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Proc. nº 312/94
1ª Secção
Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 11 de Janeiro de 1988, A. veio propor no
Tribunal de Trabalho de Lisboa acção com processo ordinário contra a sua antiga
entidade patronal, B., EM LIQUIDAÇÃO, pedindo a condenação desta no pagamento
de diferentes quantias por força da relação de trabalho que os unia e que
terminara com a caducidade imediata prevista no art. 4º, nº 1, alínea c), do
Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, diploma que extinguira a empresa pública em
causa e determinara a sua liquidação. Deu à acção o valor de 2.591.638$00 e
pediu a concessão do benefício de assistência judiciária.
A acção foi contestada, vindo a ser deduzida a
excepção de incompetência em razão da matéria dos tribunais de trabalho quanto à
acção.
A instância veio a ser suspensa nos termos do
art. 97º do Código de Processo Civil, assim se mantendo vários anos a aguardar a
decisão de um recurso contencioso de anulação respeitante à determinação por
acto legislativo da caducidade do contrato de trabalho do autor.
Em 29 de Março de 1993, mantendo-se ainda a
suspensão da instância, através do despacho de fls. 92-93, declarou-se o
Tribunal de Trabalho incompetente para conhecer da acção, considerando que tal
competência cabia aos tribunais comuns. Absolveu-se, assim, a ré da instância.
O autor agravou deste despacho, mas a Relação de
Lisboa, através do acórdão de 15 de Dezembro de 1993, negou provimento ao
recurso.
Ainda inconformado, recorreu de novo o autor para
o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando a questão dos limites do julgamento no
sentido da inconstitucionalidade da interpretação acolhida em numerosas espécies
por aquele Supremo Tribunal do art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 137/85,
julgamento esse constante de várias decisões do Tribunal Constitucional.
No seu parecer, o representante do Ministério
Público deu conta do sentido das decisões de reforma pelo próprio Supremo
Tribunal de Justiça de acórdãos deste revogados pelo Tribunal Constitucional,
mostrando que os representantes do Ministério Público no Supremo Tribunal de
Justiça divergiam quanto à apreciação jurídica sobre o modo por que se operavam
essas reformas, através da aplicação do nº 4 do art. 43º do Decreto-Lei nº
260/76, de 8 de Abril. Concluiu no sentido de que não havia razões para
dissentir da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (parecer de fls. 173
a 176).
Através de acórdão proferido em 26 de Maio de
1994, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo. Depois de
historiar a orientação desse órgão jurisdicional na matéria, antes e depois das
decisões do Tribunal Constitucional em recursos interpostos de acórdãos do mesmo
Supremo, afirmou-se no referido aresto:
'Simplesmente, como entretanto, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº
151/94, de 8 de Fevereiro, publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de
Março de 1994, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da
norma do nº 1, do art. 8º, do citado Dec.Lei nº 138/85 - quando interpretada no
sentido de que os tribunais comuns a que aí se faz referência são os tribunais
cíveis e estejam em causa créditos oriundos de relações laborais - há que pôr de
lado, também, igual norma do Dec-Lei nº 137/85, por contra ela militarem as
mesmas razões que levaram à declaração de inconstitucionalidade da primeira.
Sendo assim, e como se tem salientado nos arestos já citados, a
questão de competência em razão da matéria tem de ser apreciada em face do
disposto no nº 4, do art. 43º, do Dec-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, que
estabeleceu as bases gerais das empresas públicas [...].
Enquanto vigorou o Estatuto Judiciário dúvida não podia haver de
que os credores das empresas públicas, nos casos referidos no nº 4, do art. 43º,
do Dec.Lei nº 260/76, só podiam fazer valer os seus direitos perante os
tribunais civis e não perante os tribunais do trabalho, então especiais,
repete-se.
Como, porém, posteriormente a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, e a
Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, alteraram a organização judiciária, verifica-se
que se passou de uma classificação bipartida - tribunais comuns e tribunais
especiais - para uma distinção, nos tribunais judiciais de 1ª instância - em
função das matérias das causas que lhe são atribuídas -, entre tribunais de
competência genérica e de competência especializada, com a faculdade de, em
casos justificados, poderem ainda ser criados tribunais de competência
especializada mista - art. 46º, nºs 1 e 2, da Lei nº 38/87.
Como se acentua no citado acórdão [do S.T.J.] de 12 de Janeiro de
1994 - tirado no processo nº 3.880/4ª - que estamos a seguir de perto, a
competência - regra, anteriormente atribuída ao Tribunal comum, pertence agora
ao Tribunal de competência genérica, competindo, também, aos tribunais cíveis,
onde existam, como tribunais de competência especializada, preparar e julgar
acções de natureza cível, que não estejam atribuídas a outros tribunais; em
matéria cível, a competência dos tribunais cíveis é, portanto, genérica - arts.
53º e 56º da referida Lei nº 38/87' (a fls. 179 a 180 dos autos).
No mesmo acórdão sustentou-se ainda, a título
complementar, que não se considerava que as sucessivas leis orgânicas de
tribunais judiciais tivessem tido a intenção de revogar o regime constante do
art. 43º, nº 4, do Decreto-Lei nº 260/76, parecendo mesmo justificar-se, na
liquidação de empresas públicas, uma unidade de foro, à semelhança do que se
acha consagrado quanto à instância falimentar e que não seria possível concluir,
a partir do art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85 (ou do mesmo número e artigo
do Decreto-Lei nº 137/85), e do acórdão nº 151/94 do Tribunal Constitucional,
pela competência dos tribunais de trabalho, a partir daquela norma, visto que a
mesma não seria constitucionalmente idónea, atento o disposto na alínea q) do nº
1 do art. 168º da Constituição.
E concluiu-se no mesmo acórdão:
'Os Acórdãos do Tribunal Constitucional apenas consideram inconstitucional a
referida norma, interpretada no sentido de que os tribunais comuns, de que nela
se fala, são os tribunais cíveis. Só nesse sentido, pois, esses Acórdãos fazem
caso julgado quanto à questão de inconstitucionalidade - vide, art. 80º, nº 1,
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
As razões expostas parecem suficientes para se manter, sem
alteração, a jurisprudência firmada neste Supremo Tribunal de Justiça.' (a fls.
181 dos autos)
2. Notificado deste acórdão dele veio interpor
recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, o autor recorrente, por ter considerado ter
havido recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma
contida no nº 1 do art. 8º do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio.
No seu requerimento justificou, assim, a
interposição do recurso:
'Ao desaplicar tal norma, o douto acórdão recorrido fê-lo, aliás, mediante
invocação de, no caso, procederem as mesmas razões que levaram o Tribunal
Constitucional a emitir o douto acórdão nº 151/94 [...].
[...] [A]figura-se ao recorrente que, a ter extraído da douta fundamentação, na
parte referida, as necessárias consequências deveria o douto acórdão recorrido,
ao invés, ter aplicado tal norma. Com a interpretação de que, no caso dos autos,
a competência material cabe ao Tribunal do Trabalho, precisamente atenta a
natureza laboral dos créditos peticionados.' (a fls. 184 e vº dos autos)
O recurso foi admitido por despacho de fls. 185.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações recorrente e recorrida,
tendo formulado as seguintes conclusões:
Recorrente:
'a) Face à al. q) do nº 1 do art. 168º da C.R.P., a competência dos tribunais é
matéria integrante da reserva relativa de competência da Assembleia da
República, sendo que o dec. lei 137/85, de 3 de Maio, foi emitido sem
precedência de autorização legislativa;
b) Logo a expressão «tribunal comum» inserta no nº 1 do seu art. 8º tem que
coincidir com quanto dispõe a lei ordinária, sob pena de ter que concluir-se
pela sua inconstitucionalidade orgânica;
c) A C.R.P. (art. 301º 1), logo na sua versão originária, impôs a revisão da
orgânica judiciária, cuja sede única passou a ser a LOTJ/77;
d) Os anteriores tribunais comuns passaram a ser designados como judiciais e,
por força dessa revisão do sistema, entre eles se integraram os tribunais do
trabalho, com competência para as questões laborais de natureza cível;
e) O art. 8º 1 do dec. lei 137/85 pode e deve ser interpretado de molde a
incluir os tribunais de trabalho, quando estejam em causa créditos laborais,
assim ficando preservada a sua conformidade constitucional.
Em conclusão:
O douto acórdão recorrido desaplicou a norma do nº 1 do art. 8º
do dec.lei 137/85, não devendo fazê-lo porquanto a mesma só enferma de
inconstitucionalidade, por violação do art. 168º, nº 1, q) da C.R.P. na redacção
da Lei Constitucional nº 1/82, de 30/9, quando interpretada no sentido de que os
tribunais comuns, nela referidos, são os tribunais cíveis e estejam em causa
créditos emergentes de relações laborais'. (a fls. 190-191 dos autos)
Recorrida
'1 - O artigo 43º, nº 4 do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, por ser
anterior à Constituição, não pode ter violado a regra de competência do seu
artigo 168º, nº 1, al. q).
2 - Da aplicação deste preceito do Decreto-Lei nº 260/76 também não decorre
qualquer contradição com a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, uma vez que desta não
resulta intenção revogatória daquele preceito especial.
3 - A subsistência desta norma especial do Decreto-Lei nº 260/76 (a par das do
CPC que asseguram o princípio da plenitude da instância falimentar) em nada
afecta a unificação da organização judiciária, prosseguida pela Lei nº 82/77,
antes se mostra em maior conformidade com essa unificação.
4 - A subsistência deste mesmo preceito, interpretada nos termos do douto
Acórdão do STJ, não fere directa ou indirectamente qualquer norma ou principio
da Constituição nem importa qualquer juizo quanto à conformidade ou
desconformidade constitucional do artigo 8º, nº 1 do Decreto-Lei nº 137/85, de 3
de Maio, no sentido que o recorrente pretende atribuir-lhe.
5 - Na verdade, com esse sentido - atribuição de competência aos tribunais de
trabalho - o artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei 137/85 cede face ao artigo 43º, nº
4, do Decreto-Lei 260/76, por ser esta norma especial, não revogada pela Lei de
revisão do sistema judiciário.' (a fls. 197 vº - 198 dos autos)
4. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre, pois, conhecer do mérito do recurso, não
havendo razões que a tal obstem.
II
5. Preliminarmente, dir-se-á que o recurso foi
interposto pelo recorrente ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 280º da
Constituição ou da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal
Constitucional. E considera-se que a interposição do recurso foi legalmente
feita com invocação dessas normas.
De facto, no acórdão nº 151/94 (in Diário da
República, I Série -A, nº 75, de 30 de Março de 1994) - o qual, embora incidindo
sobre norma idêntica de outro diploma, foi tomado, e a justo título, como
parâmetro de julgamento de inconstitucionalidade no acórdão recorrido, como
resulta da transcrição atrás feita - o Tribunal Constitucional declarou, com
força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do nº 1 do art. 8º do
Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, 'quando interpretada no sentido de que os
tribunais comuns a que se faz referência nessa norma são os tribunais cíveis e
estejam em causa créditos oriundos de relações laborais, por violação do
disposto na alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição da República
Portuguesa, na versão introduzida pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de
Setembro'.
Esta declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral e os julgamentos de inconstitucionalidade em
fiscalização concreta pronunciados pelo Tribunal Constitucional quanto à norma
idêntica do nº 1 do art. 8º do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio - norma
desaplicada no caso sub judicio - referiram-se apenas a uma certa interpretação
dessas normas. Trata-se, pois, de uma modalidade de inconstitucionalidade
parcial: como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'pode mesmo suceder que a
parte inconstitucional da norma nem sequer tenha correspondência num segmento
semântico autónomo de um preceito, constituindo apenas um segmento ou secção
ideal dele. Nada disso impede o juízo de inconstitucionalidade, pois este tem a
ver com normas, como realidades jurídicas, e não com preceitos, como enunciados
linguísticos concretos' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed.,
Coimbra, 1993, pág. 993).
Mas, para além da norma inconstitucionalizada
numa certa interpretação, a mesma norma pode comportar uma ou mais
interpretações conformes à Constituição.
A desaplicação in toto do art. 8º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 137/85 dá, assim, abertura ao recurso de constitucionalidade
previsto na alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Relativamente à questão de constitucionalidade
objecto deste recurso, importa, pois, averiguar se está afectado de
inconstitucionalidade, por violação da alínea q) do nº 1 do art. 168º da
Constituição, o nº 1 do art. 8º do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio. Dispõe
este preceito:
'Os credores cujos créditos não hajam sido reconhecidos pela comissão
liquidatária e incluídos no mapa referido no artigo anterior, ou que não hajam
sido graduados em conformidade com a lei podem recorrer ao tribunal comum para
fazer valer os seus direitos.'
7. Sobre esta questão de constitucionalidade, o
recente acórdão nº163/95, tirado pelo plenário do Tribunal Constitucional, nos
termos do art. 79º-D da respectiva lei orgânica, decidiu que a norma desaplicada
não sofria de inconstitucionalidade com o 'sentido de que a expressão «tribunais
comuns» constante de tal preceito [nº 1 do art. 8º do Decreto-lei nº 138/85, de
3 de Maio] deve, após a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro e quando estejam em causa
créditos oriundos de relações laborais, entender-se como correspondendo aos
tribunais de trabalho' (acórdão junto aos presentes autos por despacho do
relator do processo).
Embora nos presentes autos haja sido desaplicada a
norma do nº 1 do art. 8º do Decreto-Lei nº 137/85, também de 3 de Maio, é
evidente que a questão de constitucionalidade é perfeitamente igual, atendendo à
identidade de redacção dos dois preceitos.
Há, assim, que aplicar ao caso sub judicio a solução
constante desse acórdão nº 163/95, remetendo-se integralmente para os
fundamentos dele constantes. Tal interpretação da norma vincula o tribunal
recorrido, nos termos do art. 80º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
III
8. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide
o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando, em
consequência, o acórdão recorrido, o qual deverá ser reformulado por forma a
aplicar no julgamento do recurso a norma do art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº
137/85, de 3 de Maio, com o sentido de que a expressão «tribunais comuns» deve,
após a lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, e quando estejam em causa créditos
oriundos de relações laborais, entender-se como correspondendo aos tribunais do
trabalho.
Lisboa, 4 de Abril de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Luís Nunes de Almeida