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Proc. nº 358/96 ACÓRDÃO Nº 876/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., com os sinais dos autos, de nacionalidade italiana, detido no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, foi julgado na 4ª Vara Criminal de Lisboa, juntamente com outros 3 réus estrangeiros, pela prática em co-autoria de crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelos arts.
21º, nº 1, e 24º, als. c) e f), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, vindo a ser condenado na pena de 11 anos de prisão, a que se seguiria a expulsão do território nacional por dez anos.
Inconformado, veio o arguido, representado por advogado constituído, interpor recurso do acórdão condenatório, onde suscitou diferentes questões que poderiam, em sua opinião, implicar a nulidade da decisão recorrida, ou, pelo menos, implicar a redução da pena de prisão que lhe foi aplicada (a fls. 740 a
751).
O Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, através de acórdão proferido em 22 de Junho de 1995 (a fls. 814 a 828).
Este acórdão foi notificado ao advogado constituído do arguido através de carta registada expedida em 27 de Junho de 1995 (cfr. fls. 831 vº). A fls.
839 encontra-se certidão do trânsito em julgado, verificado em 14 de Julho de
1995.
Os autos baixaram à 4ª Vara Criminal de Lisboa, tendo sido ordenada a liquidação das penas aos arguidos (a fls. 840).
Como consta de fls. 841 dos autos, foram remetidas em 28 de Setembro de
1995 'cópias dos acórdãos e das liq. das penas impostas aos arguidos', sendo solicitado ao respectivo estabelecimento prisional a notificação desses arguidos aí detidos.
A fls. 846, acha-se a certidão de notificação do referido arguido, estando aí aposta em língua italiana a frase 'Não compreendo tudo que aí está escrito', subscrita pelo notificado.
Acha-se igualmente um requerimento anexo, dactilografado e redigido em língua italiana, subscrito pelo referido A., datado do dia da notificação (3 de Outubro de 1995), em que o requerente solicita que seja ordenada a restituição de todas as suas pertenças, como sejam 'cheques bancários, passaporte, dinheiro,
óculos, etc. apreendidos ilegalmente pela polícia judiciária na data de 20 de Outubro de 1993', mencionando expressamente que 'com a sentença de 20 de Janeiro de 1995, passada em julgado em 13 de Julho, foi ordenada a restituição das supra-mencionadas pertenças'. Com este requerimento juntou vários documentos.
Em 16 de Outubro de 1995, o arguido A., através de requerimentos subscritos por outro advogado, veio:
- requerer ao Juiz da 4ª Vara Criminal que ordenasse a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça porque queria interpor recurso do acórdão que denegara o recurso da decisão condenatória para o Tribunal Constitucional e, simultaneamente, arguir uma nulidade referente à não tradução desse acórdão e do despacho de liquidação de penas (a fls. 854);
- pedir, através de requerimento endereçado ao Supremo Tribunal de Justiça, a tradução para língua italiana do acórdão condenatório, invocando que havia longos meses que o arguido não era contactado pelo defensor que o patrocinara na audiência de discussão e julgamento e que só em 10 de Outubro contactara o novo advogado signatário. Referiu que a não tradução desses documentos acarretaria a violação 'do art. 92º do Cód. Proc. Penal e art 6º-3-e da CEDH [Convenção Europeia dos Direitos do Homem]' (a fls. 854 a 858);
- interpor recurso de constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, indicando como objecto do recurso a questão de inconstitucionalidade dos arts. 410º, 2, e 3, e 433º do Código de Processo Penal (a fls. 859-860).
Juntou 2 documentos e procuração passada a favor do advogado signatário desse requerimento.
2. Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o representante do Ministério Público considerou que a tradução era inútil, visto já estar interposto recurso de constitucionalidade desse acórdão.
Através de despacho do relator, proferido a fls. 866 vº a 867 vº, foi indeferido o pedido de tradução do acórdão, considerando-se que, não só o efeito pretendido já fora alcançado (interposição do recurso de constitucionalidade), como também o arguido estava devidamente representado por advogado português e não se admitiu o recurso de constitucionalidade porque não tinha sido suscitada a questão de constitucionalidade pelo recorrente durante o processo, nem essa questão integrava o objecto do recurso. Este despacho foi notificado ao arguido por carta registada expedida em 10 de Novembro de 1995 (a fls. 867 vº).
O arguido apresentou reclamação em 24 de Novembro de 1996 nos termos do art. 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional e pediu a concessão de apoio judiciário. Por despacho de fls. 889 vº foi concedido o apoio judiciário solicitado. Foi ordenado que se aguardasse o trânsito em julgado de decisão de concessão de apoio, para ser despachada esta reclamação.
Entretanto, na mesma data, reclamou para a conferência do despacho do relator, na parte em que lhe indeferiu o pedido de tradução do acórdão que confirmou a decisão condenatória de primeira instância. Invocou nesse requerimento que:
-'o direito de acesso à Justiça consagrado no art. 20 da Lei Fundamental bem como o art. 92 do CPP e o art. 6 - nº 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem valem para todas as fases processuais pelo que é irrelevante estar representado por advogado português; este é que não tem o dever ou encargo de traduzir o que os Tribunais devem traduzir e notificar o arguido'.
-'está em causa o respeito pelos Direitos do Arguido e é o arguido o destinatário da decisão cujo alcance deve ser integral e na língua da sua nacionalidade - a língua italiana'. Invocou para fundamentar esta afirmação o disposto no art. 92º/2 do CPP e o art. 6º, nº 3, alínea e), da CEDH.
Concluiu pedindo que fosse proferido acórdão pela conferência no Supremo Tribunal de Justiça sobre a pretensão de tradução, deferindo-a, 'sob pena de violação do disposto no art. 20 da Constituição da República, art. 92 do CPP e do art. 6-3-e) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem' (a fls. 3 do apenso).
Através de acórdão proferido em 22 de Fevereiro de 1996, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou o despacho reclamado. Aí se considerou que o art.
92º, nº 2, só impunha a nomeação de intérprete quando houvesse de intervir no processo pessoa que não conhecesse ou dominasse a língua portuguesa. Ora, na presente fase processual, não intervinha o arguido no processo, mas o seu advogado, que é português. Por outro lado, o nº 3 do mesmo artigo só impõe a nomeação de intérprete quando se trate de traduzir documento em língua estrangeira - o que não era o caso. Concluiu-se nesse acórdão que 'nesta fase processual (na fase em que se impunha a assistência de intérprete este foi nomeado, sendo aí obedecido o art. 6º, nº 3, al. e) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), a falta de tradução do acórdão final não viola o referido art. 6º, nº 3, e), nem o art. 20º da C.R.P.'.
Inconformado com este acórdão, dele veio interpor recurso de constitucionalidade o arguido, indicando como objecto do recurso a
'inconstitucionalidade do art. 92 do CPP na interpretação expendida no Douto Acórdão porquanto viola o art. 20 da Constituição da República Portuguesa e o art. 6 nº 3 e) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem'. O recurso foi admitido por despacho de fls. 12.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Foi fixado prazo para alegações.
O recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
'1- O art. 92 do C P Penal impõe em todas as fases processuais um integral respeito pelos direitos do arguido quando este seja estrangeiro e não conheça ou domine a língua portuguesa.
2- No caso sub judice o recorrente é cidadão italiano que não alcança minimamente o teor do Douto Acórdão do STJ pelo que deveria o mesmo ter sido traduzido na língua italiana e só após tal tradução ser notificado ao recorrente.
3. O art. 92-2 do CPP quando entendido que perante notificação do Douto Acórdão do STJ o recorrente não intervém no processo e é desnecessária a tradução afasta direitos fundamentais, porquanto o arguido é o destinatário de tal decisão cujo alcance deve ser integral e na língua da sua nacionalidade - a língua italiana.
4- Nessa interpretação, o art. 92-2 do C P Penal é inconstitucional porquanto viola o art. 20 da Lei Fundamental e o art. 6º da CEDH'. (a fls. 17 dos autos)
O Ministério Público, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:
'1º O arguido não suscitou, de modo tempestivo e processualmente idóneo, a questão de inconstitucionalidade normativa que constitui objecto deste recurso, já que são intempestivos, quer a arguição da pretensa nulidade por falta de tradução do acórdão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, quer a subsequente reclamação para a conferência, deduzida nos termos do artigo
700º do Código de Processo Civil.
2º Não ofende qualquer norma ou princípio constitucional o entendimento de que o preceituado no nº 2 do artigo 92º do Código de processo Penal não impõe que seja traduzido no idioma da nacionalidade do arguido o acórdão condenatório que lhe é notificado, juntamente com o despacho que lhe liquidou a pena aplicada, estando o arguido devidamente representado por defensor de nacionalidade portuguesa a quem foi regular e previamente notificado o teor do aludido acórdão'. (a fls. 29 e 30)
O recorrente, notificado da questão prévia deduzida pelo Ministério Público, veio aos autos reiterar a sua convicção de que havia suscitado a questão de constitucionalidade tempestivamente (a fls. 32).
4. Foram corridos os vistos legais sobre a questão prévia.
II
5. No presente recurso está em causa o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 22 de Fevereiro de 1996, sobre reclamação do recorrente formulada nos termos do art. 700º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável supletivamente em processo penal.
Não está em causa, claro, uma reclamação pendente e ainda não processada, formulada ao abrigo do art. 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional.
6. O Ministério Público suscita a questão prévia de não conhecimento do recurso, baseado em diferentes fundamentos e pondo em destaque o
'carácter algo insólito' do processado (a fls. 23). Segundo ele, verifica-se o seguinte:
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que negou provimento ao recurso do acórdão condenatório proferido em 1ª instância transitou em julgado;
- houve uma arguição de nulidade por não tradução desse acórdão, apresentada quando foi feita a notificação pessoal do mesmo e do despacho de liquidação da pena, que foi intempestiva (cfr. art. 120º, nº 2, al. c), e 105º do Código de Processo Penal);
- é irrelevante o momento de constituição do novo advogado, visto o arguido ter estado sempre representado por advogado constituído;
- o arguido não suscitou no requerimento de fls. 855 e seguintes qualquer questão de inconstitucionalidade normativa;
- a arguição da inconstitucionalidade - reportada a actos processuais - foi feita intempestivamente, visto a reclamação para a conferência ter sido apresentada para além do prazo de 5 dias;
- a circunstância de o acórdão recorrido não ter reconhecido essa intempestividade, não impede o Tribunal Constitucional de sindicar aquela, para apurar se o recorrente suscitou de forma idónea e atempada a questão de constitucionalidade normativa;
- 'acresce, para terminar, que não [se] vê qual a utilidade do presente recurso de constitucionalidade, interposto de decisões posteriores ao trânsito em julgado do acórdão condenatório - não se vislumbrando qual a repercussão que poderá ter no normal andamento da causa a «tradução» de uma decisão judicial que, quando foi comunicada pessoalmente ao arguido, já tinha transitado em julgado, na sequência da notificação operada ao respectivo e legítimo defensor - e sem que o arguido haja, de algum modo, questionado a certidão que declara aquele acórdão transitado e o entendimento jurídico subjacente, segundo o qual, tratando-se de acórdão proferido em julgamento que teve lugar no Supremo Tribunal de Justiça, o respectivo trânsito se conta da notificação do dito acórdão ao defensor que haja alegado por escrito (cfr. fls. 831)'. (a fls. 27 dos autos)
7. Desde já se considera que merece atendimento a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público.
De facto, atentos os passos dos requerimentos do recorrente e do encadeado de decisões judiciais proferidas no Supremo Tribunal de Justiça, parece manifesto que o recorrente não suscitou durante o processo - isto é, antes de proferido o acórdão recorrido - uma questão de inconstitucionalidade normativa, de forma processualmente adequada.
O recorrente limitou-se a considerar que uma eventual decisão a denegar a pretensão de tradução em italiano do acórdão final violaria normas de direito interno (a norma nº 2 do art. 92º do Código de Processo Penal; a norma do art.
20º, nº 1, da Constituição) e normas de direito internacional (o art. 6º, nº 3, alínea e), da CEDH):
'... devendo em conformidade ordenar-se a tradução do acórdão deste Alto Tribunal, sob pena de violação do disposto no art. 20 da Constituição da República, art. 92 do CPP e do art. 6-3-e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem' (cfr. fls. 3 do apenso; cfr. requerimento de fls. 855 a 858).
Só no requerimento de interposição do recurso, a fls. 11 do apenso, formulou o recorrente uma questão de inconstitucionalidade normativa relativa ao art. 92º do Código de Processo Penal, na interpretação perfilhada nos autos, por contrária ao art. 20º da Constituição.
Ora, sem prejuízo da eventual procedência de outros fundamentos para o não conhecimento do objecto do recurso avançados pelo Ministério Público, conclui-se que falta o pressuposto de suscitação durante o processo de uma questão de inconstitucionalidade normativa atinente a uma norma que devesse ser aplicada nos autos, sendo certo que o Supremo Tribunal de Justiça não chegou a aplicar o nº 2 do art. 92º do Código de Processo Penal, por entender que não estavam reunidos nessa fase processual os pressupostos fácticos referidos na previsão normativa dessa norma (quem intervinha na fase do recurso era o advogado constituído e não o arguido), concluindo-se antes, no acórdão recorrido, que a não tradução desse acórdão não violava nem o art. 20º da Constituição, nem a indicada norma da Convenção Europeia.
III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder atendimento à questão prévia suscitada pelo recorrido e não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Julho de 1996
Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa