
b) Se os horários praticados se encontram ajustados às características e
necessidades do serviço e qual o tipo ou tipos de horários a praticar
futuramente;
c) O número de vagas existentes no quadro ou mapa de pessoal;
d) Os objectivos que se pretendem atingir com o alargamento do horário de
trabalho, concretizando as inovações ou alterações que se desejam introduzir;
e) O número de funcionários a abranger, respectivas categorias e locais de
trabalho;
f) O tempo previsível de duração do regime;
g) Os encargos decorrentes e a existência de cabimento orçamental.
3.4. - O despacho que aprovar a aplicação deste regime deverá indicar
expressamente a sua duração, que não poderá ser superior a um ano. Se se
mantiverem as razões que condicionaram a aplicação do regime, poderá aquele
período ser prorrogado.
3.5 - A prestação desta modalidade de trabalho dependerá de prévio acordo do
pessoal visado, devendo o despacho de autorização incluir a relação nominal dos
enfermeiros a abranger, por serviço.
3.6. - A mudança do regime de trabalho de tempo completo para tempo completo
prolongado está sujeita a visto do TC e a publicação no DR.
3.8 - As faltas por doença que determinem a perda do vencimento de exercício
determinam também a correspondente perda na remuneração suplementar percebida.
3.9 - Se no decurso do período de tempo fixado para o regime de tempo completo
prolongado houver lugar ao gozo de licença por maternidade, deverá manter-se a
remuneração suplementar de 40% sobre o vencimento base.
Sendo os enfermeiros funcionários ou agentes do Estado
ou de outras pessoas colectivas de direito público, com direito a formação
permanente, com vista à sua actualização e aperfeiçoamento profissional (cf.
artigo 15º, nºs 1, 3 e 4), pode ser-lhes 'concedida equiparação a bolseiro no
País', sempre que 'se proponham realizar programas de trabalho e estudo, bem
como frequentar cursos ou estágios de reconhecido interesse público', com
duração superior a três meses (cf. artigo 1º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº
272/88, de 3 de Agosto).
A equiparação a bolseiro implica a dispensa temporária,
total ou parcial, do exercício das respectivas funções e não dá lugar a abertura
de vaga - para além de que o funcionário mantém as regalias inerentes ao
efectivo desempenho das funções, 'designadamente o abono da respectiva
remuneração e a contagem de tempo de serviço para todos os efeitos legais' (cf.
artigo 2º, nºs 1 e 2, do citado Decreto-Lei nº 272/88).
5. Descrito, no essencial, a disciplina a que estavam
sujeitos os enfermeiros em regime de tempo completo prolongado, que tivessem
sido equiparados a bolseiro no País, vejamos, então, se o nº 3.7. do Despacho nº
19/89 - que, recorda-se, manda fazer cessar esse regime de trabalho a partir da
data do início do respectivo curso, com a consequente perda do acréscimo de 40%
sobre a remuneração base - viola (ou não) o nº 5 do artigo 115º da Constituição.
À questão assim enunciada deu o acórdão recorrido
resposta negativa.
O artigo 115º, nº 5, da Constituição preceitua como
segue:
Artigo 115º (Actos normativos)
5. Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a
actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
O artigo 115º, nº 5, da Constituição (aditado pela
revisão constitucional de 1982), no segmento que aqui importa considerar, veio
inconstitucionalizar os preceitos legais que habilitem a Administração a
realizar uma integração regulamentar de normas legais: a integração (tal como a
interpretação autêntica) de uma lei só por outra lei pode ser feita, e não por
um regulamento.
A propósito deste preceito, escrevem J.J. GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3º
edição, Coimbra, 1993, página 511):
A proibição de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis
não exclui obviamente todos os actos interpretativos ou integrativos, mesmo com
eficácia externa. A Administração e os tribunais não podem deixar de interpretar
e integrar as leis quando as aplicam. O que se pretende proibir é a
interpretação (ou integração) autêntica das leis através de actos normativos não
legislativos, seja de natureza administrativa (ex.:regulamentos) seja de
natureza jurisdicional (ex.: sentenças).
[...] Proíbe-se também a interpretação (ou integração) autêntica da lei por via
administrativa (ex.: despachos normativos), os quais, portanto, só podem ter
eficácia interna, em relação aos próprios serviços administrativos.
Este Tribunal, no seu acórdão nº 1/92, tirado por
maioria, (Diário da República, I série-A, de 20 de Fevereiro de 1992),
reportando-se aos regulamentos que interpretem autenticamente uma lei, afirmou:
[...] por força do actual artigo 115º, nº 5, da Constituição, foi elevada ao
nível constitucional a proibição dirigida ao legislador de habilitar a
Administração a emanar regulamentos que interpretem autenticamente uma
disposição legal entendida esta expressão no sentido de regulamentos de eficácia
externa, com força de lei (e, por isso mesmo, vinculativos para os tribunais) e
podendo fixar para aquela um sentido inovador [...]. E, sendo inválidas, por
enfermarem de inconstitucionalidade, as disposições legais habilitantes, ilegais
serão, pelo menos, os regulamentos que interpretem autenticamente a lei, dado
que, julgada ou declarada inválida por um tribunal a norma legal habilitante,
por vício originário de inconstitucionalidade, desaparecerá a base legal do
regulamento.
O artigo 115º, nº 5, da Constituição é, pois, uma norma
dirigida ao legislador, e não ao poder regulamentar.
Este Tribunal, no seu acórdão nº 19/87 (Acórdãos do
Tribunal Constitucional, volume 9º, página 442) afirmou expressamente:
[...] não sendo o artigo 115º, nº 5, da Constituição dirigido ao poder
regulamentar, sim ao legislativo [...]
E mais adiante:
Este despacho normativo [refere-se ao Despacho Normativo nº 180/81, de 11 de
Julho] não é, no entanto, inconstitucional, pois, como se disse já, não lhe é
directamente aplicável o artigo 115º, nº 5, da Constituição [...] (cf. também o
acórdão nº 354/86 (Acórdãos cit., volume 8º, página 592).
Também no acórdão nº 384/87 (Acórdãos cit., volume 10º,
página 350) se escreveu:
[...] O nº 5 do artigo 115º da Lei Fundamental se não dirige ao poder
regulamentar mas ao legislativo, não sendo, assim, directamente aplicável aos
actos normativos que efectuam a interpretação autêntica de actos legislativos.
6. Assim sendo, a norma aqui sub iudicio (a norma do nº
3.7 do Despacho nº 19/89 da Ministra da Saúde, publicado no Diário da República,
II série, de 26 de Maio de 1989), ainda que assumisse a natureza de regulamento
integrativo proibido pela Constituição - questão que, aqui, não interessa
decidir -, nunca poderia ser invalidada por aplicação directa do artigo 115º, nº
5, da Constituição. A invalidade de tal norma, a existir, só poderia decorrer da
inconstitucionalidade de uma norma legal que, contra o preceituado no mencionado
artigo 115º, nº 5, cometesse a 'actos de outra natureza' (v.g. regulamentos,
despachos normativos...) a sua interpretação ou integração autêntica com
eficácia externa - norma legal que fosse a lei habilitante daquela norma
regulamentar. Num tal caso, invalidada a norma legal por inconstitucionalidade,
inválida seria a norma regulamentar, por falta de suporte ou base legal, no
momento em que foi emitida.
Objecto do presente recurso é, no entanto, apenas a
norma indicada (e não qualquer preceito de lei) e o recorrente pretende fazer
decorrer a inconstitucionalidade de tal norma regulamentar de uma aplicação
directa do artigo 115º, nº 5, da Constituição.
Não podendo confrontar-se a norma sub iudicio
directamente com a Constituição, há que concluir pelo improvimento do recurso.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 26 de Abril de 1995
Messias Bento
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa