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Proc. nº 370/95 Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. propôs no Tribunal de Família de Lisboa contra B. acção de regulação do exercício do poder paternal, relativamente à menor filha de ambos.
Transitada em julgado a sentença final, veio ela pedir se procedesse a descontos nos salários do requerido, para pagamento da pensão de alimentos a que ele estava judicialmente obrigado para com a menor sua filha.
Decidido o incidente, a requerente recorreu de agravo para a Relação, invocando ofensa de caso julgado, tendo o requerido recorrido da apelação, mas sendo o recurso recebido como agravo.
O requerido interpôs ainda um segundo agravo.
A Relação apenas deu provimento a este segundo agravo interposto pelo requerido.
2. Do acórdão da Relação recorreu a requerente para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando ofensa de caso julgado.
O recorrido, nas alegações que então apresentou, suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso, com fundamento em que, tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, era o mesmo inadmissível.
Ouvida a recorrente sobre a questão prévia, sustentou ela que a decisão era recorrível, uma vez que - disse - 'a norma do artigo 678º, nº 2, do Código do Processo Civil deve prevalecer sobre as dos artigos 150º da Organização Tutelar de Menores e 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil'. E acrescentou que 'estas normas são inconstitucionais, na interpretação de que devem prevalecer sobre a do artigo 678º, nº 2, do Código de Processo Civil, quando se invoca a ofensa de caso julgado como fundamento de recurso interposto de acórdão da Relação proferido no âmbito de processo considerado de jurisdição voluntária', pois que 'violam o princípio constitucional da intangibilidade do caso julgado, implicitamente constante dos artigos 2º, 210º, nº 2, e 282º, nº 3, da Constituição da República'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 14 de Junho de 1995, julgou procedente a questão prévia e não tomou conhecimento do recurso.
3. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 14 de Junho de 1995) que vem o presente recurso, interposto pela recorrente ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade dos artigos 150º da Organização Tutelar de Menores e 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil, na interpretação que, nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, apontou como inconstitucional.
Neste Tribunal, a recorrente concluiu as suas alegações como segue:
a) O princípio da intangibilidade do caso julgado está implicitamente consagrado na Constituição da República, nomeadamente nos seus artºs 2º, 210º, nº 2 e 282º, nº 3; b) A importância do caso julgado e a gravidade que reveste a sua ofensa determinou que o legislador permita até ao Supremo Tribunal de Justiça o recurso em quaisquer questões em que seja questionada tal ofensa - artº 678º nº 2 do C.P.C.; c) Esta norma deve prevalecer sobre as dos artºs 150º da L.T.M. e 1411º nº 2 do C.P.C.; d) Na interpretação acolhida pela decisão recorrida, de que tais normas devem prevalecer sobre a do artº 678º nº 2 do C.P.C., quando se invoca a ofensa de caso julgado como fundamento de recurso interposto de acórdão da Relação proferido no âmbito de processo considerado de jurisdição voluntária, as mesmas devem ter-se como inconstitucionais, por violação do princípio invocado na alínea a) supra; e) Daí que deva ser concedido provimento ao presente recurso, reparando-se a invocada inadmissibilidade, com as legais consequências.
O recorrido concluiu as suas alegações, dizendo que
'deverá ser negado provimento ao recurso, não se declarando, assim, a inconstitucionalidade das normas postas em crise'.
4. Corridos os vistos, apresentou o relator um projecto de acórdão no sentido de que se não devia conhecer do recurso, uma vez que, em seu entender, o recorrente não suscitara uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Este entendimento não fez vencimento.
Cumpre, por isso, decidir a questão de constitucionalidade que os autos propõem - a saber: que 'a norma do artigo 678º, nº 2, do Código de Processo Civil deve prevalecer sobre as dos artigos 150º da Organização Tutelar de Menores e 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil'. Dizendo de outro modo: que estas últimas 'normas são inconstitucionais, na interpretação de que devem prevalecer sobre a do artigo 678º, nº 2, do Código de Processo Civil, quando se invoca a ofensa de caso julgado como fundamento de recurso interposto de acórdão da Relação proferido no âmbito de processo considerado de jurisdição voluntária'.
II. Fundamentos:
5. Este Tribunal tem entendido, de forma uniforme e constante, que, estando constitucionalmente prevista a existência de tribunais superiores, o legislador não pode eliminar na prática a faculdade de recorrer.
Constitui, no entanto, também jurisprudência firme deste Tribunal que, em matéria cível, o duplo grau de jurisdição não é uma garantia constitucional (cf., entre outros, os acórdãos nºs 163/90 e 287/90, publicados no Diário da República, II série, de 18 de Outubro e de 20 de Fevereiro de 1991, respectivamente).
Daqui decorre - como, de resto, este Tribunal decidiu no acórdão nº 930/96 (por publicar) - que o artigo 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil, pelo facto de não assegurar (mesmo quando, como fundamento do recurso, se invoca ofensa de caso julgado) um terceiro grau de jurisdição, não é inconstitucional. Designadamente, não viola ele o direito ao recurso, nem a intangibilidade do caso julgado - suposto que esta tem consagração constitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 11 de Julho de 1996 Messias Bento (vencido quanto ao conhecimento do recurso, conforme declaração de voto junta)
Entendi que não devia conhecer-se do recurso e, por isso, votei vencido quanto a tal questão.
As razões deste meu entendimento são as que expus como fundamentos do projecto de acórdão que apresentei e que passo a reproduzir.
1 O objecto do recurso:
Recorríveis para o Tribunal Constitucional são as decisões dos outros tribunais que desapliquem normas jurídicas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que as apliquem, não obstante o recorrente ter suscitado a sua inconstitucionalidade durante o processo.
Objecto do controlo de constitucionalidade que a Constituição e a lei cometem a este Tribunal são as normas jurídicas desaplicadas ou aplicadas pelas decisões judiciais, e não estas consideradas em si mesmas.
O controlo de constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional é, assim, um controlo normativo: fora do seu objecto, a mais que as decisões judiciais, estão, pois, os actos políticos ou de governo e os actos administrativos.
Quando, como no presente caso, se trata de recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente há-de ter suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica, e a decisão recorrida há-de, apesar disso, tê-la aplicado.
Sendo certo que só as normas jurídicas (os actos provenientes do poder normativo público) podem ser objecto do controlo de constitucionalidade a que o Tribunal Constitucional procede nos recursos que para si são interpostos das decisões dos outros tribunais, elas (as normas) podem ser perante si questionadas sub specie constitutionis em todo o seu sentido e alcance (em toda a sua intentio e em toda sua extentio), apenas numa sua dimensão normativa ou, ainda, numa certa interpretação das mesmas (o sentido com que foram aplicadas no caso pela decisão recorrida).
Esta é jurisprudência firme do Tribunal.
2. O caso:
Resta, então, saber se, in casu, a recorrente questionou a constitucionalidade de uma certa interpretação dos artigos 150º da Organização Tutelar de Menores e 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil (como ela própria diz) ou se, não obstante a expressão verbal utilizada, o que, em direitas contas, é questionada é a constitucionalidade da decisão judicial considerada em si mesma.
Vejamos, então:
O artigo 150º da Organização Tutelar de Menores, integrado no capítulo I
(Disposições gerais) do título III (Dos processos tutelares cíveis) preceitua que 'os processos previstos neste título são considerados de jurisdição voluntária'.
Decorre deste artigo 150º que tais processos (neles inclui-se o da regulação do exercício do poder paternal: cf. artigos 174º a 183º), estão sujeitos ao regime geral dos processos de jurisdição voluntária, constante dos artigos 1409º a 1411º do Código de Processo Civil - regime que difere do que vigora para os processos contenciosos.
Nos processos de jurisdição voluntária, o princípio inquisitório prevalece sobre o princípio dispositivo (cf. artigo 1409º, nº 2); há um predomínio da equidade sobre a legalidade (cf. artigo 1410º); as resoluções podem ser alteradas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, por isso que o caso julgado seja um caso julgado rebus sic stantibus
(cf. artigo 1411º, nº 1); das decisões ('resoluções') neles proferidas não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. artigo 1411º, nº 2).
A regra da inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça foi aplicada pelo acórdão recorrido, não obstante o recurso para aí interposto se fundar em ofensa de caso julgado.
Significa isto que, para o aresto sob recurso, a norma do artigo 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil (aplicável no caso, ex vi do disposto no artigo 150º da Organização Tutelar de Menores) prevalece sobre a do artigo 678º, nº 2, daquele Código, segundo a qual 'o recurso é sempre admissível, seja qual for o valor da causa', 'se tiver por fundamento [...] a ofensa de caso julgado'.
E isto é o que a recorrente tem por inconstitucional.
Esta prevalência do artigo 1411º, nº 2, sobre o artigo 678º, nº 2, foi defendida por ALBERTO DOS REIS (Processos Especiais, volume II, Coimbra, 1956, página 402), relativamente às normas correspondentes do Código de 1939 (artigos
1451º, 1º período, e artigo 672º, 2ª alínea), com a seguinte argumentação: A 2ª alínea do artigo 672º constitui um desvio da regra formulada na primeira alínea do artigo; ora, nos processo de jurisdição voluntária a regra está limitada pelo artigo 1451º. Não há recurso para o Supremo, mesmo quando o valor da causa exceda a alçada da Relação; se a natureza dos processos de jurisdição voluntária impõe esta limitação, impõe igualmente a outra: a não aplicação do preceito contido na 2ª alínea do artigo 672º'. No tocante ao recurso fundado na ofensa de caso julgado acresce uma razão especial. É que o caso julgado não goza, nos processos de jurisdição voluntária, da característica da irrevogabilidade. Se as resoluções podem ser livremente alteradas [...], não se compreende o recurso baseado na ofensa de caso julgado.
Como se vê, o que a recorrente questiona sub specie contitutionis não é uma determinada interpretação do artigo 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil. O preceito tem, de resto, uma redacção suficientemente unívoca ('Das resoluções não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça') para não permitir que dele se extraia outro sentido para além daquele que o acórdão recorrido dele extraiu: não há recurso.
Ora, para se poder falar de interpretação, tem que se tratar de um sentido que seja suportado pelo teor verbal da norma a que ele é imputado. De facto, o intérprete - que presumirá que o legislador 'soube exprimir o seu pensamento em termos adequados' -, deve 'reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo', mas não pode considerar 'o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso' (cf. artigo 9º do Código Civil).
O que a recorrente, então, questiona é a constitucionalidade da prevalência atribuída pelo acórdão recorrido ao artigo
1411º, nº 2, no confronto com o artigo 678º, nº 2 ('na interpretação de que devem prevalecer sobre a do artigo 678º, nº 2' - assim se expressou ela). Dizendo de outra forma: a recorrente questiona a legitimidade constitucional do modo como foi decidido o conflito normativo, que parece existir entre os artigos
1411º, nº 2, e 678º, nº 2. Mais simplesmente ainda: a recorrente, partindo da ideia de que a Constituição, implicitamente embora, consagra o princípio da intangibilidade do caso julgado, questiona a compatibilidade com a Lei Fundamental da decisão que resolveu tal conflito normativo, dando preferência à norma que subtrai ao controlo do Supremo Tribunal de Justiça (o citado artigo
1411º, nº2) resoluções eventualmente ofensivas de caso julgado anterior.
Ora, já se disse, as decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem ser objecto de controlo de constitucionalidade por parte deste Tribunal, que tem competência apenas para apreciar a compatibilidade com a Constituição das normas jurídicas (desaplicadas ou aplicadas pelas decisões recorridas). A sua competência não abarca as opções que o julgador faz quando tem que determinar (e, assim, decidir) quais as normas jurídicas que o julgamento do caso convoca (ou seja: quando tem que dizer o direito do caso).
[Cf., identicamente, o acórdão nº 18/96 (Diário da República, II série de 15 de Maio de 1996)].
3. Conclusão: O Tribunal não pode, então, conhecer do recurso, pois que, se o fizesse, iria pronunciar-se - não sobre a constitucionalidade de uma determinada interpretação de uma certa norma jurídica
(no caso, da norma do artigo 1411º, nº 2, do Código de Processo Civil) -, sim sobre se é ou não conforme à Constituição a opção feita pelo julgador, quando, ao determinar o direito do caso, decidiu que ele é aquele artigo 1411º, nº 2, e não o artigo 678º, nº 2, do mesmo Código (ou seja, iria pronunciar-se sobre a constitucionalidade da decisão judicial, ela própria). Fernando Alves Correia Bravo Serra José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca (Vencido, nos termos da declaração de voto do Ex.mo Cons. Messias Bento) José Manuel Cardoso da Costa