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Proc. nº 438/92
1ª Secção/Plenário Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O Colégio A., estabelecimento de ensino particular, com sede em ..., em 28 de Junho de 1991, impugnou, no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, a 'liquidação e cobrança do imposto designado por Contribuições Patronais para a Previdência' a que se reporta o Decreto-Lei nº 179/90 de 5 de Junho, efectuada pelo Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, rematando a sua petição com as conclusões seguintes:
1ª - Consubstanciando as contribuições para a Segurança Social, sem qualquer dúvida, na parte que compete às entidades patronais um verdadeiro imposto, a sua criação está sujeita à reserva de lei do artigo 168º, nº 1, alínea i) da Constituição, que, conjugado com nº 2 do artigo 106º determina que só uma lei formal da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado estão constitucionalmente legitimados para proceder à determinação especificada dos seus elementos fundamentais (incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes);
2ª - No caso sub judice, o Governo criou, através do artigo 4º do Decreto-Lei nº
179/90, de 5 de Junho, emitido ao abrigo da alínea a) do artigo 201º, um novo imposto, violando assim a reserva relativa de competência legal da Assembleia da República - inconstitucionalidade orgânico-formal;
3ª - Enquanto expressão de uma garantia concreta da legalidade da obrigação tributária, o nº 3 do artigo 106 da Constituição confere aos cidadãos o direito de não pagarem impostos que não hajam sido criados de acordo com a Constituição;
4ª - A retroactividade conferida, por força do artigo 10º ao imposto criado pelo artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/90, de 5 de Junho, é inconstitucional
(inconstitucionalidade material) por violação do princípio da confiança dos cidadãos, ínsito no Princípio do Estado de Direito (artigo 2º);
5ª - Com efeito, de acordo com a jurisprudência uniforme e reiterada da Comissão Constitucional e do Tribunal Constitucional, estamos perante uma retroactividade que viola de forma intolerável e inadmissível os direitos e expectativas legitimamente constituídas dos cidadãos contribuintes, pelo que viola o núcleo fundamental do Princípio do Estado de Direito;
6ª - O Decreto-Lei nº 179/90, é orgânica e formalmente inconstitucional por violação do artigo 167º, alínea i) da Constituição, na medida em que regulamenta matérias que inequivocamente devem integrar as bases do sistema de ensino
(particular e cooperativo);
7ª - O legislador, não tendo avaliado correctamente a idêntica situação do ensino particular e cooperativo superior e não superior, desfavorecendo este
último, incorre numa inconstitucionalidade por omissão. Neste caso, uma omissão legalmente parcial (artigos 74º, nº 3 e 283º da Constituição), pelo que se impõe uma aplicação analógica do conteúdo do artigo 8º do Decreto-Lei nº 327/85, enquanto não for preenchida a lacuna existente do Decreto-Lei nº 321/88, que lhe corresponda, em conformidade com o artigo 10º do Código Civil;
8ª - O Decreto-Lei nº 179/90, enferma ainda de ilegalidade em vários dos seus artigos com o disposto na Lei nº 9/79 (artigos 12º, 13º, nº 1 e 13º, nº 5) da Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo, que lhe serve de parâmetro
(cfr. artigo 115º, nº 2 da Constituição);
9ª - Assim, em face das razões expostas, deve ser anulada a liquidação e cobrança do referido imposto, designado por contribuição para a Segurança Social, criado pelo Decreto-Lei nº 179/90, de 5 de Junho, que é declaradamente inconstitucional, devendo ser restituídas ao impugnante as correspondentes importâncias pagas por esta Escola, que totalizam a importância de 4.306.566$00, conforme documento anexo, acrescidas de juros compensatórios e demais encargos inerentes, e devendo ser julgadas inconstitucionais as normas especificamente impugnadas (artigos 4º, 7º, 8º e 10º do Decreto-Lei nº 179/90, de 5 de Junho).
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2 - Por sentença de 25 de Maio de 1992, foi julgada procedente e provada a impugnação, decretando-se a anulação do acto impugnado.
Para tanto, aquela decisão ateve-se, no essencial e no que importa ao presente recurso de constitucionalidade, à fundamentação seguinte:
- O Decreto-Lei nº 179/90, de 5 de Junho, emitido ao agasalho da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, veio definir o enquadramento no regime geral da Segurança Social do sector privado do pessoal docente dos estabelecimentos de ensino não superior particular e cooperativo;
- Este diploma estabelece, no artigo 4º, nº 1, uma contribuição (imposto sobre a despesa) de 10% dos encargos com o pessoal docente a suportar pelas entidades empregadoras (as Escolas Particulares e Cooperativas), fazendo retroagir, por força dos artigos 7º e 10º, esse imposto à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 321/88, de 22 de Setembro;
- As contribuições para a Segurança Social, no tocante às entidades empregadoras, constituem um genuíno imposto;
- Estando a criação de impostos reservada à Assembleia da República ou ao Governo munido de autorização legislativa [artigos 106º, nº 2 e 3 e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição], o Decreto-Lei nº 179/90 é materialmente inconstitucional por ofender a garantia individual de não pagar impostos que não tenham sido estabelecidos conformemente a Constituição, e o seu artigo 4º é também orgânica e formalmente inconstitucional, ao estabelecer um novo imposto sem obedecer ao prescrito naquelas normas constitucionais;
- Ainda no campo da incidência do imposto, cujo campo real é o das despesas com pessoal docente, o artigo 4º, nº 1 já referido, atenta contra o disposto no artigo 107º, nºs 1, 2 e 4 da Constituição;
- A retroacção dos efeitos do Decreto-Lei nº 179/90, a 27 de Setembro de 1988, imposta pelo seu artigo 10º, traduz-se num afrontamento dos direitos e expectativas dos contribuintes em termos de implicar violação do princípio da proibição do excesso, pois que tal solução se apresenta como inadequada e desnecessária, não sendo a única alcançável nem a menos onerosa, como era de reclamar atento o interesse público atribuído aos estabelecimentos de ensino particular e cooperativo;
- A extrema onerosidade que assim se criou para estes estabelecimentos de ensino, envolve também uma violação do direito à liberdade de ensino consagrado na Constituição, para além de que, criando uma injustificada discriminação face aos estabelecimentos de ensino superior, viola o princípio constitucional da igualdade.
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3 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção estabelecida pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, (Lei do Tribunal Constitucional), trouxe o Ministério Público, daquela decisão, recurso obrigatório a este Tribunal.
E nas alegações entretanto produzidas pelo senhor Procurador-Geral Adjunto, concluiu-se do modo seguinte:
1º - As normas dos artigos 4º e 10º do Decreto-Lei nº 179/90, de 5 de Junho, versando sobre a incidência e taxa de um tributo e inseridas num diploma emitido pelo Governo sem credencial parlamentar, são organicamente inconstitucionais, por violação dos artigos 106º, nº 2 e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição;
2º - A norma do citado artigo 10º, ao retrotrair a Setembro de 1988 aquela obrigação tributária, é materialmente inconstitucional, por violar o princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2º da Lei Fundamental).
A recorrida veio ao processo aderir à alegação do Ministério Público manifestando inteira concordância com o conteúdo daquela peça alegatória.
Ao abrigo e para os efeitos do disposto no artigo
79º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, foi determinado que o julgamento destes autos se efectuasse com a intervenção do plenário do Tribunal.
Corridos os vistos de lei cabe agora apreciar e decidir.
E decidir, concretamente, se as normas dos artigos 4º e 10º do Decreto-Lei nº 170/90, de 5 de Junho, as únicas normas que, por aplicáveis ao caso em apreço, integram o objecto do recurso, dispõem de legitimidade constitucional.
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II - A Fundamentação
1 - A Lei nº 9/79, de 19 de Março, que estabeleceu as bases do sistema de ensino particular e cooperativo, era omissa quanto ao sistema de Segurança Social a que estaria sujeito o respectivo pessoal docente, bem como quanto ao correspondente esquema retributivo.
Contudo, poderá dizer-se que a progressiva aproximação das situações dos professores do ensino particular e cooperativo e do ensino público preconizada naquela lei, revelava a orientação do legislador no sentido de o pessoal docente a prestar serviço nos estabelecimentos de ensino particular e cooperativo vir a ser integrado no regime da segurança social aplicável aos funcionários da administração pública.
Com efeito, ali se dispunha que 'os contratos de trabalho dos professores do ensino particular e cooperativo e a legislação relativa aos profissionais de ensino, nomeadamente nos domínios salarial da segurança social e assistência, devem ter na devida conta a função de interesse público que lhes é reconhecida e a conveniência de harmonizar as suas carreiras com as do ensino público' (artigo 12º)
E também que, para além de ser 'admitida a transferência de professores das escolas públicas para as escolas particulares e cooperativas e vice-versa', o Governo deverá 'proporcionar a progressiva integração dos docentes numa carreira profissional comum' (artigo 13º, nºs 1 e
5).
Entretanto, já depois de o Decreto-Lei nº 553/80, de
21 de Novembro que aprovou o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, proclamar no artigo 46º o propósito de 'uma aproximação progressiva entre a situação dos professores do ensino particular e a situação dos do ensino público, de forma a proporcionar a correspondência de carreiras profissionais', veio a ser publicado o Decreto-Lei nº 327/85, de 8 de Agosto, por força do qual, o pessoal docente dos estabelecimentos de ensino superior, privado ou cooperativo passou a estar inscrito 'na Caixa Geral de Aposentações e no Montepio dos Servidores do Estado, ficando abrangido pelas disposições do Estatuto da Aposentação e do Estatuto das Pensões de Sobrevivência' (artigo 2º).
E, paralelamente, o Decreto-Lei nº 321/88, de 22 de Setembro veio dispor que 'o pessoal docente dos estabelecimentos de ensino não superior, particular ou cooperativo, devidamente legalizados, será inscrito na Caixa Geral de Aposentações e no Montepio dos Servidores do Estado, ficando abrangidos pelas disposições constantes dos respectivos estatutos em tudo o que não for contrariado pelo presente diploma' (artigo 1º)
Aos estabelecimentos de ensino foi imposta a dedução aos vencimentos do pessoal docente das quotizações legalmente fixadas, competindo-lhes também proceder à sua remessa para
aquelas instituições nos prazos fixados na lei (artigo 9º).
Por outro lado, prescreveu-se que 'os estabelecimentos de ensino participam no financiamento do sistema nos termos da regulamentação a aprovar mediante portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Educação' (artigo 10º).
Em conformidade com este último preceito, a Portaria nº 1/89, de 2 de Janeiro, veio estabelecer que 'cada estabelecimento de ensino não superior, particular ou cooperativo, entregará à Caixa Geral de Aposentações e ao Montepio dos Servidores do Estado quantias iguais às quotas deduzidas nas remunerações do respectivo pessoal docente' (nº 1), sendo que a entrega destas quantias 'será efectuada simultâneamente com a remessa das quotas deduzidas nas remunerações do pessoal docente' (nº 2).
Estava assim criado um quadro normativo através do qual se reconhecia aos docentes dos estabelecimentos de ensino não superior, particular e cooperativo o direito às prestações pecuniárias ou em espécie 'nas eventualidades de velhice, invalidez e morte' no âmbito daquelas instituições de protecção social, concretamente, a Caixa Geral de Aposentações e o Montepio dos Servidores do Estado, prevendo-se também um esquema de dedução e pagamento das quotizações devidas a tais instituições pelos docentes beneficiários e também uma forma de participação no financiamento do sistema por parte dos estabelecimentos de ensino.
Todavia, naquela estatuição não se compreendiam as restantes prestações pecuniárias a que se reporta o artigo 19º, nº1, da Lei nº
28/84, de 14 de Agosto (Lei da Segurança Social), atribuidas no âmbito do regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem - encargos familiares, incapacidade temporária por doença e maternidade, doença profissional e desemprego.
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2 - Com o objectivo confessado de 'definir com clareza o enquadramento parcial destes trabalhadores no regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, bem como a taxa contributiva que lhes corresponde face à redução material do regime, aliás em conformidade com o disposto no nº 3 do artigo 19º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, que expressamente prevê que a obrigatoriedade de inscrição possa ser restrita a algumas das eventualidades abrangidas pelo regime geral de segurança social' foi publicado o Decreto-Lei nº 179/90, de 5 de Junho, no qual se inserem as normas desaplicadas na decisão recorrida.
Este diploma, considerando, por um lado, os encargos decorrentes para o pessoal docente e entidades empregadoras da inscrição na Caixa Geral de Aposentações e no Montepio dos Servidores do Estado autorizada pelo Decreto-Lei nº 321/88, e atendendo, por outro lado, às taxas contributivas do regime geral previstas no Decreto-Lei nº 140-D/86, de 14 de Junho, que estabeleceu a taxa social única, proclama o propósito de 'evitar que as entidades empregadoras e trabalhadores assumam encargos contributivos globais com os dois regimes superiores aos que teriam se permanecessem apenas abrangidos pelo regime geral'.
E na sequência da orientação assim enunciada na sua exposição preambular, o Decreto-Lei nº 179/90, depois de precisar que 'continuam obrigatoriamente enquadrados no regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem, com as particularidades constantes do presente diploma, como beneficiários, os docentes [dos estabelecimentos de ensino não superior, particular e cooperativo] e, como contribuintes, os estabelecimentos de ensino em que aqueles prestem serviço (artigo 2º), reconheceu aqueles beneficiários o direito 'às prestações que integram o âmbito material do regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem correspondentes às eventualidades de encargos familiares, de incapacidade temporária de trabalho por motivo de doença e maternidade, de doença profissional e de desemprego' (artigo 3º).
A seguir, no artigo 4º, o respectivo esquema contributivo, foi assim definido:
Artigo 4º
(Esquema contributivo)
1 - As contribuições devidas para o regime geral de Segurança Social são calculadas pela aplicação às remunerações pagas e recebidas da taxa de 10%, da responsabilidade das entidades empregadoras.
2 - A percentagem referida no número anterior engloba a taxa de 0,5% prevista no artigo 2º do Decreto-Lei nº 200/81, de 9 de Julho, destinada ao financiamento da cobertura de risco de doença profissional.
E, ao demarcar a data a partir da qual aquele diploma produziria efeitos, prescreveu-se deste modo:
Artigo 10º
(Produção de efeitos)
O presente diploma produz efeitos desde a data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 321/88, de 22 de Setembro.
A partir da inscrição na Caixa Geral de Aposentações
e no Montepio dos Servidores do Estado dos professores do ensino não superior, particular ou cooperativo, passou a ser--lhes reconhecido o direito às chamadas prestações diferidas, nas eventualidades de invalidez, velhice e morte, gerando-se alguma incerteza e indeterminação quanto ao modo de cobertura e financiamento das chamadas prestações imediatas, nas eventualidades de doença, doença profissional, maternidade, desemprego e encargos familiares, situadas estas fora do âmbito de intervenção daquelas instituições.
E daí que, nas normas anteriormente referidas, o legislador, pondo termo às dúvidas que porventura se tenham suscitado e contrariando a tendência que se vinha afirmando no sentido de uma uniformização do estatuto dos professores do ensino público, particular e cooperativo, tenha colocado, expressamente, tais eventualidades a coberto do regime da segurança social, limitando-se, aliás, a utilizar a via do regime de âmbito parcelar a que se reporta o artigo 19º, nº 3, da Lei nº 28/84.
E, no plano de financiamento do respectivo regime, veio estabelecer um esquema contributivo que impõe às entidades empregadoras, a partir da data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 321/88 - diploma que autorizou a inscrição daquele pessoal docente, relativamente às eventualidades já referidas, na Caixa Geral de Aposentações e no Montepio dos Servidores do Estado - o pagamento de uma prestação de 10% calculada sobre as remunerações recebidas por aquele pessoal.
Cabe aqui recordar, que aquando da publicação do Decreto--Lei nº 179/90, já vigorava a taxa social única criada pelo Decreto-Lei nº 140-D/86, de 14 de Junho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº
295/86, de 19 de Setembro.
Em conformidade com estes diplomas, as taxas de contribuições a pagar pelos trabalhadores e pelas entidades patronais foram fixadas, respectivamente, em 11% e 24% das remunerações por trabalho prestado, abrangendo-se com tal todos os regimes ou esquemas de segurança social em que sejam aplicáveis as taxas de contribuições do regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem.
Ora, por decorrência dos princípios que regem o sistema de segurança social e das garantias constitucionais que o acautelam, ao pessoal docente dos estabelecimentos de ensino não superior, particular e cooperativo, não poderia ter sido denegado, a partir da sua inscrição na Caixa Geral de Aposentações e no Montepio dos Servidores do Estado, o direito de beneficiarem do sistema de segurança social próprio dos trabalhadores por conta de outrem, no tocante às prestações imediatas não cobertas por aquelas instituições.
Não lhes podia ser denegado tal direito, assim como as respectivas entidades empregadoras não se podiam eximir das contribuições obrigatórias que sobre elas recaiam, calculadas em termos da correspondente taxa social.
O regime misto da prestação social que decorre da aplicação dos Decretos-Lei nºs 321/88 e 179/90, para o pessoal docente do ensino não superior, particular e cooperativo e do Decreto-Leis nº 327/85, para o pessoal do ensino superior, particular e cooperativo, veio, aliás, exigir a articulação, através de regras adequadas, das diversas entidades ali intervenientes - instituições de segurança social e organismos responsáveis pela protecção social da função pública - havendo, com tal propósito, sido editados os Decretos-Leis nºs 149/92, de 17 de Julho e 109/93, de 7 de Abril.
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3 - A decisão recorrida, para decretar a anulação do acto impugnado - liquidação de contribuições patronais para a Previdência Social no montante de 4.306.566$00, cobradas ao recorrente pelo Centro Regional de Segurança Social de Lisboa - recusou a aplicação da norma do artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/90, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos artigos 168º, nº 1, alínea i) e 106º, nº 2, da Constituição.
Segundo o entendimento ali expresso, através daquela norma foi estabelecido um 'novo imposto' com 'inobservância dos preceitos constitucionais já que a sua criação, com definição da correspondente incidência e taxa foi operada pelo Governo sem base em autorização legislativa onde se definissem os elementos essenciais do imposto que impedia o seu estabelecimento
'maxime' a sua incidência e taxa'.
Será efectivamente assim?
O princípio da legalidade tributária acha-se garantido no artigo 106º, nº 2, da Constituição, segundo o qual 'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes'.
Este princípio, como é consabido, traduz-se desde logo na regra da reserva de lei para a criação e determinação dos elementos essenciais dos impostos, não podendo deixar de constar de diploma legislativo e implicando a tipicidade legal, isto é, o imposto há-de ser desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para qualquer discricionariedade administrativa quanto aqueles elementos essenciais.
Por outro lado, a lei a que se refere a norma do artigo 106º é em princípio uma lei da Assembleia da República, só podendo tratar-se de decreto-lei quando existir autorização legislativa do Governo.
Com refere Jorge Miranda, 'A competência legislativa no domínio dos impostos e as chamadas receitas parafiscais', Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXIX, 1988, pp. 9 e ss., a interpretação conjugada dos artigos 106º e 168º, nº 1, alínea i), não tem levantado dificuldades na vigência da actual Constituição, ao contrário do que sucedera com os artigos 70º e 93º da Constituição anterior, podendo afirmar-se que 'a doutrina e a jurisprudência são unânimes em reiterar o enlace entre ambas as regras, em reconhecer que só adquirem pleno sentido útil quando incindíveis
[que é o artigo 106º, nº 2 que preenche o conteúdo do artigo 168º, nº 1, alínea i), e que é este que confere expressão política ou orgânico-funcional àquele]'.
Esta reserva de lei da Assembleia da República está de acordo com o sentido histórico da reserva parlamentar da lei fiscal, que arranca originariamente da ideia da autotributação, isto é, de a imposição fiscal só poder ser determinada pelos próprios cidadãos através dos seus representantes no parlamento.
O Decreto-Lei nº 179/90, foi emitido ao abrigo do disposto no artigo 201º, nº 1, alínea a) da Constituição, isto é, no uso da competência legal concorrente do Governo e sem a cobertura de delegação legislativa da Assembleia da República, importando assim averiguar qual a exacta natureza jurídica das 'contribuições devidas para o regime geral de segurança social' a que o artigo 4º se reporta.
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4 - Esta matéria tem sido objecto de amplo debate doutrinal e jurisprudencial, podendo dizer-se que as posições se dividem entre aqueles que entendem ser possível atribuir a mesma qualificação jurídica às contribuições devidas pelos trabalhadores e às que recaem directamente sobre as entidades patronais e os que pensam que umas e outras são de diversa natureza.
Por seu turno, entre os defensores da primeira posição, de sentido monista, ao lado dos que atribuem a tais contribuições a natureza de uma taxa, existem aqueles que as qualificam como prémio de seguro de direito público ou que as consideram verdadeiros impostos.
A orientação dualista tende a caracterizar as contribuições correspondentes aos trabalhadores como prémio de seguro e a havê-las, na parte que se referem às entidades patronais como verdadeiros impostos (cfr. no sentido que vem referido, respectivamente: José Manuel Sérvulo Correia, Teoria da relação jurídica do seguro social, Estudos Sociais e Corporativos, ano VII, 1968, pp. 300 e ss.; F. Pessoa Jorge, Privilégio creditório a favor das instituições de previdência social, Ciência e Técnica Fiscal, nºs 169- 170, p. 90; Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, vol. I,
1974, pp. 66 e ss.; Acórdão da Relação do Porto, de 2 de Julho de 171 e Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Outubro de 1971, Boletim do Ministério da Justiça, nº 209, p. 195 e 210, p. 170; Nuno Sá Gomes, Curso de Direito Fiscal, Lisboa, 1980, p. 254 e Carlos Pamplona Corte-Real, Curso de Direito Fiscal, Lisboa, 1981, p. 180).
Independentemente do bem fundado das razões que em defesa de cada um destes entendimentos têm sido desenvolvidos (a recensão de umas e de outras acha-se feita por A. Braz Teixeira, Natureza jurídica das contribuições para a Previdência, Estudos, vol. I, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1983, pp. 47 e ss.), há-de dizer-se que as contribuições para a segurança social que têm como sujeito passivo a entidade patronal - e são essas as únicas que aqui importa considerar - quer sejam havidas como verdadeiros impostos, quer sejam consideradas como uma figura contributiva de outra natureza, é seguro que sempre deverão estar sujeitas aos mesmos requisitos a que aqueles se acham constitucionalmente obrigados.
Esta sujeição às regras constitucionais decorre do facto de as prestações pecuniárias em que estas contribuições se traduzem, talqualmente os impostos, revestirem carácter definitivo e unilateral, uma vez que só podem ser restituídas quando indevidamente pagas, não admitindo reembolso e não implicando nenhuma contrapartida por parte das entidades que delas são credoras; serem estabelecidas por lei, e destinarem--se à realização de um fim inquestionavelmente público - o financiamento do sistema de segurança social (artigo 63º da Constituição).
Assim sendo, deverá concluir-se que a norma sob apreciação, ao estabelecer a incidência e a taxa das contribuições devidas para o regime geral da Segurança Social, dispõe sobre matéria inscrita no âmbito da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República.
E cabe aqui recordar, como remate e complemento da fundamentação expendida, que a Constituição, depois da 2ª revisão constitucional, sendo explícita a referir no artigo 106º que o sistema fiscal visa ao lado da satisfação das
necessidades financeiras do Estado, a de 'outras entidades públicas', não dá guarida ao 'equívoco conceito de parafiscalidade, que comporta figuras que são verdadeiros impostos, que como tais devem ser tratados para todos os efeitos
(reserva de lei parlamentar, autorização anual da cobrança, inscrição orçamental, etc), mesmo que cobradas em benefício de outras entidades que não o Estado ou outras colectividades territoriais'. (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p.
460).
Porém, a conclusão de que aquelas contribuições para a segurança social hão-de sujeitar-se aos mesmos requisitos constitucionais dos impostos não significa o sancionamento da decisão recorrida enquanto, com fundamento na questão de inconstitucionalidade, decretou a anulação do acto impugnado.
Vejamos porquê.
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5 - Como já se observou, o Decreto-Lei nº 140-D/86, instituiu a 'taxa social única' fixando a taxa de contribuição a pagar pelas entidades patronais em 24% das remunerações por trabalho prestado.
Tendo em conta que, em termos do artigo 20º da Lei nº
28/84, é obrigatória a inscrição no regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem, bem como das respectivas entidades empregadoras, sendo estas, aliás, responsáveis pela inscrição naquele regime dos trabalhadores ao seu serviço, há-de ter-se como corolário inafastável que já antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 179/90, os estabelecimentos de ensino não superior, particular e cooperativo estavam sujeitos ao pagamento de uma contribuição para o sistema de segurança social, correspondente a todas as prestações e eventualidades contidas no âmbito material do regime geral.
Deste modo, a taxa de 10% da responsabilidade das entidades patronais a que se reporta o artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/90, não representa para estas uma onerosidade acrescida, pois que sobre elas impendia já o dever de suportar a contribuição relativa não só às prestações diferidas, a cargo da Caixa Geral de Aposentações e do Montepio dos Servidores do Estado, mas também às prestações imediatas, a coberto do regime geral de segurança social.
Ora, tendo em conta que aqueles estabelecimentos de ensino participavam no financiamento da parcela de segurança social do pessoal docente abrangida pela Caixa Geral de Aposentações e pelo Montepio dos Servidores do Estado, com uma quantia igual às quotas deduzidas nas remunerações
daquele pessoal (8%), verifica-se que a contribuição a que se reporta o artigo
4º, calculada pela aplicação às remunerações pagas e recebidas da taxa de 10%, contribuição esta que visa a parcela da Segurança Social a cargo do regime geral, se traduz afinal num encargo pré-existente.
O legislador do Decreto-Lei nº 179/90, actuando a descoberto de autorização legislativa, não dispunha de competência para emitir normação relativa a elementos essenciais das contribuições para a segurança social.
Simplesmente, no quadro normativo em que se inscrevia o sistema misto de segurança social do pessoal docente dos estabelecimentos de ensino não superior, particular e cooperativo, em vigor à data da publicação daquele diploma, já cabia a prescrição contida no artigo 4º.
Assim sendo, não se verifica, como se sustenta na decisão recorrida, inexistência de facto tributário derivada da inconstitucionalidade daquela norma, pois que a liquidação e cobrança das contribuições para a segurança social devidas pela recorrente - relativas à cobertura de prestações imediatas - dispunham já de tutela da Lei nº 28/84 e dos Decretos-Leis nºs 140-D/86 e 295/86.
Por outro lado, à luz deste entendimento, a norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 179/90, também desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade, não se traduz em qualquer 'violação dos direitos e expectativas dos contribuintes', como se refere na decisão recorrida.
Com efeito, na data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 321/88, para a qual aquela norma faz retroagir os efeitos do Decreto-Lei nº 179/90, já no ordenamento cabia a previsão respeitante ao esquema contributivo da responsabilidade das entidades empregadoras a que o artigo 4º desse diploma se reporta.
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III - A Decisão
Nesta conformidade, decide-se conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da sentença recorrida, em termos de não se ter por verificada, com fundamento em
inconstitucionalidade, a inexistência do facto tributário a que os autos se reportam.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 1996
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Vitor Nunes de Almeida Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José de Sousa e Brito Messias Bento Luis Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa