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Proc. nº 607/92
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. J... foi acusado pelo Ministério Público na comarca
de Aveiro do cometimento do crime de deserção, previsto e punível nos termos do
disposto nos artigos 133º e 134º do Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de
1943 (Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante), por se ter recusado, no
dia 25 de Agosto de 1990, a embarcar, sem justificação, no navio de marinha
mercante 'Águas Santas', em que estava matriculado com a categoria profissional
de pescador. Este navio era propriedade da empresa de pesca 'P..., SA', e
estava, na altura, atracado no Porto de Pesca de Aveiro, devendo iniciar a
viagem nesse mesmo dia.
2. Findo o debate instrutório, o Juiz do 3º Juízo do
Tribunal Judicial da comarca de Aveiro, por despacho de 26 de Junho de 1992,
rejeitou a acusação do Ministério Público, aduzindo em síntese, os seguintes
argumentos:
a - As normas incriminadoras do crime de deserção constantes do Decreto-Lei
nº 33.252 devem ter-se por revogadas, segundo o disposto no artigo 6º do
Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, diploma que aprovou o Código Penal e
que revogou direito anterior.
b - As referidas normas incriminadoras ofendem os princípios constitucionais
de direito laboral, não podendo, por isso, ser aplicadas, por força do artigo
207º da Constituição.
c - Tais normas são presumivelmente tidas como inexistentes ou revogadas
pelo próprio legislador, que nunca considerou objecto de amnistia os ilícitos
provenientes da sua infracção, tendo amnistiado, porém, a deserção dos
militares.
2.1. O primeiro dos argumentos do despacho explicita--se do
seguinte modo:
As normas do Decreto-Lei nº 33.252 que prevêem o crime de
deserção 'devem ter-se por revogadas' - isto é, implicitamente revogadas, já que
não o foram explicitamente, pelo Decreto-Lei nº 400/82 - porque a conduta que
contemplam apenas 'pode ser apreciada em sede de disciplina laboral, mas não em
sede criminal'.
2.2. O segundo argumento apoia-se nos seguintes factos:
'a - Em 1943, a jurisdição do trabalho era quase insignificante, sendo a
função do trabalhador claramente desprotegida perante a figura de desertor
lançada contra o marujo que não comparecesse ao bota-fora do navio.
b - Os transportes marítimos não são hoje tão essenciais e
insubstituíveis como nessa data.
c - As normas incriminadoras sob análise ofendem princípios básicos dos
direitos dos trabalhadores e concernentes à actividade laboral.
d - Factos como os indicados podem ser sujeitos a censura, de acordo com
as regras que disciplinam a prestação de trabalho, mas não podem recair sob
censura criminal.'
2.3. O terceiro argumento reforçava os dois anteriores, sendo
apresentado como mera observação suplementar.
2.4. Em conclusão, porém, a decisão ora recorrida é a
seguinte:
'Pelas razões sumariamente alinhadas, não recebo a acusação, por
entender que os factos indiciados não merecem ser criminalizados e que os
normativos - arts. 133º e 134º (isto é, 132º e 133º, visto que a referência ao
artigo 134º, que contempla uma infracção do capitão do navio, se deveu a
manifesto lapso), do D.L. nº 33.252 de 20.11.48 -ofendem os princípios
constitucionais insertos na C.R.P. - e nas leis ordinárias - concernentes ao
ordenamento jurídico laboral'.
3. É desta decisão, que 'desaplicou' as normas sub judicio,
que vem o presente recurso, interposto, obrigatoriamente, pelo Ministério
Público, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a), e 3, da
Constituição e artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
4. O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
veio, nas suas alegações, considerar o seguinte:
a) Objecto do recurso são os artigos 132º e 133º e não os
artigos 133º e 134º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, porque o
arguido é pescador e não capitão de navio, tendo havido manifesto lapso na
acusação, no despacho recorrido e no requerimento de interposição de recurso.
A norma incriminadora cuja inconstitucionalidade se discute
é, assim, a constante do artigo 132º, que estabelece que 'É considerado desertor
o tripulante que, não havendo motivo justificado, deixar partir o navio para o
mar sem embarcar e, bem assim, aquele que sem autorização superior abandonar o
serviço de bordo durante cinco ou mais dias consecutivos' e não a norma do
artigo 134º, que determina que 'O capitão que, sem necessidade absoluta e
provada, quebrar o seu ajuste e deixar o seu navio antes de ser substituído será
punido com prisão simples até dois anos ...'.
b) Por outro lado, o Ministério Público levantou a questão
prévia da falta de interesse processual no conhecimento do recurso. Entendeu
que, tendo o tribunal recorrido considerado revogadas as normas referidas pelo
diploma que aprovou o Código Penal, fosse qual fosse o sentido da decisão a
tomar pelo Tribunal Constitucional, ela nunca seria susceptível de alterar a
decisão de não recebimento da acusação. Assim, 'se as normas forem julgadas
inconstitucionais, persistirá na íntegra tal decisão; se, ao invés, forem
julgadas não inconstitucionais, manter-se-á igualmente a decisão de rejeição da
acusação, embora agora limitada ao primeiro fundamento invocado, o da revogação
das normas incriminadoras pelo diploma que aprovou o novo Código Penal (e pesem
embora as reservas que este fundamento possa suscitar, pois tais normas não
constam do elenco do nº 2 do artigo 6º, e o nº 1 deste preceito só revogou o
Código Penal de 1886 e todas as disposições legais que prevêem e punem factos
incriminados pelo novo Código Penal, e a deserção de tripulantes de navios
mercantes não é incriminada pelo novo Código)'.
c) Para a hipótese de não ser dado atendimento à questão
prévia, o Ministério Público tomou posição quanto ao mérito do recurso,
pronunciando-se pela inconstitucionalidade das normas em causa, no segmento que
vem questionado, por violação do artigo 13º da Constituição.
Para fundamentar a violação do artigo 13º da Constituição, o
Ministério Público observa que, 'embora se aceite que o trabalho de bordo, pelas
suas características específicas, deva ter um regime próprio, no caso deste
processo, dadas as funções do réu, não tem fundamento uma diferença de
tratamento tão gritante em relação aos trabalhadores em geral'. E conclui que,
'Com efeito, se a marinha mercante tem natureza de serviço público, já é
duvidoso que a tenha a actividade industrial 'pesca', a que se dedicava o navio
a cuja tripulação pertencia o arguido, cuja função era de pescador'.
d) Finalmente, o Ministério Público refere-se a dois
processos pendentes no Tribunal Constitucional (no âmbito dos quais foram já
proferidos os acórdãos nºs 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República,
II Série, de 31 de Março de 1994), nos quais é suscitada a questão da
inconstitucionalidade das mesmas normas, invocando-se a violação do artigo 53º
da Constituição. O Ministério Público considera que não há violação do artigo
53º, pois admite que, no caso em apreço, haja uma falta ou um incumprimento do
contrato por parte do trabalhador 'que, eventualmente, até pode constituir justa
causa de despedimento sem que isso necessariamente viole o artigo 53º da
Constituição'. Conclui, por conseguinte, que 'o que se acha desproporcionado é a
gravidade das consequências que para o trabalhador advêm desse incumprimento, ou
seja, o incumprimento consubstanciar a prática de um crime'.
O recorrido, por seu turno, não apresentou alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Fundamentação
A - O interesse no conhecimento do recurso
5. No Tribunal Constitucional, foi levantada pelo Ministério
Público, nas suas alegações, a questão prévia da falta de interesse processual
no conhecimento do objecto do recurso. Tal questão é, porém, apresentada pelo
Ministério Público a partir de uma interpretação da articulação entre
fundamentos e decisão, segundo a qual o despacho que rejeitou a acusação do
Ministério Público o fez por dois motivos explicitamente autónomos: a revogação
dos artigos 132º e 133º pelo Decreto-Lei nº 400/82, que aprovou o Código Penal,
e a inconstitucionalidade daquelas normas por contrariarem os princípios de
direito do trabalho.
Todavia, embora a decisão referida invoque as duas razões não
o faz como se elas constituíssem alternativas absolutamente autónomas nem
fundamenta directa e explicitamente o não recebimento da acusação nessas razões
individualizadas. Com efeito, na decisão recorrida, o Juiz apenas afirma que,
'Pelas razões sumariamente alinhadas, não recebo a acusação, por entender que os
factos indiciados não merecem ser criminalizados e que os normativos - arts.
133º e 134º do D.L. nº 33.252 de 20.11.43 - ofendem princípios constitucionais
insertos na C.R.P. - e nas leis ordinárias - concernentes ao ordenamento
jurídico laboral'.
Na realidade, este método de alinhar razões, não as
individualizando, é compreensível, pois a revogação a que o Juiz se refere na
fundamentação não é uma revogação explícita das referidas normas, mas apenas uma
revogação implícita, derivada, alegadamente, da incorrecta qualificação daquela
matéria como criminal. A revogação resulta, assim, em face dos princípios
orientadores do Código Penal de 1982, da mera constatação de que as situações
jurídicas em causa não podem ser tuteladas pelo direito criminal, por força dos
princípios gerais que orientam este ramo do direito, bem como dos princípios
vigentes em matéria laboral.
Isso é ilustrado pelas seguintes afirmações, constantes da
decisão recorrida:
'Entendemos que as normas incriminadoras da presente acusação
ofendem princípios básicos dos direitos dos trabalhadores e concernentes à
actividade laboral.
Factos como os indiciados podem ser sujeitos a censura, de acordo
com as regras que disciplinam a prestação de trabalho, mas não podem recair sob
censura criminal.
Não podem os tribunais aplicar normas que ofendam os princípios
consignados na Constituição - art. 207º'.
A invocação do artigo 207º como referência exclusiva do
juízo de inconstitucionalidade é, na realidade, uma mera decorrência da
inadequação criminal daquelas situações jurídicas laborais.
Por tudo isto, a interpretação do Ministério Público
ultrapassa o sentido do texto, atribuindo-lhe um teor analítico que ele não
contém. O despacho é um texto sintético em que se associam razões para uma
conclusão única de inconstitucionalidade. O interesse no conhecimento do recurso
persiste, na medida em que não se extrai inequivocamente do despacho que a
revogação das normas em crise se autonomiza da sua inconstitucionalidade em face
dos princípios constitucionais de direito criminal e de direito do trabalho.
B - A inconstitucionalidade dos artigos 132º e 133º do Decreto-Lei nº 33.252
6. A questão da inconstitucionalidade do artigo 132º do
Decreto-Lei nº 33.252 foi já analisada pelos acórdãos nºs 634/93 e 650/93,
proferidos pela 2ª Secção deste Tribunal e precedentemente citados.
Tais acórdãos apenas se debruçaram sobre o artigo 132º
que é o preceito primário, que contém a norma incriminadora, e não também sobre
o artigo 133º, que é o preceito secundário, que contém a norma sancionatória.
Todavia, o juízo de inconstitucionalidade que proferiram atingiu toda a norma
penal - o seu preceito primário e o seu preceito secundário. Na verdade, os dois
acórdãos citados julgaram inconstitucional aquela norma penal, na parte em que
estabelece a punição como desertor daquele que, sendo tripulante de um navio, o
deixe, sem motivo justificado, partir para o mar sem embarcar e mesmo se esse
tripulante, mercê da categoria profissional que tenha, não esteja, quanto a essa
categoria, directamente ligado ao desempenho de funções conexas com a
manutenção, segurança e equipagem da embarcação.
O juízo de inconstitucionalidade constante dos referidos
arestos fundamenta-se na violação do princípio da subsidiariedade do direito
penal (ou princípio da máxima restrição das penas) - considerado uma aplicação
à política criminal dos princípios constitucionais da justiça e da
proporcionalidade (aflorado, este, no artigo 18º, nº 2, da Constituição), 'ambos
decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de direito democrático,
consignada no artigo 2º da Lei Fundamental'.
A violação deste último princípio resulta, segundo a
doutrina exposta nos dois acórdãos, de três motivos:
a) A incriminação não é claramente necessária para assegurar a navegabilidade
da embarcação, tendo em conta as funções atribuídas ao arguido;
b) A incriminação constitui um recurso a meios desproporcionadamente gravosos
para permitir um regular desenvolvimento da actividade económica da pesca de
longo curso;
c) A incriminação consta de um diploma pré‑constitucional, elaborado à luz
de valores evidentemente contraditórios com os consignados na Constituição.
7. A violação do artigo 18º, nº 2, da Constituição,
fundamenta-se, igualmente, numa razão jurídica prévia que o despacho recorrido
intuiu, embora não explicitasse totalmente: a natureza meramente laboral e não
criminal das situações jurídicas reguladas - de facto, trata-se de um
tripulante, cujas funções não são relacionadas com a segurança do navio -, que
torna constitucionalmente ilegítima a sua cobertura pelo direito penal. Na
verdade, a delimitação das matérias que podem ser envolvidas pelo direito penal
é uma consequência de princípios constitucionais de política criminal,
delimitadores da infracção penal em sentido material, e não uma pura decisão
arbitrária do legislador ordinário.
O que justifica a inclusão de certas situações no
direito penal é a subordinação a uma lógica de estrita necessidade das
restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de penas públicas
(artigo 18º, nº 2, da Constituição). E é também ainda a censurabilidade imanente
de certas condutas, isto é, prévia à normativação jurídica, que as torna aptas a
um juízo de censura pessoal.
Em suma, é, desde logo, a exigência de dignidade
punitiva prévia das condutas, enquanto expressão de uma elevada gravidade ética
e merecimento de culpa (artigo 1º da Constituição, do qual decorre a protecção
da essencial dignidade da pessoa humana), que se exprime no princípio
constitucional da necessidade das penas (e não só da subsidiariedade do direito
penal e da máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em sentido estrito,
a ineficácia de outro meio jurídico), que é posta em causa pela norma
incriminadora contida nos artigos 132º e 133º do C.P.D.M.M., pelo menos na
parte em que não há adstrição directa do tripulante à manutenção, segurança e
equipagem do navio.
Se o legislador atribuísse responsabilidade penal aos
devedores, por mero incumprimento de dívidas em relações jurídicas de direito
privado, tutelando penalmente uma relação de crédito, violaria certamente a
Constituição, porque atribuiria uma tutela excessivamente intensa a direitos
relativos e faria recair uma sanção penal sobre situações que não suscitam uma
reprovação ética geral de qualidade idêntica à suscitada pela generalidade das
condutas criminosas.
Também o recurso a penas criminais para sancionar
infracções puramente disciplinares será ilegítimo, na medida em que não é função
do direito penal tutelar bens jurídicos funcionais ou elementos de uma ordem
jurídica puramente interna. Só bens jurídicos de uma ordem jurídica externa, que
exprimem os fins essenciais da sociedade politicamente organizada, podem ser
objecto do direito penal.
Consequentemente, onde não haja uma directa afectação
pelo comportamento do membro da tripulação de bens jurídicos essenciais, numa
dimensão social externa, mas se atinja apenas a dimensão jurídica interna da
relação juslaboral, não se justificará a intervenção do direito penal.
III
Decisão
8. Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma resultante da
conjugação dos artigos 132º e 133º do Código Penal e Disciplinar da Marinha
Mercante, aprovado pelo Decreto-Lei nº 33.252 de 20 de Novembro de 1943, na
parte em que dela resulta a punição como desertor daquele que, sendo tripulante
de um navio (e não desempenhando funções directamente relacionadas com a
manutenção, segurança e equipagem do mesmo navio) e sem motivo justificado, o
deixe partir para o mar sem embarcar, por violação dos princípios da
subsidiariedade do direito penal e da necessidade da pena (artigos 2º e 18º, nº
2, da Constituição);
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e
confirmar a decisão recorrida na parte respeitante à questão de
constitucionalidade suscitada.
Lisboa, 20 de Abril de 1995
Ass) Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vitor Nunes de Almeida (com a declaração de que não subscrevo a afirmação de que se trata de uma relação de 'natureza
meramente laboral')
Luis Nunes de Almeida