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Proc. nº 277/95
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No tribunal judicial da comarca de Braga, A instaurou contra B e mulher acção em processo sumário peticionando o despejo de um prédio a estes arrendado, com fundamento no facto de o estabelecimento comercial ali instalado se achar encerrado há mais de um ano consecutivo, o que constitui causa autónoma de resolução imediata do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 64º, nº1, alínea h) do Regime do Arrendamento Urbano.
Por sentença de 8 de Junho de 1994, foi a acção julgada procedente e provada, decretando-se a imediata resolução do contrato de arrendamento e condenando-se os R.R. no despejo imediato do arrendado e na sua entrega à Autora. livre de pessoas e coisas.
E para tanto, no plano do direito e da correlativa subsunção jurídica, aduziu-se a fundamentação seguinte:
'Dispõe o art. 64º, 1, al, h), do Dec. lei nº 321-B/90, de 15/10 que o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento se o arrendatário conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo o caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos.
E compreende-se que assim seja, porque não se justifica o arrendamento se o arrendado estiver encerrado por muito tempo, além de que o prédio se estraga e se desvaloriza, o que acarreta um prejuízo injusto para o senhorio - ver Ac. da Rel. do Porto, de 7.10.80, no BMJ 300,448, em citação de Pais de Sousa, em anotações ao Regime de Arrendamento Urbano, pág. 157.
Vem demonstrado que, desde Outubro de 1991, o arrendado se encontra encerrado de forma consecutiva e ininterrupta, não mais o R. realizando quaisquer transacções comerciais no arrendado, desde então.
Tal factualidade integra o conceito de encerramento do estabelecimento por mais de um ano, no caso em apreço, que nem sequer tinha cabimento a excepção contida na al. em questão, por a situação de encerramento ultrapassar em muito o prazo máximo de dois anos aí estipulado.
Tudo para dizer que a acção procede totalmente, sendo caso de decretar a requerida resolução do contrato e consequente despejo do arrendado.'
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2 - Não conformados com o assim decidido, levaram os R.R. recurso ao Tribunal da Relação do Porto, suscitando, além do mais, a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 64º, nº 1, alínea h) do Regime do Arrendamento Urbano, a qual 'referida à hipótese de encerramento do arrendado por doença do empresário (maxime quando se trate, como nos autos, de um pequeno empresário de quem depende directa e pessoalmente o funcionamento do estabelecimento comercial)' ofende o disposto nos artigos 58º, nº 1, 59º, alínea b), 61º, nº 1, 62º, nº 1, e 64º, nº 1, da Constituição.
Por acórdão de 20 de Março de 1995, o Tribunal da Relação negou provimento ao recurso e confirmou, na íntegra, a decisão recorrida.
Para desatender a questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes o aresto ateve-se à fundamentação seguinte:
'Portanto, é deste conjunto de preceitos [artigos 58º, nº 1, 59º, alínea b), 61º, nº 1, 62º, nº 1, e 64º, nº 1, da Constituição] que os recorrentes inferem que a norma do artigo 64º, nº 1, alínea h) do R.A.U. ao prevenir a hipótese de encerramento do arrendado por doença do empresário está ferida de inconstitucionalidade.
Porém, para além da situação de encerramento por doença não ser a que fundamenta a sentença recorrida, acresce que, também aqui, os recorrentes carecem de razão.
Na verdade, o mencionado preceito do R.A.U. não sofre da inconstitucionalidade que lhe imputam os recorrentes, uma vez que nele se salvaguarda a hipótese de doença do empresário, e por tempo suficiente para não sacrificar arbitrariamente, face ao equilíbrio que deve haver entre o interesse individual e o interesse social, manifestado no máximo aproveitamento dos locais arrendáveis, ligado à defesa da propriedade privada'
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3 - Deste acórdão, sob a invocação do artigo 70º, nº
1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional) interpuseram os R.R. recurso para este Tribunal, em ordem à apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 64º, nº 1, alínea h) do Regime do Arrendamento Urbano, por eles suscitada durante o processo.
Nas alegações oferecidas alcançaram as seguintes conclusões:
'I - A alínea h) do nº 1 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.) aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte em que estabelece o limite máximo de dois anos à eficácia do motivo de força maior como causa impeditiva da resolução do contrato de arrendamento fundada em encerramento do prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, na hipótese de doença do locatário
é inconstitucional. Com efeito,
II - tal norma não é compatível com o disposto nos artigos 58º, nº 1, 59º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea e), 61º, nº 1, 62º, nº 1, e 64º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.'
A recorrida, em contralegação, opôs-se a esta retórica argumentativa, aduzindo uma linha expositiva de sinal contrário, que rematou de modo seguinte:
'1 - Não está afectado de inconstitucionalidade material o dispositivo do R.A.U. alínea h) do nº 1 do artigo 64º, segundo o qual o encerramento consecutivo do estabelecimento comercial, por mais de dois anos, devido a caso de força maior, por motivo de doença do arrendatário, traduz resolução imediata de arrendamento;
2 - A partir desses dois anos já não é passível de protecção o arrendatário doente em face do equilíbrio que deve haver entre o interesse individual e o interesse social representado pelo aproveitamento máximo dos locais arrendados, ligados à defesa da propriedade privada;
3 - No caso dos autos, até nem é este preceito que foi o aplicado, uma vez que a resolução imediata do contrato foi baseada no encerramento do estabelecimento consecutivamente, por mais de um ano;
4 - Foi este o fundamento invocado pela Autora e a este responderam os réus com o não encerramento do mesmo estabelecimento, com excepção de uns dias em que foi despedida uma empregada, logo substituida por outra;
5 - A doença do arrendatário nada afectou o funcionamento do estabelecimento a que foi apenas menos algumas vezes;
6 - Não foi invocada, deste modo, a excepção do arrendamento do estabelecimento devido a doença do arrendatário;
7 - Não houve, portanto, aplicação alguma sequer do comando legal que se pretende, sem cabimento algum, sofrer de inconstitucionalidade.
Os autos seguiram os vistos de lei, cabendo agora apreciar e decidir.
Mas, tendo em atenção que os recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade da norma do artigo 64º, nº 1, alínea h) do Regime do Arrendamento Urbano, em toda a sua extensão, mas tão só 'na parte em que estabelece o limite máximo de dois anos à eficácia do motivo de força maior como causa impeditiva da resolução do contrato de arrendamento fundada em encerramento do prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, na hipótese de doença do locatário' importa averiguar, antes de mais, atento o teor do acórdão recorrido se, quanto a este específico segmento normativo, se mostram reunidos todos os pressupostos de que depende o conhecimento do objecto do recurso.
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II - Uma questão prévia
1 - A apreciação das questões de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional no domínio dos processos de fiscalização concreta com decisões de rejeição (aquelas que aqui cabe analisar) acha-se condicionada a uma efectiva aplicação no caso concreto da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada pela parte durante o processo.
Na verdade, como tem sido repetidamente assinalado pela jurisprudência deste Tribunal, só quando a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade sobre ela lançada) fôr relevante para a decisão da causa
(isto é, só quando tal norma fôr aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido), é que se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso. Só nesse caso, com efeito, a decisão que este venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de se projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo (ou seja, sobre a decisão da causa julgada pelo tribunal a quo).
Ora, o Tribunal Constitucional tem reiterado o entendimento de que o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, só devendo, por isso, conhecer-se das questões de constitucionalidade, se a sua decisão puder influir utilmente na decisão da questão de fundo. (cfr., por todos, os acórdãos nºs 169/92 e 257/92, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 18 de Setembro de 1992 e 18 de Junho de 1993).
Será que, à luz destes princípios poderá conhecer-se da questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes durante o processo e demarcada em definitivo, na sua alegação para este Tribunal?
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2 - O artigo 64º do Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte que aqui importa ter presente, dispõe da seguinte formulação:
Artigo 64º
(Casos de resolução pelo senhorio)
1 - O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
................................................... .
h) Conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos;
................................................... .
Esta norma, que corresponde ao artigo 1093º, alínea h) do Código Civil [revogado pelo artigo 3º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº
321-B/90] começa põr enunciar uma regra: a de que o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento, no caso de, sendo o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, o locatário o manter encerrado por mais de um ano, consecutivamente.
No entendimento de Antunes Varela, duas razões fundamentais justificam esta causa (excepcional) de despejo, cujas origens remontam ao artigo 5º, § 9º da Lei nº 1662, de 4 de Setembro de 1924:
'Trata-se, por um lado, de acautelar o interesse do senhorio em não ter o prédio deteriorado, com o seu encerramento por um período longo e em não sofrer a desvalorização comercial do local (ou ponto) resultante da cessação de actividade do estabelecimento ou escritório. E cuida-se, por outro lado, de proteger o interesse geral do aproveitamento efectivo de todos os locais utilizáveis para o comércio ou indústria ou para a instalação de escritórios' (cfr. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 116º, nº 3711, pp. 186 e ss).
À regra assim estabelecida abre a lei duas excepções: a de o encerramento do prédio provir de caso de força maior ou de ausência forçada do arrendatário, fixando em ambos os casos um limite (máximo) de tempo para a protecção do locatário. Tanto o caso de força maior, como a ausência forçada do arrendatário, deixam de constituir causa impeditiva do despejo, logo que se prolonguem por mais de dois anos.
Ora, os recorrentes, que fundamentaram a sua posição na inverificação do encerramento do estabelecimento (cfr. contestação a fls. 22 e 23), apenas impugnaram, em termos de constitucionalidade, o regime relativo à excepção do caso de força maior, alegando que o respectivo prazo não dispõe de base constitucional.
Não questionaram perante o Tribunal da Relação, como não questionam agora, a constitucionalidade da regra geral contida na norma do artgo 64º, nº 1, alínea h) do Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, insurgindo-se apenas contra aquele específico segmento normativo.
Todavia, como bem resulta da fundamentação das decisões proferidas pelo tribunal de primeira instância e pelo Tribunal da Relação, o julgamento da causa e a resolução do contrato de arrendamento ali determinado, não se fundou no segmento da norma posto em crise pelos recorrentes mas sim na regra geral que estabelece uma cominação no caso de o arrendado se achar encerrado por mais de um ano. Com efeito, como se extrai da matéria alegada e provada, não foi invocada pelos recorrentes durante o processo, como causa de encerramento do estabelecimento a existência de doença prolongada por mais de dois anos. Em rigor, a parte da norma questionada não foi aplicada na decisão recorrida e, assim sendo, fosse qual fosse o juizo de constitucionalidade emitido a seu respeito por este Tribunal, não se reflectiria ele no julgamento da causa e nos seus efeitos materiais.
E assim sendo, por a norma arguida de inconstitucionalidade não ser aplicável ao caso concreto, não pode conhecer-se do presente recurso.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
Lisboa, 7 de Maio de 1996
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Luis Nunes de Almeida