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Processo nº 4/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do despacho do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da comarca de Bragança, de 12 de Outubro de 1994, 'recurso este restrito à questão da conformidade constitucional do artº 10 do D.L. nº 194/92 de 8/9, que doutamente se entendeu violar o disposto no artº 168º nº 1 al. a) da Constituição da República e, consequentemente, enfermar de inconstitucionalidade orgânica'.
Nesse despacho foi absolvida da instância a embargante e executada a Companhia de Seguros A , porque se julgou 'procedente a excepção da incompetência, e ao abrigo do disposto nos artºs 101º, 102º/1, 103º/1, 105º/1,
288º/1, al. a), 493º/1 e 2, 494º, nº 1 al f), e 510º/1 al. a), todos do C.P.C.' o se declarou o tribunal judicial 'incompetente em razão da matéria e competente o Tribunal de Trabalho de Bragança'.
É a seguinte a ordem de considerações em que se estribou o despacho recorrido, para conhecer da excepção dilatora da incompetência em razão da matéria do tribunal judicial da comarca de Bragança deduzida pela embargante:
'O Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, veio instituir o novo regime jurídico da cobrança de dívidas as instituições e serviços públicos integrados no serviço nacional de saúde (artº 1º), conferindo força executiva as certidões de dívida emitidas por essas entidades (artº 2º).Os artºs. 4º, 6º e 7º, tratam das dívidas resultantes de tratamentos a sinistrados por acidentes de viação, dívidas resultantes de tratamentos de sinistrados em acidentes de Trabalho ou equiparado, e tratamentos prestados a quem tenha sido vítima de facto criminalmente punível, respectivamente.Por sua vez, no artº 10º deste diploma, com a epígrafe 'Foro competente para a execução', refere que 'as acções de execução por dívidas a que se refere o presente diploma são instauradas no Tribunal da comarca em que se encontra sediada a entidade exequente'. Ora, os Tribunais Judiciais organizam-se segundo a matéria, o território, a forma do processo e a estrutura - artº 45º da Lei nº 38/87, de 23/12, com as alterações operadas pelas Leis 24/90, de 4/8 e 24/92, de 20/8 (L.O.T.J.). Por sua vez e consoante a matéria das causas que lhe são atribuídas, são Tribunais de competência genérica e de competência especializada (artº 46º). Territorialmente, isto é, consoante a área territorial em que exercem a sua competência, são Tribunais de comarca, Tribunais de Círculo e Tribunais de Distrito - artº 47º. Os Tribunais de Trabalho são Tribunais de competência especializada, bem como os Tribunais Cíveis e Criminais, artº 56º, 58º e 64º. Resulta assim, sem margem para dúvidas, que quando se refere no artº 10º do D.L. nº 194/92, de 8/Set. o 'Tribunal da comarca', está-se a referir aos Tribunais de competência genérica com jurisdição limitada à comarca. Tanto assim é que o legislador, depois de se referir a natureza das várias dívidas, nos artºs 4º, 6º e 7º, já citados, apenas atribui competência para a execução a um único Tribunal - o Tribunal da comarca, com competência genérica. Temos pois por assente que a competência para a dita execução foi deferida ao Tribunal de competência genérica, os chamados - Tribunais de comarca. Importa agora, apurar se o podia fazer. A certidão de dívida dada a execução pelo Hospital de Bragança refere que trata-se de...' despesas assistenciais relativas ao assistente B, que no momento do sinistro se encontrava sob a autoridade e deveres de C, sua entidade patronal, tendo por sua vez transferido a responsabilidade por acidente em trabalho, para a Companhia de seguros A' Estamos por isso, no âmbito das dívidas a que se reporta o citado artº 6º do Dec.Lei nº 194/ /92, cujo teor se transcreve:
'Se as dívidas resultarem de tratamento de sinistrados por acidente de trabalho, a execução corre contra aquele a quem o sinistrado prestava os seus serviços, no momento da ocorrência do sinistro, independentemente da natureza jurídica do vínculo nos termos do qual eram prestados tais serviços'.
E, no nº 2: 'Havendo contrato de seguro, a execução corre contra a entidade seguradora respectiva.' Deste modo, também não oferece dúvidas que o embargado pretende cobrar uma dívida resultante de tratamento de sinistrado por acidente de trabalho. Compete aos Tribunais de Trabalho em matéria cível, conhecer das questões emergentes de acidente de trabalho, bem como das questões de enfermagem e hospitalares, de fornecimento de medicamento emergentes de prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidente de trabalho
(artº 64º, ali. c) e d) da L.O.T.J.). Compete-lhes, ainda, conhecer das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros Tribunais - artº 64º, ali. n). Ora, a embargante e executada, alegou que o acidente que justificou a prestação de assistência, não foi de trabalho. Alega, pois, factos que a provarem-se descaracterizam o acidente como de
'trabalho', o que poderá afastar a sua responsabilidade pelo pagamento da dívida, já que o contrato de seguro com base no qual é demandada, apenas cobre os acidentes de trabalho. Tal questão é sem dúvida da competência exclusiva dos Tribunais de Trabalho - citada al. d) do artº 64º da L.O.T.J. - e se dúvidas houvesse quanto a competência para a execução, terão de ser afastadas com a questão suscitada nos embargos. Assim, é o Tribunal de Trabalho o competente para a presente execução e embargos. Porque assim é, não podia o Governo conferir ao Tribunal de comarca tal competência, sob pena de inconstitucionalidade orgânica. Com efeito, tal diploma foi produzido ao abrigo do artº 201º, nº 1, ali. a) da C.R.P.. Porém, cabe na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a elaboração de leis sobre a organização e competência dos Tribunais
- primeira parte da ali. q) do nº 1 do artº 168º da C.R.P.. De facto, a norma do artº. 10º do Dec. Lei nº 194/92, de 8/9, envolve alteração da competência material dos Tribunais de Trabalho. Por isso, tal alteração só era constitucionalmente legítima se o governo estivesse munido de competente credencial parlamentar.
É entendimento pacífico que cabe na competência reservada da Assembleia toda a matéria da organização e competência dos Tribunais (vidé Ac. do T.C. nº
805/93, D.R., I Série-A, de 4/1/94 onde são citados inúmeros acórdãos nesse sentido, e Vital Moreira e Gomes Canotilho, C.R.P. Anotada, 3ª ed., 1993). Nestes termos, o seguimento da norma do artº 10º do D.L. 194/92, de 8/9, é organicamente inconstitucional, ao atribuir aos Tribunais de comarca competência para as execuções de dívidas resultantes de tratamentos de sinistrados por acidente de trabalho, visto afrontar o artº 168º, nº 1, ali. q) da C.R.P. Face ao exposto, e julgando procedente a excepção da incompetência, e ao abrigo do disposto no artº 101º, 102º, nº 1, 103º, nº 1, 5º nº 1, 288º, nº 1, ali. a),
493º, nº 1 e 2, 494º, nº 1, al. f) e 510º, nº 1, ali. a), todos do C.P.C., declaro este Tribunal incompetente em razão da matéria e competente o Tribunal de Trabalho de Bragança e, consequentemente, absolvo a embargante e executada da instância.'
2. Nas suas alegações concluiu assim o Ministério Público recorrente:
'1º
Por força do preceituado no artigo 64º, alíneas c), d) e n) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro) e nos artigos 91º, alínea e) e 156º do Código de Processo de Trabalho, é o foro laboral o materialmente competente para o processamento das acções, quer declarativas, quer executivas, que visam efectivar os direitos de terceiros, emergentes da prestação de serviços clínicos e hospitalares em benefício de sinistrados em acidentes de trabalho.
2º
O artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, ao estabelecer que incumbe aos tribunais de comarca o processamento das acções de execução por dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, resultantes de tratamentos de sinistrados em acidentes de trabalho, nos termos dos artigos 2º e 6º desse diploma, inova no que se refere à referida repartição de competências materiais entre tribunais do trabalho e tribunais de competência genérica, ampliando a destes em detrimento da outorgada àqueles pelas leis de organização judiciária.
3º
A norma constante do referido artigo 10º, enquanto interpretada no sentido de que incumbe aos tribunais de competência genérica o processamento das execuções tendentes à cobrança coerciva das dívidas hospitalares decorrentes de tratamentos consequentes a lesões sofridas por sinistrados em acidentes de trabalho, é organicamente inconstitucional, por - constando de diploma editado no exercício da competência legislativa própria do Governo - violar o preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida, no que se refere ao juízo de inconstitucionalidade orgânica da norma desaplicada.'
3. A embargante e executada, ora recorrida, não apresentou alegações.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
É sabido que este Tribunal Constitucional se tem pronunciado ultimamente sobre o Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro - o mesmo diploma legal a que se reportam os autos -, editado na sequência da Lei nº
48/90, de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde), com o qual veio regular-se a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde (cfr. artigo 1º).
A matéria da cobrança dessas dívidas achava-se regulada no Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril, que mandava que, fosse qual fosse o valor, ela se fizesse em processo declaratório sumaríssimo, com assinaláveis adaptações (cfr. artigo 1º).
As execuções fundadas em sentença proferidas naquelas acções seguiam também a forma sumaríssima (cfr. artigo 5º).(Anteriormente ao Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril, a cobrança de tais dívidas fazia-se nos termos dos artigos 41º a 44º do Decreto-Lei nº 46.301, de 27 de Abril de 1965).
Mas, face aos 'insatisfatórios resultados conseguidos com o Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril' - o que se terá ficado a dever ao facto de as dívidas aos estabelecimentos de saúde estarem sujeitas ao regime da prescrição presuntiva, que é uma prescrição de curto prazo (dois anos, no caso de a dívida ser exigida do próprio assistido ou familiares; três anos, quando o hospital interpele 'o terceiro responsável pela lesão corporal ou quem por sub-rogação haja assumido tal responsabilidade, v.g. entidades seguradoras') e, bem assim, à circunstância de 'o recurso, sempre moroso, à acção declarativa, como forma de obter a declaração de direitos quase sempre certos e indiscutíveis, funciona[r], muitas vezes, como obstáculo de vulto à efectiva cobrança dos créditos' - o legislador decidiu 'generalizar a todas as unidades de saúde públicas' a solução, 'de acerto indiscutível', 'consagrada no artigo 6º da Lei nº 1981, de 3 de Abril de 1940, que atribui força de título executivo às certidões de dívida pelo tratamento de doentes passados pelos Hospitais Civis de Lisboa' (cfr. preâmbulo do mencionado Decreto-Lei nº 194/92).
E as normas desse Decreto-Lei cuja constitucionalidade este Tribunal Constitucional tem apreciado são as dos artigos 2º, 4º e 6º, para concluir sempre que elas não violam o artigo 205º, nº 1, da Constituição (conf., por exemplo, entre outros, o recente acórdão nº 11/96, na linha do acórdão nº
760//95).
Colocando-se a questão de saber se, por um lado, a certificação da dívida pela entidade administrativa (as instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde) representa a prossecução de uma actividade que visa, quer a definição do responsável, quer a composição de um conflito entre credor e devedor, e, por outro, se ficam patentemente diminuídos os direitos de defesa do que, no título, figura como devedor, tem este Tribunal Constitucional respondido sempre que a criação de um título executivo, como é o caso revelado nos citados artigos do Decreto-Lei nº 194/92, mostra-se conforme à Lei Fundamental.
5. Não é, porém, esta a questão de constitucionalidade que vem suscitada nos presentes autos, radicada como se mostra no artigo 10º do mesmo Decreto-Lei nº 194/92, que dispõe como se segue:
'As acções de execução por dívida a que se refere o presente diploma são instauradas no tribunal da comarca em que se encontra sediada a entidade exequente'.
É que, dando o Mmº a quo por assente que 'a competência para a dita execução foi deferida ao Tribunal de competência genérica, os chamados Tribunais de comarca' e que 'não oferece dúvidas que o embargado pretende cobrar uma dívida resultante de tratamento de sinistrado por acidente de trabalho' (âmbito do artigo 6º do mesmo Decreto-Lei nº 194/92), a conclusão só pode ser aquela a que chegou o Mmº Juiz a quo, na posição que assumiu:
'Compete aos Tribunais de Trabalho em matéria cível, conhecer das questões emergentes de acidente de trabalho, bem como das questões de enfermagem e hospitalares, de fornecimento de medicamento emergentes de prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidente de trabalho
(artº 64º, ali. c) e d) da L.O.T.J.).
Compete-lhes, ainda, conhecer das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros Tribunais - artº 64º, ali. n). Ora, a embargante e executada, alegou que o acidente que justificou a prestação de assistência, não foi de trabalho. Alega, pois, factos que a provarem-se descaracterizam o acidente como de
'trabalho', o que poderá afastar a sua responsabilidade pelo pagamento da dívida, já que o contrato de seguro com base no qual é demandada, apenas cobre os acidentes de trabalho. Tal questão é sem dúvida da competência exclusiva dos Tribunais de Trabalho - citada al. d) do artº 64º da L.O.T.J. - e se dúvidas houvesse quanto a competência para a execução, terão de ser afastadas com a questão suscitada nos embargos. Assim, é o Tribunal de Trabalho o competente para a presente execução e embargos'.
Por consequência, a questão a debater aqui prende-se só com aquele artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, no plano da sua constitucionalidade orgânica, quando interpretado no sentido de que incumbe aos tribunais de competência genérica o processamento das execuções tendentes à cobrança coerciva das dívidas hospitalares decorrentes de tratamento consequentes a lesões sofridas por sinistrados em acidentes de trabalho, havendo que apurar, como diz o Mmº Juiz a quo, se o Governo podia ou não conferir àqueles tribunais tal competência, em diploma, como é o Decreto-Lei nº
194/92, produzido ao abrigo do artigo 201º, nº 1, a), da Constituição.
É, pois, uma questão que não foi apreciada, nem decidida, na jurisprudência recente deste Tribunal Constitucional, a propósito do mesmo Decreto-Lei nº 194/92.
Feito este esclarecimento, prossigamos.
6. De modo decisivo - e aqui reproduzindo ipsis verbis o discurso do Ministério Público - se passam as coisas no que se refere à possível inovação em sede de definição do tribunal materialmente competente para tal execução, atenta o preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição da República Portuguesa.
É inquestionável que o artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92 pretendeu situar na área da competência dos tribunais de competência genérica todas as acções de execução pelas dívidas hospitalares nele previstas - e que incluem, como se referiu, as decorrentes de tratamentos a sinistrados em acidentes de trabalho, nos termos estabelecidos no artigo 6º.
Ora, no regime precedentemente em vigor, tais acções, visando a cobrança daqueles débitos, quer fossem declarativas, quer revestissem natureza executiva, se situavam claramente no âmbito da competência dos tribunais do trabalho, atento o preceituado na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e no Código de Processo de Trabalho.
Interessará começar por referir o que dispõe o artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/ /87, de 23 de Dezembro) acerca da competência material do foro laboral, sendo--lhe cometido sucessivamente o conhecimento:
(...)
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais; d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuadas ou pagas em benefício das vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
n) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais.
(...)
Nenhuma dúvida suscita o âmbito da previsão das alíneas c) e d) do referido artigo 64º - importando relacionar esta última com o processo referenciado no artigo 156º do Código de Processo de Trabalho - e que, ao ser processado por apenso ao processo resultante do acidente de trabalho, obviamente que se situa na área do foro laboral.
É, deste modo, inquestionável que as acções declaratórias visando a efectivação de direitos de estabelecimentos hospitalares, conexos com acidentes de trabalho, cabem na área da competência dos tribunais do trabalho.
Quanto às acções executórias, importa atentar na atrás citada alínea n) do artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
Sobre tal preceito, escreve ALBERTO LEITE FERREIRA (ob. cit., pág. 70):
'O artigo 14º do Código de Processo do Trabalho de 1963 dispunha na alínea n) que eram da competência dos tribunais de trabalho 'as providências executivas previstas no Título V do Livro I deste Código'.
A Lei Orgânica de 1977, porém, veio dizer, por sua vez, no artigo 66º, alínea n), que os tribunais do trabalho eram competentes para conhecer:
'Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais'.
Esta foi também a redacção consagrada pela nova Lei Orgânica - Lei nº 38/87 - na alínea n) do seu artigo 64º.
Pretendeu-se, certamente, com a nova redacção desta dar maior clareza à mesma alínea do artigo 14º do Código de 1963.
Se assim foi, crê-se que as palavras não conseguiram retratar com fidelidade o pensamento do legislador.
Com efeito, o que a alínea n) do artigo 64º da Lei Orgânica em vigor traduz, numa interpretação literal do seu contexto , é que os tribunais de trabalho tem competência também, em matéria cível:
a) para as execuções fundadas nas decisões por si próprias proferidas e, ainda, b) para as execuções fundadas em quaisquer outros títulos que não sejam da competência de outros tribunais.
No caso da alínea a), nenhumas dúvidas se levantam; o mesmo, porém, se não pode dizer da alínea b).
Com efeito, diante de um título executivo que não seja uma decisão dos tribunais de trabalho, o que desde logo parecia impor-se era isto: averiguar se a execução se funda ou não em título executivo da competência de qualquer outro tribunal que não seja tribunal de trabalho. Se a conclusão a que porventura se chegasse fosse afirmativa, que dizer, se a competência estivesse deferida a outro tribunal, seria perante este que a execução devia correr termos; no caso contrário, competente seria o tribunal de trabalho.
De maneira que a competência dos tribunais de trabalho em matéria executiva seria determinada por exclusão de partes. Seriam da competência dos tribunais de trabalho todas as execuções não fundadas em decisões suas que, por lei, não estivessem atribuídas à competência de outro tribunal.
Não foi isto certamente o que se pretendeu dizer, mas sim que os tribunais de trabalho são competentes, não só para as execuções fundadas nas suas próprias decisões, mas também para as fundadas noutros títulos de que conste a existência ou a subsistência de um direito da natureza daqueles que se integram na esfera da sua competência declarativa.
Adere-se inteiramente a esta interpretação do estatuído na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
Seria, na verdade, perfeitamente insólito que a competência de um tribunal de competência especializada - como o é inquestionavelmente o tribunal do trabalho - viesse a ser determinada por via subsidiária e residual relativamente à competência atribuída aos tribunais de competência genérica.
Em abono desta tese, pode ainda invocar-se o estatuído no artigo 91º da Código de Processo de Trabalho que, na sua alínea e) considera títulos executivos no processo laboral as certidões de contas hospitalares decorrente da prestação de assistência a lesados em acidentes de trabalho.
Ou seja: interpretando os termos da alínea n) do artigo
64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais em articulação, quer com o previsto na alínea d) do mesmo preceito, quer com o estatuído na alínea e) do artigo 91º do Código de Processo de Trabalho, é razoável concluir-se que são da competência do foro laboral as execuções instauradas com vista à cobrança de débitos hospitalares decorrentes dos tratamentos consequentes a lesões originadas por acidentes de trabalho.
Ora, é evidente que perante esta interpretação das normas que precediam a entrada em vigor do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, esta norma se deve qualificar como substancialmente inovadora no que respeita à determinação do foro competente em razão da matéria para as acções executivas pelas dívidas reguladas em tal diploma: enquanto, face ao preceituado na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e no Código de Processo de Trabalho, tais execuções seriam sempre da competência do tribunal de competência genérica, face ao preceituado nos artigos 2º, 6º e 10º daquele Decreto-Lei nº 194/92 tais execuções passam a ser sempre da competência dos tribunais judiciais de competência genérica.
7. A jurisprudência constitucional vem entendendo que cabe na competência reservada da Assembleia toda a matéria da organização e competência material dos tribunais, não se aceitando que, nesta área, como se diz no acórdão nº 805/93, 'se possa distinguir, à luz da Constituição, um plano legal e um plano regulamentar, no que toca à definição da competência material dos diferentes tipos de tribunais, e que se circunscreva a reserva parlamentar à definição das matérias em que as opções legislativas se revistam de especial relevância'.
Ora, assente o carácter inovatório da regra atinente à definição do 'foro competente para a execução', constante do citado artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92 e a sua evidente repercussão na delimitação da competência material dos tribunais de competência genérica, face a uma categoria de tribunais de competência especializada - os tribunais do trabalho
- é evidente a necessidade de a alteração legislativa introduzida constar de diploma credenciado por autorização parlamentar, sob pena de inconstitucionalidade orgânica.
Não parece, por outro lado, que a modificação legislativa constante do citado artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92 se possa qualificar como mero reflexo ou decorrência de uma simples alteração de um regime adjectivo, situada na área da competência legislativa própria do Governo.
É o que terá sucedido com a alteração da competência territorial do tribunal incumbido de proceder à cobrança coerciva dos débitos ao Serviço Nacional de Saúde, decorrentes de mero acidente de viação: na verdade, tais acções - no âmbito do Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril - seriam, enquanto sujeitas ao processo declarativo sumaríssimo, da competência do tribunal onde ocorreu o acidente, nos termos do artigo 74º, nº 2, do Código de Processo Civil. Transformadas ou 'convertidas' tais acções em executivas, é evidente que a norma essencial para a fixação da competência passará a ser a do artigo 94º, nº 1, do Código de Processo Civil, que considera competente o tribunal do lugar do cumprimento de obrigação, conjugada com a do artigo 774º do Código Civil, que considera dever a obrigação pecuniária ser cumprida no lugar do domicílio do credor.
É o que resulta, afinal, do artigo 10º do Decreto--Lei nº
194/92, ao estatuir que a execução deve ser instaurada
no tribunal da comarca em que se encontra sediada a entidade exequente.
Ou seja: a aparente alteração da competência territorial para as acções de cobrança de dívidas hospitalares configura-se, neste caso, como mero e directo corolário de uma modificação de um regime adjectivo, traduzida na ampliação dos requisitos de exequibilidade do título e na consequente 'convolação' das acções condenatórias para acções executivas - com os necessários reflexos não elementos de conexão relevantes para a determinação do tribunal territorialmente competente.
Pelo contrário, na hipótese ora em apreciação, não foi seguramente a criação de um novo título executivo administrativo, ampliado no que respeita aos pressupostos de exequibilidade, que ditou a modificação do tribunal territorialmente competente para o processamento da execução: era, na verdade, perfeitamente concebível que as execuções visando a cobrança das dívidas hospitalares continuassem a correr no foro laboral, como ocorria com as que se fundassem no título executivo previsto no artigo 91º, alínea e) do Código de Processo de Trabalho.
A dispensa da prévia acção condenatória não implicaria, por si, qualquer reflexo necessário na determinação do tribunal competente em razão da matéria, sendo perfeitamente plausível e possível que as execuções permitidas pelo citado artigo 10º, continuassem a ser processadas nos tribunais do trabalho - como antes o eram as acções condenatórias e as acções executivas, já possíveis perante a referida alínea e) do artigo 91º do Código de Processo de Trabalho.
A regra referente à fixação do foro materialmente competente para o processamento das execuções para cobrança de dívidas hospitalares representa, pois, uma opção autónoma e directa do legislador, que nada tem a ver com o tema processual da determinação (e ampliação) dos pressupostos de exequibilidade do título. E sendo certo que tal opção pressupunha necessariamente a obtenção da indispensável credencial parlamentar, por força do estatuído no artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição da República Portuguesa, já que se veio inovar em sede de fixação ou determinação da competência em razão da matéria dos tribunais de trabalho no confronto dos tribunais de competência genérica.
8. Termos em que, DECIDINDO:
a) julga-se inconstitucional a norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, enquanto interpretada no sentido de que incumbe aos tribunais de competência genérica o processamento das execuções tendentes à cobrança coerciva das dívidas hospitalares decorrentes de tratamentos consequentes a lesões sofridas por sinistrados em acidentes de trabalho, por violação do artigo 168º, nº 1, q) da Constituição; e, em consequência,
b) nega-se provimento ao recurso.
Lisboa 6.3.96 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida