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Processo nº 232/95
2ª secção Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A, SA, nuns autos em que era expropriante, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que fixou em
452.256.800$00 a indemnização a pagar à expropriada B, SA.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Setembro de 1994, não conheceu de tal recurso, com fundamento em que, do acórdão da Relação que fixa o montante da indemnização devida em caso de expropriação por utilidade pública, nunca há recurso para aquele Supremo Tribunal.
Deste acórdão de 27 de Setembro de 1994, interpôs a A recurso para o Pleno do mesmo Supremo Tribunal, com fundamento em oposição de julgados, pois que, noutro recurso (o recurso nº 8.051 da Secção Cível) havia sido proferido, em 19 de Junho de 1993, um acórdão em que se decidiu que o novo Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9/Novembro)
'quis admitir o recurso até ao Supremo, alterando o regime anterior'.
A , tendo entregue as alegações de recurso para o Pleno fora de prazo, veio alegar justo impedimento (consistente no facto de o seu mandatário ter sido 'acometido [...], quando ainda lhe decorria prazo para alegar, de doença súbita que o impossibilitou de elaborar as alegações e de, em tempo útil, proporcionar a qualquer outro colega a possibilidade de o substituir') e requerer que as mesmas fossem admitidas.
O Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 25 de Janeiro de 1995, houve por não verificado o invocado justo impedimento, não admitiu a alegação de recurso e, em consequência, julgou este deserto.
Deste despacho (de 25 de Janeiro de 1995) reclamou a A para a conferência, dizendo, entre o mais, que 'a interpretação do art. 146º do CPC veiculada no despacho reclamado, segundo o qual o justo impedimento não se verificaria porque o mandatário da recorrente 'poderia ter contactado os colegas para fazerem a alegação do recurso, durante o período de doença', sofre do vício de inconstitucionalidade, por violação do art. 20º da Constituição, cujo nº 2 estabelece que 'todos têm direito ao patrocínio judiciário'.
O Supremo Tribunal de Justiça, em conferência, por acórdão de 14 de Março de 1995, julgou improcedente a reclamação e confirmou o despacho reclamado.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 14 de Março de 1995) que vem o presente recurso, interposto pela A ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para julgamento da constitucionalidade do artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação que se deixou indicada.
Neste Tribunal, a A apresentou alegações, nas quais - depois de anotar que, havendo o Supremo Tribunal de Justiça tirado assento no sentido de que 'o Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida', este recurso tornar-se-á inútil se vier a transitar em julgado o acórdão (do qual foi interposto recurso para este Tribunal) em que aquele assento foi tirado - formulou as seguintes conclusões:
1 - A decisão sobre o presente recurso deve sobrestar-se até que venha a ser decidido o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade do Assento do S.T.J., tudo em conformidade com a questão prévia levantada.
2 - O direito à livre escolha do advogado é um direito básico de um qualquer cidadão, fazendo parte da sua esfera de liberdade pessoal.
3 - O artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados determina que 'o mandato judicial não pode ser objecto, por qualquer forma de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha directa e livre do mandatário pelo mandante'.
4 - No caso em apreço é manifesto que embora o recorrente tenha passado procuração a vários advogados aquele a quem efectivamente cometeu o mandato para concluir o processo foi o que ficou impossibilitado de praticar o acto consistente na feitura e apresentação das alegações para o Tribunal Pleno do S.T.J..
5 - Todas as notificações têm sido feitas ao referido advogado e por ele têm sido produzidas e assinadas várias peças processuais.
6 - A circunstância de a recorrente ter passado procuração a vários advogados, não a impede de, entre eles, escolher um deles para a patrocinar, de facto e de direito.
7 - O Tribunal não pode impor à recorrente, como o fez, que a prática de actos processuais seja levada a efeito por este ou por aquele dos vários advogados a quem ela passou procuração, pois essa escolha cabe à recorrente fazê-la, de forma insindicável e indiscutível.
8 - O S.T.J. determinou, contra a escolha da recorrente, que perante o impedimento temporário do mandatário encarregue da prática de acto processual, outro advogado a quem também tinha sido outorgada procuração podia e devia ter praticado tal acto.
9 - Esta decisão viola o disposto no nº 2 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda a indiscutível liberdade que a recorrente tem de ter para exercer o direito que lhe é conferido pelo nº 2 do artº 20º da Constituição.
Nestes termos [...] deve ser considerado procedente e provado o presente recurso e, em consequência, ser declarado inconstitucional o acórdão do S.T.J. que impediu a escolha directa e livre que o recorrente tinha feito do advogado, cerceando-lhe o direito ao patrocínio judiciário o que não é consentâneo com o artº 20º da Constituição e com o princípio do Estado de direito democrático.
A recorrida B, de sua parte, formulou as conclusões seguintes:
1-Estando em causa a violação de princípios constitucionais diferentes, a decisão no recurso interposto do Assento proferido pelo STJ no procº ... não interfere com a a proferir no presente recurso.
2-Pelo que não haverá que sobrestar a decisão do presente recurso.
3-Tendo a Recorrente livremente escolhido quatro advogados a favor dos quais outorgou procuração.
4-O Acórdão recorrido ao entender que os demais mandatários poderiam praticar o acto para cuja prática um deles se encontrava impedido.
5-Decidiu em função da escolha livre da Recorrente consubstanciada na mesma procuração.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Pedido de suspensão do recurso:
4.1. Nas suas alegações, a recorrente A pede, como se viu, para se sobrestar na decisão do presente recurso 'até que venha a ser decidido' um outro recurso de constitucionalidade já admitido: o recurso que, num outro processo, foi interposto do assento do Supremo Tribunal de Justiça, de
30 de Maio de 1995, nos termos do qual 'o Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida'.
É que - diz -, 'vindo a transitar em julgado o acórdão onde foi tirado o assento [...], cuja força obrigatória vai no sentido de considerar inadmissível recurso de revista nos processos de expropriações, é claro que o presente recurso de constitucionalidade deixará de ter qualquer repercussão na tramitação daquele recurso para o Pleno do STJ [refere-se ao recurso por si interposto e no qual apresentou alegações fora de prazo], pois, com ou sem alegações da recorrente para esse mesmo recurso, o mesmo ficará prejudicado, por inutilidade superveniente, logo que aquele assento transite em julgado'. E por isso - acrescenta - 'por razões de economia processual, deverá considerar-se como causa prejudicial, no conhecimento do objecto do presente recurso, o julgamento daquele outro recurso onde está indicada [sic.] a inconstitucionalidade do referido assento do STJ'.
4.2. A este pedido - que o recorrente qualificou como questão prévia - respondeu a requerida B dizendo que, 'se é inquestionável que, a ser proferido por esse douto Tribunal Constitucional acórdão no sentido da conformidade constitucional do assento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que considerou inadmissível recurso de revista nos processos de expropriações, a recorrente perde o seu interesse no presente recurso, a verdade é que os princípios constitucionais eventualmente violados ou não por tal assento serão seguramente diferentes do princípio cuja inconstitucionalidade foi aqui suscitada pela recorrente'. 'Assim sendo - concluiu - não se vê fundamento para a peticionada suspensão da decisão neste recurso até à decisão no recurso do assento do STJ'.
4.3. Vejamos, então:
Caso este Tribunal, no recurso interposto do acórdão onde foi tirado o mencionado assento (Proc. nº 450/95), tivesse já proferido decisão e ela fosse um julgamento de inconstitucionalidade, o presente recurso tinha-se tornado inútil.
De facto, uma vez assente que, dos acórdãos das Relações que fixem a indemnização devida por expropriação por utilidade pública, não é nunca admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, irrelevante seria apurar se, no caso, houve ou não justo impedimento e, assim, se são ou não de admitir as alegações tardiamente apresentadas pela recorrente no recurso que ela interpôs para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, pois que era, justamente, para decidir a questão de ser ou não possível recorrer para o Supremo que importava resolver a questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso.
Por isso, suposto que o Tribunal pode conhecer de tal questão de constitucionalidade, por se tratar da questão da inconstitucionalidade de uma determinada interpretação do artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil - e não da inconstitucionalidade do acórdão recorrido, considerado em si mesmo -, como só há interesse juridicamente relevante na decisão das questões de constitucionalidade quando essa decisão possa repercutir-se utilmente na decisão do caso de que emerge o recurso, se fosse inútil saber se sim ou não as alegações tardiamente apresentadas deviam ser recebidas, inútil seria decidir aquela questão de constitucionalidade. Nesse caso, considerada a função instrumental que os recursos de constitucionalidade são chamados a desempenhar, devia julgar-se extinto o recurso, com fundamento na sua inutilidade superveniente.
Simplesmente, esta questão - a questão de uma eventual inutilidade superveniente deste recurso - só poderia colocar-se se, no momento de o decidir, já estivesse julgado o recurso interposto do acórdão onde foi tirado o assento. Tal não sucede, porém.
Acresce que a questão de constitucionalidade que este recurso coloca é inteiramente distinta e independente daquela que constitui objecto do recurso interposto do acórdão em que se lavrou o mencionado assento.
Assim sendo - para além de manter toda a utilidade a decisão do recurso -, não existe qualquer relação de dependência ou prejudicialidade entre as duas questões, nem ocorre qualquer motivo capaz de justificar a suspensão do mesmo.
4.4. O Tribunal não determina, pois, a suspensão pretendida.
5. Identificação da questão de constitucionalidade objecto do recurso:
5.1. Esta questão vem referida ao artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil, que preceitua como segue:
Artigo 146º (Justo impedimento)
1. Considera-se justo impedimento o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto, por si ou por mandatário.
O acórdão recorrido entendeu que, no caso, se não verificava o justo impedimento, com a seguinte fundamentação: Alegou a recorrente para justificar o impedimento que o seu mandatário foi acometido, entre 12 e 17 de Novembro, quando ainda lhe decorria prazo para alegar, de doença que o impossibilitou de elaborar as alegações e de, em tempo
útil, proporcionar a qualquer outro colega a possibilidade de o substituir. E juntou o atestado médico de fls. 758. Daquele atestado resulta que o mandatário esteve retido em casa por doença, mas não que esteve incomunicável, impedido durante seis dias de estabelecer contacto com a sua constituinte ou os outros colegas com procuração no processo. A doença do advogado que não lhe permite sair de casa no decurso do prazo para praticar um acto processual constitui justo impedimento se esteve impossibilitado de esforço mental que lhe permitisse comunicar com o constituinte ou com outra pessoa. Não basta assim que se alegue que o advogado esteve impedido de elaborar a alegação, se não se prova que esta não podia ser feita por outro advogado. Compreende-se que assim seja. O impedimento de praticar o acto não se verifica quando se teve possibilidade material de utilizar meios alternativos equivalentes. A recorrente tinha constituído seus mandatários no processo mais três advogados que podiam elaborar a alegação.
Quanto à invocada violação do artigo 20º da Constituição, diz-se no acórdão recorrido, a finalizar:
É tão descabida a invocação pelo reclamante do art. 20º da Constituição, que se duvida se o fez de boa fé.
O acórdão recorrido interpretou, pois, o artigo 146º, nº
1, do Código de Processo Civil, do modo seguinte:
(a). A doença de um advogado que lhe não permite sair de casa no decurso do prazo para praticar um acto processual constitui justo impedimento, se ele esteve impossibilitado de esforço mental que lhe permitisse comunicar com o constituinte ou com outra pessoa;
(b). Essa mesma doença constitui igualmente justo impedimento, se, embora não o impedindo de estabelecer tal comunicação, se prova que o acto ( no caso, uma alegação) não podia ser praticado por outro advogado;
(c). Tal doença já não constitui justo impedimento quando não impede o advogado de utilizar meios alternativos equivalentes para praticar o acto; designadamente, quando o não impede de comunicar com o seu constituinte ou com outro advogado que a parte tenha constituído seu mandatário no processo que o possa praticar.
5.2. Embora a recorrente conclua a sua alegação dizendo que deve 'ser declarado inconstitucional o acórdão do STJ que impediu a escolha directa e livre que o recorrente tinha feito do advogado' - e, portanto, sem indicar qual a interpretação do artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil que considera inconstitucional e que como tal pretende ver julgada -, no fundo, o que ela questiona é a compatibilidade da interpretação indicada sob a alínea
(c) do ponto 5.1. com a Constituição.
Na verdade, nessa alegação, escreveu ela que, neste recurso, 'está em causa saber se a interpretação que o STJ deu à norma do artº.
146º CPC no sentido de que não se verificaria justo impedimento do mandatário da recorrente, porque, apesar de se comprovar que o mesmo esteve doente e impossibilitado de exercer qualquer actividade profissional, durante o período da respectiva doença, a recorrente teria passado também procuração a mais advogados e ainda porque o mandatário, mesmo impossibilitado por doença, poderia ter contactado os outros colegas que 'estavam tão preparados como ele'. E isso
é, essencialmente, o mesmo que disse no requerimento de interposição de recurso, quando escreveu que, 'fazendo parte deste direito [refere-se ao direito ao patrocínio judiciário, consagrado no artigo 20º da Constituição] a faculdade de livre escolha do advogado encarregado de exercer tal patrocínio, essa liberdade de escolha é denegada, quando, numa situação de impossibilidade temporária e momentânea, devida e tempestivamente alegada e comprovada, se exige, não obstante isso, que a parte, através do próprio advogado impossibilitado, faça substituir este último por um outro advogado'.
Há, assim, que concluir que a recorrente questiona a constitucionalidade da apontada interpretação do artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil, adoptada pelo acórdão recorrido - e não a constitucionalidade deste em si mesmo considerado - e que passar à decisão de tal questão de constitucionalidade normativa.
6.A questão de constitucionalidade:
Pergunta-se, então: o artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil, interpretado como foi pelo acórdão recorrido (ou seja: interpretado no sentido de que a doença de um advogado que lhe não permite sair de casa no decurso do prazo para praticar um acto processual, mas que o não impede de comunicar com o seu constituinte ou com qualquer outro advogado que este tenha também constituído seu mandatário no processo e que possa praticar o acto em causa) violará o artigo 20º da Constituição?
A garantia de protecção jurídica das pessoas é uma das essentialia do Estado de Direito: há-de garantir-se-lhes o conhecimento dos seus direitos, o acesso aos tribunais para defesa dos mesmos e, bem assim, o apoio judiciário necessário para tanto.
O direito ao patrocínio judiciário, consagrado no nº 2 do artigo 20º da Constituição, é, assim, uma dimensão dessa garantia de protecção jurídica. Quando tenham que recorrer a juízo para defender os seus direitos ou interesses juridicamente protegidos, têm, pois, as partes o direito de se fazer assistir por profissionais do foro por si escolhidos e mandatados, que aí pratiquem, com a necessária competência e serenidade, os actos processuais devidos; que os pratiquem de molde a que haja uma boa administração da justiça. Convém isso ao interesse público da boa administração da justiça; e convém também ao interesse das partes, a quem - no dizer de MANUEL DE ANDRADE -
'faltaria a serenidade desinteressada [...] e os conhecimentos e experiência
[...] que se fazem mister para a boa condução do pleito' (cf. Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1956, página 85).
As partes têm direito a que os seus direitos sejam bem defendidos perante os tribunais. Para isso, necessitam em regra da assistência de advogado ou de solicitador.
Pois bem: não se vê que a interpretação do artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil, adoptada pelo acórdão recorrido, lese um tal direito.
Entender que não há justo impedimento, quando o advogado constituído, que adoeceu no decurso do prazo para apresentar uma alegação e que, por via disso, fica impedido de sair de casa, mas não de comunicar com o seu constituinte ou com qualquer outro dos advogados também por este constituídos para o representarem no processo que esteja em condições de fazer a alegação, não conduz, de facto, a privar a parte da assistência de advogado de sua escolha, nem tão-pouco a tornar particularmente onerosa a defesa dos seus direitos. Até porque, sendo o direito de acesso aos tribunais um direito a uma decisão judicial, ditada por um tribunal imparcial e independente num processo justo e leal que decorra sem dilações indevidas, uma tal interpretação do artigo
146º, nº 1, do Código de Processo Civil mostra-se adequada ao desiderato da obtenção de uma tutela judicial efectiva em prazo razoável.
O artigo 146º, nº 1, do Código de Processo Civil, interpretado como foi pelo acórdão recorrido, não é, pois, inconstitucional.
III. Decisão:
Isto posto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade que por ele foi feito.
Lisboa, 6 de Março de 1996 Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luis Nunes de Almeida