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Proc. nº 51/94
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Em processo de acidente de trabalho, intentado por morte de J..., procedeu-se à tentativa de conciliação entre a viúva do sinistrado, A ..., por si e em representação da filha menor do casal, S..., e a Companhia de Seguros B....
A autora reclamou para si uma pensão anual vitalícia no valor de 409.728$00, correspondente a 30% da retribuição base do sinistrado, com início em 15 de Julho de 1993 e até perfazer a idade de reforma por velhice (62 anos), altura em que o montante da pensão deveria passar a 546.304$00, correspondente a 40% da retribuição base do falecido, enquanto não fosse actualizável [Base XIX, nº 1, alínea a), da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 22/92, de 14 de Agosto]. Reclamou também uma prestação suplementar a pagar no mês de Dezembro de cada ano, de valor igual ao duodécimo da pensão anual que nesse mês fosse devida e que actualmente tem o valor de 34.144$00.
Para a sua filha menor reclamou a pensão anual e temporária de
273.152$00, acrescida da prestação suplementar de 12.763$00, a pagar no mês de Dezembro de cada ano, até perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior
[nos termos da Base XIX, nº 1, alínea c), da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de
1965, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 22/92, de 14 de Agosto].
A autora reclamou ainda as quantias de 260.833$00 e de 680$00, a título de despesas de funeral e transportes ao tribunal, respectivamente.
A seguradora, por intermédio do seu legal representante, aceitou pagar todas as quantias reclamadas.
2. O magistrado que presidiu ao acto nada opôs à conciliação, pelo que deu as partes por conciliadas. Contudo, a homologação judicial do acordo foi recusada por o magistrado ter entendido que a base XIX da Lei de 3 de Agosto de 1965, com as alterações introduzidas pela Lei nº 22/92, de 14 de Agosto, é inconstitucional.
São duas as inconstitucionalidades alegadas.
A primeira, formal, assenta nos seguintes fundamentos: por um lado, os artigos 54º, nº 5, alínea d), e 56º, nº 2, alínea a), da Constituição, impõem ao legislador que ouça os organismos representativos dos trabalhadores quando esteja em curso um processo de elaboração de legislação do trabalho; por outro, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 16/79, de 26 de Maio, entendeu-se ser legislação do trabalho também aquela que regula a matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Assim sendo, a Lei nº 22/92, pelo seu conteúdo, teria de ser considerada legislação laboral, com todas as consequências inerentes. Como este diploma não faz qualquer referência à constitucionalmente exigida participação dos organismos representativos dos trabalhadores na sua elaboração, presumiu o magistrado a sua não ocorrência, concluindo assim pela inconstitucionalidade das normas que o integram.
A segunda inconstitucionalidade, agora material, é invocada com a seguinte motivação: a nova redacção dada pela Lei nº 22/92 à Base XIX, nº 1, alínea a), da Lei nº 2127, porque permite um tratamento diversificado dos cônjuges das vítimas mortais de acidentes de trabalho conforme sejam do sexo masculino ou do feminino e simplesmente por referência à idade, viola o princípio da igualdade consagrado no nº 2 do artigo 13º da Constituição.
3. Do despacho que recusou a aplicação das normas tidas por inconstitucionais pelo magistrado judicial do Tribunal do Trabalho da Covilhã interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para este Tribunal, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição e 70º, nº
1, alínea b), e 72º, nºs 1, alínea a), e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou, no Tribunal Constitucional, as respectivas alegações, que concluiu do seguinte modo:
'1º. Tendo sido cumprido pela Assembleia da Repú-blica o dever de consulta constitucional, as alíneas a) e c) do nº 1 da Base XIX, da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, na redacção dada pela Lei nº 22/92, de 14 de Agosto, não sofrem de inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento legislativo.
2º. A proibição da discriminação em razão do sexo determinada no nº 2 do artigo 13º da Constituição não significa que não possa haver desigualdade de tratamento entre o homem e a mulher, sendo admissível e, até, necessário, estatuir normas que atendam às peculiaridades do sexo.
3º. Assim, a alínea a) do nº 1 da Base XIX da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 22/92, de 14 de Agosto, estabelecendo para o cônjuge 30% da remuneração base da vítima até perfazer a idade de reforma por velhice, que é, nos termos do artigo 88º do Decreto nº 45.266, de 23 de Setembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto Regulamentar nº 25/77, de 4 de Maio, de 62 anos para a mulher e de 65 anos para o homem, o que, embora desfavorecendo este último, é justificável pelas naturais diferenças entre ambos, não viola o princípio constante do artigo 13º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.'
4. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
A O objecto do recurso
5. O presente recurso foi interposto da decisão do magistrado judicial do Tribunal do Trabalho da Covilhã que recusou a aplicação das alíneas a) e c) do nº 1 da Base XIX da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, com a redacção introduzida pela Lei nº 22/92, de 14 de Agosto.
É o seguinte o teor dessas normas:
'1 - Se do acidente de trabalho ou da doença profissional resultar a morte, os familiares da vítima receberão as seguintes pensões anuais.
a) Cônjuge - 30% da remuneração base da vítima até perfazer a idade de reforma por velhice e 40% a partir daquela idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho;
b) (...)
c) Filhos, incluindo os nascituros, até perfazerem 18 ou
22 e 25 anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, e os afectados de doença mental que os incapacite para o trabalho - 20% da retribuição base da vítima se for apenas um,
40% se forem dois, 50% se forem três ou mais, recebendo o dobro destes montantes, até ao limite de 80% da retribuição da vítima, se forem órfãos de pai e mãe;'
São duas as questões de inconstitucionalidade suscitadas neste recurso: uma, comum a ambas as alíneas, de natureza formal; outra, apenas referente à alínea a), de natureza material.
B A questão de inconstitucionalidade formal
6. Começando pela análise da alegada inconstitucionalidade formal das normas transcritas, entende a decisão recorrida que a regulamentação em causa deve ser considerada como legislação do trabalho, para os efeitos das normas constitucionais que impõem ao legislador o dever de audição das organizações dos trabalhadores [artigos 54º, nº 5, alínea d), e 56º, nº 2, alínea a), da Constituição). Como no texto da Lei nº 22/92 nada se diz em relação ao cumprimento desse dever, presumiu o magistrado judicial que a referida audição não se realizou, dando tal omissão origem a uma inconstitucionalidade formal ou procedimental que afecta todas as normas que integram aquele diploma.
Trata-se, porém, de uma conclusão que se apoia numa presunção que, por não ser juris et de jure, poderá ser ilidida, se for devidamente provado que a necessária audição das organizações representativas dos trabalhadores durante processo legislativo teve efectivamente lugar.
7. Na proposta de Lei nº 7/VI (publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 10, de 8 de Janeiro de 1992), que veio a converter-se na Lei nº 22/92, o Governo afirmou, na respectiva moção, que se visava, no que respeitava à Base XIX da Lei nº 2127, proceder às alterações tornadas necessárias pela declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da alínea b) do nº 1 dessa Base [Acórdão nº 191/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12º (1988), p. 239 e ss.].
No parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais Direitos, Liberdades e Garantias, refere-se que: 'nos termos e para os efeitos dos artigos
54º, nº 5, al. d) e 56º, nº 2, al. a) da Constituição da República Portuguesa, do artigo 143º do Regimento da Assembleia da República e dos artigos 3º a 6º da Lei nº 16/79, de 26 de Maio, procedeu-se à discussão pública do diploma e, findo o prazo, não foi recebida qualquer sugestão ou parecer.' (Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 31, de 8 de Abril de 1992). Dada a regularidade procedimental, aquela comissão parlamentar concluiu que a proposta preenchia os requisitos regimentais e constitucionais para ser apreciada em plenário. A idêntica conclusão se chegou, aliás, no parecer da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família (Diário da Assembleia da República, cit.).
Assim sendo, tem-se por verificado o cumprimento do dever de consulta às organizações representativas dos trabalhadores, razão por que não ocorre a alegada inconstitucionalidade formal ou procedimental. Fica, deste modo, ilidida a presunção que fundamentou o entendimento da inconstitucionalidade formal das normas constantes da Lei nº 22/92.
C A questão de inconstitucionalidade material
8. No que concerne à inconstitucionalidade material da alínea a) do nº 1 da Base XIX da Lei nº 2127 (com a nova redacção da Lei nº 22/92), entendeu o magistrado do Tribunal do Trabalho da Covilhã que a norma '... permite um tratamento diversificado dos cônjuges das vítimas mortais de acidentes de trabalho conforme sejam do sexo masculino ou feminino e simplesmente por referência à idade [isto é, enquanto a cônjuge viúva adquire o direito à pensão correspondente a 40% da retribuição base da vítima a partir dos
62 anos de idade, o cônjuge sobrevivo apenas adquire o direito a tal pensão a partir dos 65 anos de idade (artigo 88º do Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência, aprovado pelo Decreto nº 45.266, de 23 de Setembro de
1963, na redacção do artigo 1º do Decreto Regulamentar nº 25/77, de 4 de Maio)], também viola o princípio da igualdade consignado no nº 2, do artigo 13º, da Constituição da República Portuguesa.'
9. Importa, preliminarmente, salientar dois aspectos.
A diferença de tratamento entre viúvo e viúva de sinistrado não resulta directamente da alínea a) do nº 1 da Base XIX, mas sim da sua conjugação com o artigo 88º do Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência.
Acontece, porém, que tal diferenciação em razão da idade está em vias de desaparecer, na medida em que o Decreto-Lei nº 329/93, de 25 de Setembro, veio fixar nos 65 anos de idade o momento em que tanto os homens como as mulheres adquirem o direito à reforma por velhice. Contudo, tal equiparação está a ser introduzida de forma faseada: nos termos do artigo 103º, nº 2, do Decreto-Lei nº 329/93, em 1994, a idade da reforma para a mulher foi fixada em
62 anos e seis meses '... acrescentando-se posteriormente, por cada ano civil, o período de 6 meses, à idade fixada para o ano anterior'. Constata-se, portanto, que a equiparação é a solução que, a breve trecho, será adoptada.
Dever-se-á, no entanto, averiguar se o diferente tratamento entre homens e mulheres, resultante da articulação das duas normas cuja aplicação foi recusada pelo magistrado judicial da Covilhã, afronta o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, nº 2, da Constituição.
10. No nº. 2 do artigo 13º da Constituição enumeram-se, exemplificativamente, factores em função dos quais é proibido privilegiar ou prejudicar qualquer cidadão em relação aos outros. Quando uma norma estabelecer uma diferenciação fundada num desses factores - entre os quais se inclui, justamente, o sexo -, poder-se-á em princípio, concluir que se está perante uma discriminação constitucionalmente inadmissível. Contudo, se apurar que a essa discriminação subjazem razões que se prendem, também elas, com o princípio da igualdade, entendido agora na dimensão que impõe tratamento diverso de realidades igualmente diferentes, então o juízo a fazer terá de ser outro.
Como se escreveu já no Parecer nº 1/76 da Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 1º (19) 5 a 18), '... a semelhança das situações da vida nunca pode ser total ...', sendo, assim, necessário '... distinguir quais os elementos de semelhança que têm de registar-se - para além dos inevitáveis elementos diferenciadores - para as duas situações devam dizer-se semelhantes em termos de merecerem o mesmo tratamento jurídico'. Importa, portanto, inquirir se as diferenças entre homem e mulher justificam objectivamente o diferente tratamento dado pelas normas cuja inconstitucionalidade se analisa.
Sociologicamente tem-se constatado que, no nosso país, sobre a mulher que trabalha fora de casa continua a impender, por via de regra, a obrigação de realizar as chamadas tarefas domésticas, bem como as associadas à maternidade. Haverá mesmo uma contribuição importante para a economia nacional, por força de as mulheres portuguesas continuarem a trabalhar durante os períodos mais essenciais da maternidade e da assistência à família (cf. Ana Cardoso, Trabalho feminino em Portugal: valorização da mulher na economia ou valorização da economia com a mulher, 1992). Tais circunstâncias consubstanciam uma sobrecarga de trabalho, que acarretará inelutavelmente um desgaste acrescido que os homens, pelo menos com estes fundamentos, de um modo geral não sofrem.
Detectada a possibilidade de uma diferença objectiva típica, pode afirmar-se que a solução do problema da igualdade poderá ser encarada como uma compensação do desfavor social, económico, sexual e de cidadania em que as mulheres se encontram por contraposição aos homens (cf. Teresa Beleza, 'Teoria Feminista do Direito, uma nova disciplina, uma nova literatura, uma nova forma de pensar', Direito e Sociedade, nº 5, Dezembro de 1989).
Sendo, neste sentido, diferentes os papéis sociais desempenhados pelos dois sexos, é razoável concluir que poderá ser necessário o estabelecimento de medidas compensadoras da desigualdade ou da descriminação, de verdadeira descriminação positiva, as quais, ainda que geradoras '... momentaneamente de um desequilíbrio, não criam um privilégio em função do sexo'
[Leonor Beleza, 'O Estatuto das Mulheres na Constituição', Estudos Sobre a Constituição, 1º vol. (1977), p. 69].
Assim, embora os meios escolhidos para compensar as diferenças de posição entre homens e mulheres não tenham de conduzir, necessariamente e sempre, à diferenciação das idades de reforma, é ainda justificável a essa luz a norma que vimos analisando.
11. Por outro lado, como se salienta no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 609/94, D.R., II Série, de 4 de Janeiro de 1995, a propósito de uma questão substancialmente idêntica à aqui suscitada, '... a interpretação normativa professada (...) contraria a natureza das coisas susceptibilizando efeitos desautorizantes da igualdade que se pretende acautelar: ao recusar à suposta beneficiária o direito a receber a pensão acordada com a seguradora com o argumento de que se fosse homem - se fosse pai da vítima e não mãe da vítima - ainda não tinha alcançado o patamar etário legalmente exigido para a titularidade do direito à pensão, o intérprete está a gerar efeitos perversos em nome da igualdade, não reconhecendo um direito a quem é dele presuntivo titular para não discriminar relativamente a quem dele ainda não é titular'.
Na verdade, ao retirar esta consequência do princípio da igualdade, está o intérprete a nivelar duas situações, sem que com tal equiparação obtenha qualquer benefício, o que assenta numa deficiente compreensão do referido princípio. Se não concorressem todas as circunstâncias que permitem a detecção da diferença objectiva que fundamenta o tratamento diferenciado, inconstitucional seria a parte da norma que estabelece o limite etário dos homens, porque superior ao estabelecido para as mulheres (a nivelação seria, assim, feita pela solução mais favorável).
12. Com estes fundamentos, e de acordo com a orientação que tem vindo a ser seguida por este Tribunal (vide, para além do Acórdão supra citado, os Acórdãos inéditos nºs 81/95 e 109/95 do Tribunal Constitucional - que decidem também, e no sentido aqui adoptado, sobre o problema da inconstitucionalidade formal da Base XIX da Lei nº 2127 -; e ainda, sobre o princípio da igualdade, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 186/90, 187/90 e 188/90, D.R., II Série, de 12 de Setembro de 1990), não há no presente caso violação do princípio da igualdade.
III Decisão
13. Nestes termos e pelas razões expostas, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o julgamento em matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 22 de Maio de 1996
Maria Fernanda Palma
Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
Luis Nunes de Almeida