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Proc. nº 359/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. D... e outros interpuseram, no Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação, com pedido de suspensão de eficácia, do acto administrativo definitivo e executório constante do Decreto--Lei nº 137/85, de 3 de Maio, que procedeu à extinção da C..., E.P., invocando, além do mais, a inconstitucionalidade material da lei aplicada e vícios de forma, de violação de lei constitucional, desvio de poder, violação de lei ordinária e abuso de poder.
Após resposta do Primeiro-Ministro, como autoridade recorrida, seguiram-se alegações de ambas as partes.
Citada a C ... esta apresentou contestação, concluindo, tal como o Primeiro-Ministro, pela legalidade e constitucionalidade do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio.
Por acórdão de 26 de Janeiro de 1993, a
2ª Subsecção da 1ª Secção do S.T.A. negou provimento ao recurso.
Inconformados, os recorrentes interpuseram recurso dessa decisão para o Pleno do S.T.A., o qual, por sua vez, veio a confirmar a decisão recorrida, pelo acórdão de 2 de Maio de 1995.
2. É deste aresto que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, nos termos do artigo 70º, nº 1, alíneas b) e f), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
Pretendem os recorrentes ver apreciadas por este Tribunal as ilegalidades:
1. Do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, por determinar a extinção por liquidação de uma empresa pública com violação do disposto no artigo 37º, nº 1 do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, lei com valor reforçado já que contém as bases gerais das empresas públicas (cfr. artigo 115º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa e nº 1 do preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 260/76).
2. Do Decreto-Lei nº 137/85 por revestir forma diversa da prescrita no artigo 38º do citado Decreto-Lei nº 260/76.
E para conhecimento das eventuais inconstitucionalidades:
3. Do artigo 45º, nº 1 do Decreto--Lei nº 260/76 e do artigo
10º, nº 4 do Decreto-Lei nº 137/85, por ofensa do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa.
4. Do Decreto-Lei nº 137/85 por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
5. Do Decreto-Lei nº 137/85 por violação do artigo 63º da Constituição da República Portuguesa.
6. Do Decreto-Lei nº 137/85, por violação do princípio da protecção da confiança, corolário do princípio do estado de direito consagrados nos artigos 2º e 266º da Constituição da República Portuguesa.
7. Do Decreto-Lei nº 137/85, por ofensa do disposto no artigo
72º da Constituição da República Portuguesa.
8. Do artigo 4º, nº 1, b) do Decreto-Lei nº 137/85, por ofensa do disposto no artigo 18º, nº 3, 20º e 168º, 1.b) da Constituição da República Portuguesa.
9. Do Decreto-Lei nº 137/85, por ofensa dos artigos 115º, 201º e 202º da Constituição da República Portuguesa.
Admitido o recurso, recorrentes e autoridade recorrida juntaram alegações.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
4. Invocam os recorrentes a pretensa inconstitucionalidade e ilegalidade de diversos preceitos, quer do Decreto-Lei nº 137/85, quer do Decreto-Lei nº 260/76, indicados. Importa, pois, e antes de mais, delimitar o objecto do presente recurso, por forma a determinar quais as normas efectivamente susceptíveis de conhecimento no âmbito do mesmo.
Invocam os recorrentes a pretensa inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 137/85, na sua totalidade, por violação dos artigos 13º, 63º, 2º e 266º, 72º, e ainda 115º, 201º e 202º da Constituição. E, bem assim, do artigo 45º do Decreto-Lei nº 260/76.
Contudo, o recurso de constitucionalidade
(cfr. artigo 70º, nº 1 da LTC) tem por objecto normas efectivamente aplicadas pelo tribunal a quo. E, in casu, nem todas as normas cuja inconstitucionalidade se invoca foram efectivamente aplicadas.
Na verdade, nos presentes autos, não está em causa a apreciação de normas respeitantes, nomeadamente, aos complementos de reforma, às indemnizações por despedimento, ao pagamento rateado aos credores e
às prestações da segurança social, sendo certo, até, que a aplicação de algumas dessas normas seria, nalguns casos, incompatível com a aplicação de outras
(v.g., indemnização por despedimento ou complemento de reforma).
De resto, quanto a tais questões, sempre os recorrentes teriam de recorrer à jurisdição comum - cível ou laboral - para as fazer valer e apreciar, pelo que não podem estar em causa neste processo.
5. De facto, nos presentes autos, apenas está em causa a impugnação contenciosa do acto administrativo de extinção da C..., E.P.. E só, portanto, da norma directamente atinente a essa extinção se há-de tomar conhecimento.
O que significa que ficam fora do âmbito deste recurso todas as restantes normas daquele diploma, apenas havendo que conhecer-se da norma constante do seu artigo 1º.
Ora, quanto a esta, invocam os recorrentes os seguintes vícios:
a) violação de uma lei de valor reforçado
(o Decreto-Lei nº 260/76, que contém as bases gerais das empresas públicas);
b) utilização de uma forma diversa da prevista na lei para operar a extinção, com a consequente inconstitucionalidade material, por excesso ou desvio do poder;
c) ofensa da reserva de competência da Assembleia da República, originando inconstitucionalidade orgânica, porquanto, ao extinguir uma empresa pública por decreto-lei, o Governou alterou a forma prevista na lei para essa extinção.
São, pois, apenas estas, as questões objecto do presente recurso.
6. Deve salientar-se, antes de mais, que este Tribunal já se debruçou sobre a norma em causa no Acórdão nº 26/85,
(publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 7 e segs.), em sede de fiscalização preventiva, tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade.
7. Passando a analisar a primeira questão
- a da eventual violação de uma lei de valor reforçado -, partem os recorrentes do pressuposto de que o Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, por conter as bases gerais do regime das empresas públicas, possui a qualificação de lei de valor reforçado:
Tendo em conta a natureza do Decreto-Lei nº 260/76, diploma que contém as bases gerais das empresas públicas, a desconformidade do Decreto-Lei nº 137/85, nomeadamente do seu artigo 1º, nº 1. com o citado artigo 37º, traduz uma violação de lei com valor reforçado (cfr. artigo 115º, nº 2, 201º nº 1 c) e
280º, nº 2. a) e d) da Constituição da República).
E acrescentam, nas suas conclusões:
O acto de extinção de um empresa pública é um acto administrativamente vinculado que tem de respeitar o quadro normativo do Decreto-Lei nº 260/76, diploma que, por conter as bases gerais das empresas públicas, tem a natureza de lei reforçada.
8. No seu artigo 115º, nº 2, a Constituição apenas menciona como leis de valor reforçado as leis orgânicas; é, todavia, de entendimento pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência, designadamente deste Tribunal, que outros actos legislativos podem possuir esse valor reforçado.
Sobre a questão da definição de lei de valor reforçado, já este Tribunal teve, efectivamente, oportunidade de se pronunciar, nomeadamente no Acórdão nº 358/92, (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º vol., págs. 109 e segs.), no qual se pode ler, nomeadamente:
Com efeito, na ausência de uma definição expressa, o assinalado valor reforçado há-de decorrer da conjugação de dois critérios essenciais, o da sua proeminência funcional enquanto funda- mento material da validade normativa de outros actos e o da sua força formal negativa, enquanto portadora de uma especial protecção face aos efeitos derrogatórios produzidos por lei poste- rior. Um e outro critério deverão operar sempre em função dos enunciados linguísticos da própria Constituição.
Na verdade, não resulta de qualquer disposição expressa do texto constitucional uma definição do conceito de lei de valor reforçado, pelo que têm sido a doutrina e a jurisprudência constitucional a procurar fornecer os critérios ou elementos caracterizadores e distintivos para a determinação desse tipo de leis.
Gomes Canotilho (Direito Constitucional,
5ª ed., Coimbra, 1991) e Jorge Miranda (Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990), nomeadamente, utilizando diversos critérios, procedem à sistematização desse conceito, como, aliás, se dá conta no citado Acórdão 358/92 e, mais recentemente, no Acórdão nº 365/96 (publicado no Diário da República, II Série, nº 108, de 9 de Maio de 1996).
Neste último aresto, concluiu-se:
Assim, quer se assente o traço característico das «leis com valor reforçado» na posição de proeminência de natureza funcional traduzida numa específica força formal ou se parta da ideia de que se está perante leis conformadoras da produção de outras leis ou constitutivas dos seus limites, tais leis, para além de certas exigências procedimentais na sua aprovação, dispõem de uma 'superioridade relativa' em face de outros actos legislativos, derivada do seu conteúdo que é condicionante material da normação a estabelecer pelos diplomas a publicar na sua directa dependência.
9. No entanto, seja qual for a natureza das leis de valor reforçado e independentemente da questão de saber se as leis de bases devem integrar aquele conceito, a verdade é que nunca o artigo 1º do Decreto-Lei 137/85 poderá ser tido por ilegal, por contradizer o disposto no artigo 37º do Decreto-Lei nº 260/76, ainda que este deva ser tido como uma lei de bases.
Vejamos porquê.
Dispõe o citado artigo 37º pela forma seguinte:
1. A extinção de uma empresa pública pode visar a reorganização das actividades desta, mediante a sua cisão ou a fusão com outras, ou destinar-se a pôr termo a essa actividade, sendo então seguida da liquidação do respectivo património.
2. As formas de extinção de empresas públicas são unicamente as previstas neste capítulo, não lhes sendo aplicáveis as regras sobre dissolução e liquidação de sociedades nem os institutos da falência e insolvência.
O nº 1 do Decreto-Lei 137/85 dispõe, por sua vez:
É extinta a C..., EP, que nesta data entra em liquidação.
A alegada violação da lei de valor reforçado, que os recorrentes pretendem ver reconhecida, consubstanciar-se-ia, segundo os mesmos, no seguinte:
Por força do disposto no artigo 37º do Decreto-Lei 260/76, a extinção da empresa em questão tinha, pois, que efectuar-se ou por cisão ou fusão com outras e nunca por liquidação.
E isto, porque entendem que aquelas extinções se incluem «num processo mais vasto de reorganização do sector que se traduziu na decisão de criar duas novas empresas de transportes marítimos sob a forma de sociedade anónima e com capitais maioritariamente públicos e na extinção das duas empresas públicas que operavam no mesmo sector».
10. Ora, desde logo, não se vê qualquer contradição entre as citadas disposições: pelo mencionado artigo 37º do Decreto-Lei nº 260/76, o Governo encontra-se legitimamente dotado de competência para proceder à extinção de qualquer empresa pública, quer visando a sua reorganização, através de cisão ou fusão com outras, quer para pôr termo à sua actividade; e foi no uso dessa competência que o Executivo operou a extinção da C..., através do artigo 1º do Decreto-Lei nº 137/85.
O que esta última norma consubstancia é a opção, in casu, pela extinção, através da liquidação, ou seja a opção por pôr termo à actividade da C....
Os recorrentes entendem que o Governo não deveria ter tomado tal opção, mas antes ter tomado outra, que visasse uma reorganização da empresa - ou seja, o que põem verdadeiramente em causa é, tão-só, a opção tomada pelo Executivo, assim fundamentando a sua posição. Ora, tal argumentação não se refere, em primeira linha, à apreciação da conformidade constitucional ou legal do questionado preceito jurídico, mas à apreciação do mérito da opção governamental, quanto à sua oportunidade político-económica, que não cabe na competência deste Tribunal.
Em todo o caso, e quanto à eventual viabilidade ou inviabilidade económica da C..., no que ela possa ter de relevante para a formulação de um juízo de constitucionalidade ou de legalidade, pode ler-se no indicado Acórdão nº 26/85:
Não há dúvida, pois, de que se está perante empresas numa situação de extrema precaridade económico-financeira, cuja manutenção vem exigindo do erário público avultadíssimos meios, sem que se tenha logrado, até agora, a sua viabilização.
Assim, o juízo feito pelo Governo acerca da «inviabilidade económica» das mesmas empresas, e da impossibilidade em que elas se encontram
«de desenvolver a sua actividade em termos socialmente úteis» (para se reverter
à doutrina e às fórmulas do Acórdão nº 11/84), não só não se revela arbitrário, como se revela mesmo manifestamente plausível e justificado.
Por outro lado, e tendo isto em conta, seguramente não pode afirmar-se que a extinção de tais empresas haja sido ditada pelo propósito de permitir a transferência do seu património para o sector privado, ou se haja operado, sequer, nessa perspectiva.
Nem se diga, em contrário do que fica referido, que, ao extinguir a C... e a D..., o Governo já havia criado duas outras empresas de transportes marítimos, em forma de sociedades anónimas e abetas ao capital privado (a «P...» e a «T...», a que se reporta o Decreto-Lei nº 336/84, de 18 de Outubro)-criação essa que provavelmente ainda tornaria mais precária a situação daquelas primeiras no respectivo mercado, e viria a permitir (ou se destinaria mesmo a possibilitar), ao cabo e ao resto, que a actividade delas passasse para as novas empresas. O argumento efectivamente não procede. Pois, ainda que se possa, ou mesmo deva, aceitar como inteiramente verosímil a existência de uma conexão entre ambas as decisões - a da criação dessas novas empresas e a da extinção da C...e da D... -, o que não pode seguramente afirmar-se é que a primeira haja sido causa ou determinante da segunda. Ao contrário: tudo converge no sentido de concluir que, fosse como fosse, a subsistência da C... e da D... se tornara inviável, e que foi na perspectiva da inelutável extinção delas que o Governo se decidiu pela criação da «P...» e da «T...» [...].
Não se pode verificar, pois, qualquer ilegalidade da norma constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 137/85, face ao disposto no artigo 37º do Decreto-Lei nº 260/76, suposto que este último seja uma «lei de valor reforçado».
11. Passando à análise da segunda questão colocada pelos recorrentes, ou seja, a utilização pelo Governo de uma forma diversa da prevista na lei para operar a extinção da C..., também aqui lhes não assiste qualquer razão.
Dispõe o artigo 38º do citado Decreto-Lei
260/76:
A fusão, cisão e liquidação de empresas públicas é da competência do Conselho de Ministros e faz-se por decreto referendado nos termos do artº 4º.
Alegam os recorrentes que o Governo não podia 'optar por uma forma legal diferente da prevista no artigo 38º' do Decreto-Lei nº 260/76, o que constituiria uma 'ilegalidade por desrespeito de lei de valor reforçado'. E continuam:
[...] também o Decreto-Lei nº 137/85 incorreu em inconstitucionalidade por ofensa da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, contida no artigo 168º, nº 1, alínea v) da Lei Fundamental (redacção da L.C. 1/82)
Na verdade, ao extinguir uma empresa pública por decreto-lei, o Governo alterou a forma prevista na lei para o acto de extinção, sendo certo que essa matéria, porque abrangida no estatuto geral das empresas públicas, só podia ser alterada pelo Governo, se previamente autorizado pela Assembleia da República.
12. Os recorrentes juntam as duas últimas
questões acima referidas: o pretenso 'excesso de forma' seria, no seu entender, gerador, por um lado, de ilegalidade, por violação do disposto no artigo 38º do Decreto-Lei nº 260/76, e, por outro lado, de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea v) [actual alínea x)], da Constituição.
O argumento do excesso de forma não pode colher, pois que não se vê como seria possível que tal excesso, ou seja, a utilização de uma forma ainda mais solene do que a prescrita pela lei ou pela Constituição, pudesse inquinar a norma (ou o acto nela contido), desde que respeitadas as regras constitucionais atinentes à delimitação de competências entre os diversos órgãos de soberania.
Como se pode ler no recente Acórdão nº
576/96 (ainda inédito):O Governo utilizou, é certo, a forma legislativa para extinguir uma empresa pública. Deixou, porém, intocado o Estatuto desse tipo de empresas - recte, o citado artigo 38º -, no ponto em que prevê que essa extinção se faça por decreto. Por isso, não legislou ele sobre o estatuto das empresas públicas'.
Só se o fizesse carecia de autorização parlamentar, como decorria do artigo 168º, nº 1, alínea v), da Constituição, na versão de 1982
[cf., hoje, após a revisão de 1989, o mesmo artigo 168º, nº 1, alínea x].
A isto acresce que a utilização pelo Governo da forma legislativa para a a prática de um acto administrativo - para além de representar um reforço de garantias, uma vez que os decretos-leis ficam sujeitos a ratificação, contraria- mente ao que acontece com os decretos regulamentares - não importa qualquer inconstitucionalidade, por violação dos artigos 115º, nº 2,
168º, nº 1, alínea v), 201º, nº 1, alíneas b) e c), e 202º da Constituição, sendo certo que nenhum preceito constitucional impede que os decretos-leis incorporem actos administrativos ou proíbe que os actos administrativos possam revestir essa forma.
A possibilidade de os actos administrativos revestirem forma legislativa pode, de resto, ver-se implicitamente admitida no artigo 268º, nº 4, da Constituição, quando, ao garantir o recurso contencioso contra quaisquer actos administrativos que lesem os direitos ou interesses legalmente protegidos, o faz 'independentemente da forma' que esses actos revistam.
A este propósito, J.J.GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA acentuam que estão 'abrangidos pela garantia do direito ao recurso contencioso designadamente os actos administrativos contidos em lei ou praticados sob forma de lei [...] (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 940).
O raciocínio dos recorrentes é, pois, improcedente, já que os interesses que se pretendem acautelar pela prescrição de uma determinada forma não resultam prejudicados pela utilização de uma forma ainda mais solene, antes pelo contrário.
Com efeito, o uso da forma legislativa para a prática de um acto administrativo, como é o acto de extinção da C..., não só não provocou qualquer diminuição dos direitos e garantias dos destinatários, como antes abriu por esta forma a possibilidade de recurso a outros meios de controle e fiscalização.
13. Não se verifica, assim, a ocorrência de qualquer dos vícios invocados pelos recorrentes, relativamente à norma que constitui objecto do presente recurso.
III - DECISÃO
14. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 23 de Outubro de 1996 Luis Nunes de Almeida Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta)
1. Vencido, pois concederia provimento ao recurso, para ser reformado o acórdão, de acordo com um juízo de inconstitucionalidade da norma questionada do artigo 1º do Decreto- -Lei nº
137/85, de 3 de Maio, que procedeu à extinção da C..., E.P..
Concordo com a delimitação do objecto do recurso que é feita no acórdão, em que se restringe o conhecimento de mérito
àquele artigo 1º, porque, estando apenas em causa a impugnação contenciosa do acto administrativo da extinção da C..., E.P., só 'da norma directamente atinente a essa extinção se há-de tomar conhecimento'. E concordo também com a fundamentação utilizada pelo acórdão quanto à apreciação e decisão das questões elencadas nas alíneas a), b) e c) do seu nº 5, concluindo-se, consequentemente, não se verificar 'a ocorrência de qualquer dos vícios invocados pelos recorrentes, relativamente à norma que constitui objecto do presente recurso'.
2. A minha divergência do acórdão radica numa outra questão - nele não considerada, mas podendo sê-lo, à luz do artigo
79º-C, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e, em todo ocaso, ela vinha aflorada pelos recorrentes, desde logo, na petição do recurso contencioso e depois nas subsequentes peças processuais - e que é a questão posta no voto de vencido do então Cons. Vital Moreira, e que acompanha o acórdão deste Tribunal Constitucional nº 26/85, publicado no Diário da República, II Série, nº 96, de
26 de Abril de 1985, que se pronunciou, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade, sobre o artigo 1º do projecto de decreto-lei que depois originou a norma que agora interessa.
É que pode continuar a sustentar-se, na linha daquele voto de vencido, que a norma do artigo 1º atenta contra o direito
à segurança no emprego, garantido no artigo 53º da Constituição, na parte em que, conjugado ele com a alínea c) do nº 1 do artigo 4º do mesmo diploma,
'determina a extinção imediata, por caducidade, dos contratos de trabalho, sem, sequer, direito a indemnização' (uma 'situação de desemprego involuntário', tal como se exprimiu o legislador no nº 4 do mesmo artigo 1º).
Revertendo à essência da tese desse voto
- e é agora oportuno relembrá-lo, já que o acórdão nada diz - e seguindo-a a par e passo, transcreve-se dele o seguinte:
'O artº 1º não diz apenas o que nele directamente se lê, mas também o que dele decorre quando conjugado com outros, dos quais seja indissociável. É certo que o artº 4º não é indissociável do artº 1º (pelo contrário); mas a inversa não é verdadeira. O Tribunal não está a considerar uma extinção de empresa, em abstracto; está, sim, a considerar esta extinção, a destas empresas. Ora esta extinção inclui a extinção dos contratos de trabalho de certa maneira e não de outra.'
(....)
'O direito à segurança no emprego significa, acima de tudo, direito a não perdê-lo. A garantia constitucional impõe à partida uma adequada tipificação legal dos modos de cessação do contrato de trabalho e um regime legal apropriado que, além de proibir os despedimentos sem justa causa, impeça qualquer forma de cessação arbitrária ou abusiva do contrato de trabalho. De resto, nos termos do artº 18º da CRP, a lei que regular as formas de cessação do contrato de trabalho terá de ser uma lei geral e abstracta, e, nos termos do art. 168º, a respectiva competência legislativa é reservada à Assembleia da República.
Por isso, das duas, uma: ou a extinção das empresas se limita, quanto aos contratos de trabalho, a reproduzir ou a seguir o regime legal geral, ou ela envolve um regime especial, discrepante do regime geral, e então haverá inconstitucionalidade'.
(....)
'Compreende-se, de resto, muito bem porque é que a extinção de uma empresa não pode implicar, de per si, a caducidade dos contratos de trabalho. É que, a ser assim, então estaria escancarada a porta para a violação livre do direito à segurança no emprego. A entidade patronal não pode despedir livremente os trabalhadores, mas poderia desfazer-se deles simplesmente por via de extinção da empresa (com a vantagem de não ser obrigada a indemnização...). Está bem de ver que assim não pode ser. Se não houver motivo para a cessação dos contratos de trabalho por outro fundamento, a extinção da empresa é irrelevante para a subsistência dos contratos de trabalho.
Poderá argumentar-se que desse modo fica limitada na prática a liberdade do empresário para extinguir e encerrar empresas. Assim é, seguramente. Mas a Constituição garante o direito à segurança no emprego e não a liberdade dos empresários de encerrar empresas. É aquele direito que condiciona esta liberdade, e não esta que pode limitar aquele.
O que sucede é que as circunstâncias que levam à necessidade de extinguir as empresas são normalmente suficientes para justificar o despedimento colectivo dos seus trabalhadores. Mas, então, a extinção terá de ser precedida, acompanhada ou seguida do despedimento colectivo propriamente dito, sob pena de o empresário continuar vinculado aos contratos de trabalho'.
(....)
'Extinção imediata, automática, sem indemnização, determinada por via de lei: eis o que não pode qualificar-se senão como infracção qualificada da garantia constitucional do direito à segurança no emprego (art. 53º da CRP). Mas, ainda que por hipótese fosse possível compatibilizar tal direito com a caducidade dos contratos de trabalho em caso de extinção de empresas, considerando-a uma limitação admissível daquele direito, a verdade é que isso só seria poderia ser feito nas condições e nos termos do artº 18º da CRP e dos demais preceitos que definem o regime dos direitos, liberdades e garantias'.
Se, na verdade, o 'acto administrativo de extinção da C..., E.P.' também acarretou necessariamente a extinção por caducidade imediata dos contratos de trabalho em que a C... seja parte, aqui incluindo os vínculos laborais que ligavam os recorrentes, pelo menos, algum ou alguns deles na situação de pré-reforma ou de complemento da reforma, àquela empresa pública, é bom de ver que a extinção da empresa, em si mesma, não interessou aos recorrentes, mas só quando ela se projectou nas suas posições jurídicas, afectando-as.
Daí que não se possa desprender a norma questionada do artigo 1º - ela, só por si, não interessaria aos recorrentes - da norma do artigo 4º, determinando as 'implicações' da extinção da C..., entre elas a tal 'extinção por caducidade imediata, de todos os contratos de trabalho em que seja parte a C...' (nº1, c)), sendo equiparados aos trabalhadores referidos nessa alínea c) os que 'estejam a receber à data da extinção da C... uma pensão pecuniária mensal a título de pré-reforma' (nº 4).
Afectação essa que, talqualmente se posicionou o Cons. Vital Moreira, atenta contra o direito à segurança no emprego, garantido no artigo 53º da Constituição. E atenta ainda, no caso dos autos e na situação de alguns recorrentes, os que vinham recebendo 'uma importância pecuniária mensal a título de complemento de reforma', contra o direito à segurança social, garantido no nº 1 do artigo 63º da Constituição, pois aí se inscreve o tal
'complemento de reforma'.
3. A concluir, e nesta perspectiva de interacção daquelas normas citadas do Decreto-lei nº 137/85, que faltou considerar no acórdão, sou levado a entender que a extinção da C..., EP, com extinção dos contratos de trabalho, projectada nas situações de pré-reforma, não é conforme à garantia constitucional do direito à segurança no emprego, nem é conforme à garantia constitucional do direito à segurança social, no quadro dos complementos de reforma que vinham sendo pagos pela empresa.
Com o que entendo terem sido violados os artigos
53º e 63º, nº 1, da Constituição.
José Manuel Cardoso da Costa