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Processo nº 128/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A Empresa Comercial A., com sede em Albufeira, interpôs recurso contencioso de anulação da deliberação da Câmara Municipal de Albufeira, de 8 de Junho de 1993, que determinou a interrupção do fornecimento da água da rede pública à unidade hoteleira de sua pertença, sita naquela localidade, invocando, para o efeito, o disposto no artigo 38º, nº 1, alíneas g) e h), 1ª parte, do Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água do Município de Albufeira, publicado, com data de 4 de Julho de 1991, por edital da Assembleia Municipal de Albufeira.
Pretende a recorrente a declaração de nulidade da mencionada deliberação por alegada violação de lei e vício de forma, mormente considerando que o dito Regulamento é formalmente inconstitucional, por violação do disposto no nº 7 do artigo 115º da Constituição da República (CR).
Os autos correram seus trâmites no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa até ser proferida sentença, em 16 de Dezembro de 1994, concedendo provimento ao recurso, por 'desaplicação' daquele Regulamento, violado que é o teor do citado preceito constitucional.
Oportunamente, tendo presente o disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a magistrada do Ministério Público competente recorreu para o Tribunal Constitucional.
Recebido o recurso, tão só o Ministério Público alegou, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto concluído do seguinte modo:
'1º- O Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Município de Albufeira, aprovado por esta autarquia e publicado por edital divulgado em 4 de Julho de 1991, tem eficácia externa, ao dispor sobre o conteúdo e vicissitudes da relação contratual estabelecida entre o município e os respectivos municípios, tendo por objecto a prestação de serviço de fornecimento de água potável, pelo que por imposição do preceituado no artigo
115º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa deveria necessariamente citar a respectiva lei habilitante.
2º- As normas constantes do artigo 38º, nº 1, alíneas g) e h), primeira parte, de tal Regulamento, ao disporem sobre a interrupção, unilateralmente determinada pelo município, do fornecimento de água à contraparte, como sanção dos comportamentos aí previstos, padecem de inconstitucionalidade formal decorrente de violação do preceituado no artigo
115º, nº 7, da Constituição, já que o Regulamento omite a indicação da respectiva lei habilitante'.
Deverá, assim, em seu entender, confirmar-se a decisão recorrida.
Correram-se os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.
II
1.- Ao recorrer, obrigatoriamente, para o Tribunal Constitucional, a Delegada do Procurador da República em serviço no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa aludiu, genericamente, à recusa de aplicação do Regulamento que vem sendo citado, com fundamento na inconstitucionalidade do mesmo considerando o disposto no nº 7 do artigo 115º da CR.
Nas suas alegações, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal circunscreveu o objecto do recurso às normas do artigo 38º, nº 1, alíneas g) e h), primeira parte do dito Regulamento, por serem essas as aplicáveis no caso vertente.
Esta é, na verdade, a correcta dimensionação do problema: no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, nomeadamente quando se trate de fundamento constante da alínea a) ou da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, a apreciação da questão está condicionada, consoante os casos, a uma potencialidade de aplicação ou a uma efectiva aplicação da norma (ou normas) em causa.
Escreveu-se, a este propósito, no acórdão nº
319/94, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Agosto de 1994:
'[...] só quando a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade que sobre ela foi lançada), for relevante para a decisão da causa, isto é, for aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido, é que se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso.
Só nesse caso a decisão que este Tribunal vier a proferir sobre a questão de constitucionalidade é susceptível de se projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo, sendo certo que a jurisprudência constitucional tem afirmado repetidamente que o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, no sentido de só dever conhecer-se das questões de constitucionalidade quando a decisão a proferir possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito (cf., sobre este tema, por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 169/92 e 257/92, Diário da República, 2ª série, de
18 de Setembro de 1992 e 18 de Junho de 1993).'
Ora, como veremos, só as normas individualizadas nas alegações apresentadas neste Tribunal pelo Ministério Público foram efectivamente desaplicadas com fundamento em inconstitucionalidade, abrindo, como tal, a via do recurso de constitucionalidade.
2.- O Regulamento em referência, respeitante ao serviço de abastecimento de água no concelho de Albufeira, tem a data de 25 de Fevereiro de 1991 e foi tornado público em anexo ao edital afixado aos 4 de Julho seguinte, entrando em vigor, nos termos do seu artigo 74º, quinze dias após a data da afixação.
O artigo 1º indica-nos o seu principal objectivo: a Câmara Municipal de Albufeira obriga-se a fornecer água potável para os usos domésticos da população e ainda para o preparo e confecção industrializados de alimentos e bebidas, nas ruas, zonas ou locais onde existam canalizações da sua rede geral, nos termos do Regulamento e mais disposições legais em vigor.
O artigo 38º, ora parcialmente em sindicância, está incluído no capítulo IV, que tem por título 'Fornecimento de água', dispondo no seu nº 1 e alíneas g) e h), primeira parte:
'1- A Câmara Municipal poderá interromper o fornecimento de
água nos seguintes casos:
a) -------------------------------
g) Quando o sistema de distribuição interior tiver sido modificado sem prévia aprovação do seu traçado;
h) Quando seja dada utilização diferente para que foi autorizada [...];
-----------------------------'.
O objecto do recurso, como se registou, foi limitado a estas normas, únicas, na verdade, que a deliberação contenciosamente impugnada utilizou para se fundamentar: o órgão autárquico deliberou 'interromper o fornecimento de água à unidade hoteleira de que é proprietária a empresa A. [...] com fundamento na matéria de facto constante do presente auto e ao abrigo do disposto no artigo 38º, nº 1, alíneas g) e h), primeira parte do R.S.A. Águas [...]'.
O magistrado recorrido, no entanto, não distinguiu, no seu juízo desaplicativo, ao conhecer da questão nos seguintes termos que se transcrevem parcialmente:
'[...] Afirma-se, em primeiro lugar, na al. a) das conclusões da Recorrente, que «O Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Município de Albufeira não indica expressamente a lei que visa regulamentar ou que defina a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão, pelo que as respectivas normas são formalmente inconstitucionais (...)».
A análise do «documento» junto a Fls. 84/120 (cfr. supra 2.1.E e F) comprova isso mesmo. O referido «Regulamento» não contém qualquer referência
à «lei autorizadora». Não podendo negar o «facto», a Autoridade Recorrida, considerando tratar-se de «regulamento autónomo», defende a desnecessidade de tal menção.
(a)- Na doutrina portuguesa, tal como na jurisprudência do Tribunal Constitucional, a resposta à questão vai em sentido diverso do sustentado pela Autoridade Recorrida (a resposta à questão vai em sentido diverso do sustentado pela Autoridade recorrida [ou seja, a Câmara, que defendia a tese de se tratar de um regulamento autónomo, decorrente do poder regulamentar próprio consagrado no artigo 242º da CR, supondo, como lei habilitante, o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, maxime os seus artigos 2º, nº 1, alíneas c) e d), e 51º, nº 4, alínea a)].
Entre nós - como escrevem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, apoiando-se no artº 115º nº 7 da CRP -, «os regulamentos são sempre actos legalmente derivados, com necessária referência a uma lei ou diploma equiparado» (Cfr. 'Constituição da República Portuguesa Anotada», 3ª ediç., Coimbra, 1993, p.781).
Consagrando-se, no referido preceito, o «princípio da primariedade ou da precedência da lei», aí se estabelece - segundo os Ilustres Constitucionalistas citados -' (a) a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar; (b) o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta dupla exigência torna ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizam expressamente este fundamento'. (cfr. ob. e ediç. cit.,pág. 514, n. XXV).
Pronunciando-se sobre o problema das chamadas «habilitações ou autorizações legais implícitas», os referidos Autores não deixam de afirmar que
«a aceitação da habilitação legal tácita não exime (...) a autoridade regulamentar do dever de citação expressa da base legal autorizante» (cfr. ob. e ediç. cit., p. 515, n. XXVI).
Dentre a mais recente jurisprudência do TC, sobre o ponto, pode ver-se, no sentido do texto, o AC. nº 375/94, de 11.05.1994, in Pº nº 230/93
(caso Pires de Mendonça v. COJ), publicado na 2ª Série do «DR» nº 260, de
10.11.1994, a pág. 11380/2).
(b)- Problema diverso é o da consequência da falta da menção da «credencial legislativa habilitante» (ou da «base legal autorizante»).
«Parece evidente - anotam GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA - que essa deficiência se traduz na ausência de um elemento formal constitucionalmente necessário, pelo que tais regulamentos padecem de inconstitucionalidade formal (...). Isto é assim, mesmo quando seja possível identificar a lei habilitante, pois a função de exigência da identificação expressa consiste não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (...) mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevante à luz da principiologia do Estado de Direito democrático» (cfr. ob. e ediç. cit., p. 516, n. XXVIII).
Em sentido próximo, na jurisprudência do TC, além do citado AC. de
11.05.1994, podem ver-se os nºs. 209/87e 75/88, referidos pelos dois Ilustres Mestres, e ainda os nºs. 63/88 e 268/88, aludidos na fundamentação do nº
375/94.
2.1.- Nos termos do nº 7 do artigo 115º da CR (redacção vinda da 1ª Revisão Constitucional):
'Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'.
Acolhe-se o princípio da primariedade ou da precedência da lei, utilizado pela Constituição para restringir um amplo grau de liberdade de conformação normativa da Administração que, no dizer de Gomes Canotilho, se representa pouco compatível com o Estado de direito democrático
(Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 924).
Afirma-se, assim, e do mesmo passo, o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos e a precedência da lei sobre toda a actividade regulamentar, a ponto de a inobservância dessa exigência tornar ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os que, embora com provável fundamento legal, não individualizam expressamente esse fundamento (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 514).
Este tem sido, igualmente, o entendimento do Tribunal Constitucional que tem fulminado de inconstitucionalidade (formal) os regulamentos que não indiquem, expressamente, a lei que visam regulamentar ou que não definam a competência subjectiva e objectiva para a sua edição (cfr., v.g., o acórdão nº 196/94, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Maio de 1994).
Ora, o Regulamento de que ora se cuida não indica, implicitamente sequer, a lei ao abrigo da qual foi emitido.
No entanto, trata-se, inclusivamente, de um regulamento externo.
2.2.- No seu estudo 'Teoria dos Regulamentos', publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Afonso Rodrigues Queiró, distingue os regulamentos internos dos externos conforme o círculo daqueles a quem se dirigem e que por eles são obrigados, esgotando-se a eficácia jurídica daqueles no âmbito da própria Administração, 'dirigindo-se exclusivamente para o interior da organização administrativa, sem repercussão directa das relações entre esta e os particulares, enquanto os segundos albergam preceitos' que se dirigem não só ao
órgão da Administração que os edita ou faz, ou a outros órgãos da Administração, mas também a terceiras pessoas, a particulares ou administrados' que se encontrem em face dela numa relação geral de poder', particulares definidos por características genéricas, colocados numa relação de subordinação geral perante a entidade de que dimanam os regulamentos (cfr. Rev. cit., ano XXVII, pág. 5).
Segundo Diogo Freitas do Amaral, enquanto regulamentos internos são os que produzem os seus efeitos jurídicos unicamente no interesse da esfera jurídica da pessoa colectiva pública cujos órgãos os elaboram, são regulamentos externos aqueles que produzem efeitos jurídicos em relação a outros sujeitos de direito diferentes, isto é, em relação a outras pessoas colectivas públicas ou em relação a particulares (cfr. Direito Administrativo, III, pág. 25).
Para Jorge Manuel Coutinho de Abreu, por sua vez, ao debruçar-se sobre os regulamentos de organização externas, estes, ao estruturarem as unidades organizatórias administrativas e ao disciplinarem o seu funcionamento, prescrevem sobre a competência externa dessas unidades e dispõem sobre direitos e deveres de terceiros, enquanto os regulamentos internos de organização estruturam órgãos internos e serviços administrativos, regulam a sua actividade (sem eficácia exterior, pelo menos directa) ou funcionamento, e determinam as funções dos agentes' (cfr. Sobre os Regulamentos Administrativos e o Princípio da Legalidade, Coimbra, 1987, pág. 99).
À luz dos critérios expostos, não parece haver dúvidas tratar-se, no caso vertente, de um regulamento externo respeitante ao fornecimento de água ao concelho de Albufeira, dotado de um universo de destinatários genericamente e abstractamente definido e dispondo sobre matéria com directa repercussão na esfera jurídica de terceiros.
A jurisprudência deste Tribunal coadjuva, aliás, este entendimento, como se colhe da leitura, inter alia, dos acórdãos já citados nºs. 196/94 e 319/94, ou dos acórdãos nºs. 160/93 e 247/93, publicados no Diário da República, II Série, de 10 de Abril e 5 de Junho de 1993, respectivamente.
Sendo assim, há que concluir estarem as normas objecto do presente recurso, na verdade, em desconformidade com o disposto no nº 7 do artigo 115º da CR e, daí, retirar as devidas consequências. III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida quanto à matéria de constitucionalidade tal como ficou definida no objecto do mesmo.
Lisboa, 25 de Junho de 1996
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Diniz
Maria da Assunção Esteves
Luís Nunes de Almeida